quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Relações familiares no Brasil

Decisões atuais, origens históricas
Keila Grinberg resgata as raízes do debate sobre as relações familiares no Brasil. Para a historiadora, elas explicam, em grande parte, a recente legalização da união estável entre pessoas do mesmo sexo no país.

Keila Grinberg



As relações familiares brasileiras – já estudadas pela academia – tornam-se um prato cheio para historiadores com a recente legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Contraditoriamente, o preconceito ainda é grande no país. (foto: Luís Amorim)


Os historiadores do futuro terão, nas relações familiares do Brasil contemporâneo, um amplo campo de pesquisa. Principalmente se o assunto for uniões de pessoas do mesmo sexo. Em 2011, decisão unânime do Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu formalmente como união estável também aquelas entre pessoas do mesmo sexo, com os mesmos direitos e deveres que regem as uniões estáveis entre homem e mulher.

Não que a decisão pareça grande novidade. Na América Latina, o Brasil é o sexto país a reconhecer direitos de casais do mesmo sexo, seja por meio de uniões civis (Uruguai, Equador e Colombia), seja através do casamento (Argentina e México). Mas, na verdade, é novidade sim: ainda há no mundo 76 países onde a homossexualidade é crime, chegando a ser punido com morte em cinco deles (Irã, Arábia Saudita, Mauritânia, Iêmen e Sudão. 
Ainda há no mundo 76 países onde a homossexualidade é crime

A situação ganha perspectiva se, além de compararmos o Brasil com outros países, adicionarmos ao tema uma abordagem histórica, como o faz a historiadora Sueann Caulfield, professora da Universidade de Michigan e especialista no estudo das relações de gênero e de sexualidade.

Mesmo sem bola de cristal, ela vem há tempos estudando as novas famílias no Brasil e demonstrando que a recente decisão do STF tem fundamento em opções feitas há mais tempo do que normalmente costumamos imaginar. Mais do que isso: ela vem mostrando como a legislação e a jurisprudência sobre as relações entre homens e mulheres criadas ao longo do século 20 foram importantes para a construção de instrumentos jurídicos que consideram legítimas, hoje, as relações entre pessoas do mesmo sexo. São dela os argumentos que exponho a seguir.


Desigualdades perante a lei

Desde a instituição do casamento civil no Brasil, com a promulgação da primeira constituição republicana, em 1891 – antes disso, embora tenha havido muita discussão sobre o casamento civil no Império, matrimônio reconhecido era só na igreja – se começou a discutir a constituição da família, os direitos das mulheres casadas e dos filhos legítimos e ilegítimos e as possibilidades de divórcio

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Antes da primeira constituição republicana do Brasil, só o casamento religioso era reconhecido. Mesmo após mudanças na legislação do país, no início do século 20, a família continuou sendo constituída pelo ‘indissolúvel casamento', como queria a igreja. (foto: Sxc.hu/ shezita)

O assunto ocupou muito espaço na época da discussão do primeiro código civil, de 1916. No entanto, contrariando a posição de juristas proeminentes como Clóvis Bevilaqua, o código consagrou a desigualdade nas relações entre homens e mulheres: os maridos eram considerados, na teoria e na prática, o cabeça do casal, podendo decidir onde suas mulheres e filhos iriam viver, se iriam trabalhar e como seus bens seriam administrados. Poderiam também representar todos os membros de sua família perante a justiça. As mulheres casadas eram, assim, juridicamente incapazes, como haviam sido durante todo o período colonial e imperial.

O código civil também instituiu diferenças entre as mulheres, classificando algumas de honestas e outras de desonestas. Não é preciso muita imaginação para adivinhar que desonestas eram aquelas mulheres que não casavam virgens – estas podiam até ser deserdadas por seus pais, além de ter o casamento anulado.

Havia ainda os filhos legítimos e ilegítimos. Estes não podiam ser reconhecidos pelo pai, a menos que a primeira esposa morresse e ele viesse a se casar com a mãe da criança, o que raramente acontecia. Tudo isso para mostrar que, nos primeiros anos do século 20, a família continuou sendo constituída pelo ‘indissolúvel casamento’, como queria a igreja católica. 


Feliz transgressão

Só que, felizmente, o comportamento das pessoas não segue a lei. Desde a década de 1920, mulheres que viviam maritalmente com seus companheiros brigavam na justiça pelo reconhecimento da legalidade de suas uniões. Isso foi especialmente importante nos anos 1930 e 1940 para que elas se beneficiassem dos direitos reconhecidos por Vargas às famílias dos trabalhadores. Muitos juízes reconheceram essas uniões como 'fatos sociais' e deram ganho de causa às mulheres.

Discussões sobre propriedade de casais formados em uniões consensuais também foram parar nos tribunais. Como os bens do casal eram geralmente registrados no nome do homem, em caso de separação muitas vezes as mulheres ficavam sem nada. Mas recorriam à justiça. Foram tantos os casos que, em 1964, o STF passou uma resolução determinando que as uniões de fato deveriam ser consideradas como casamentos do ponto de vista civil, no que se referia à separação, divisão de propriedade e direitos de herança. 
Nos muitos casos que atolaram os tribunais brasileiros desde 1988, o apelo à dignidade humana e aos direitos de cidadania deram origem à decisão do STF de 2011

Esses direitos foram reconhecidos e renomeados pela Constituição de 1988. A partir de então, concubinagem virou união estável, que ganhou a mesma ‘especial proteção do Estado’ que os casamentos tinham. Mesmo definindo casamento como uniões “entre um homem e uma mulher”, ao instituir a dignidade humana e cidadania como princípios constitucionais fundamentais, a Constituição criou instrumentos jurídicos para considerar uniões entre pessoas do mesmo sexo também como uniões estáveis.

Nos muitos casos que atolaram os tribunais brasileiros desde 1988, o apelo à dignidade humana e aos direitos de cidadania – afinal, os casais do mesmo sexo argumentavam ter deveres iguais aos dos demais cidadãos, mas não os direitos correspondentes – deram origem à decisão do STF de 2011.

Como conclui Sueann Caulfield, longe de ter sido uma decisão repentina, a justiça brasileira, ainda que influenciada pelo ativismo político internacional e pela mídia brasileira – que em muito contribuiu para criar uma opinião pública favorável ao casamento entre pessoas do mesmo sexo –, seguiu sua própria tradição de reconhecer que a variedade do comportamento das pessoas deve ser protegida por lei, ao contrário de outros países, onde as pessoas devem, o tempo todo, adequar seu comportamento à lei. 


Em tempo
Diante dessa situação, impossível é entender como o Brasil continua sendo um dos líderes mundiais nos crimes contra homossexuais. Foram 260 assassinatos em 2010, 251 em 2011 e 20 só em janeiro de 2012.

Espero que a superação desse paradoxo brasileiro esteja próxima, para que, quando virar tema de estudo dos historiadores do futuro, ele já seja parte do passado.

Keila Grinberg
Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Pós-doutoramento na Universidade de Michigan (bolsista da Capes)
Revista Ciência Hoje

Historiadores pra quê?


À luz do debate que sacode o campo de história estadunidense sobre a função social dos historiadores, Keila Grinberg contrapõe, em sua coluna de março, as expectativas do graduando em história no Brasil e a realidade que ele encontra depois de formado. A reflexão sugere um novo direcionamento profissional nos cursos de pós-graduação na área.

Keila Grinberg


Prédio do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, no qual se encontra o departamento de história da universidade. No Brasil, as graduações e as pós na área não estimulam uma formação voltada para a educação e a sociedade. (foto: Wikimapa).


Pergunte a qualquer estudante de pós-graduação em história no Brasil o que ele quer ser quando defender, e a resposta vai ser quase sempre a mesma: professor universitário. Nos Estados Unidos também é assim. Mas a realidade dos doutores recém-formados tem sido bem diferente da expectativa. Com a crise econômica, a maioria, quando acha emprego, acaba trabalhando em museus, escolas e outros lugares tidos como de menor prestígio.

A redução de vagas no mercado de trabalho universitário para a área de humanidades – o que, aliás, acontece nos Estados Unidos desde a década de 1970 – é a provável razão por trás da grande discussão sobre os programas de pós-graduação em história e a função social dos historiadores que está sacudindo o campo desde outubro do ano passado naquele país. Ainda que a motivação seja mesmo esta, ela está vindo para o bem.

Em outubro de 2011, Anthony Grafton, presidente da Associação Americana de História, e Jim Grossman, diretor-executivo da entidade, escreveram o artigo “No more plan B” (Não mais plano B, em tradução livre), defendendo que as chamadas carreiras alternativas, principalmente no campo do ensino e da história pública, não deveriam ser mais o plano B dos recém-doutores na área de história, mas sim o caminho principal. E isto não apenas porque falta vaga no mercado, mas porque os historiadores devem rever a sua relação com a sociedade, deixando de ver a si mesmos apenas como profissionais que pesquisam e ensinam dentro da universidade.


Departamento de história da Universidade de Boston, nos Estados Unidos. O país passa por um amplo debate sobre os seus cursos universitários de história. Para alguns pesquisadores, historiadores deveriam trabalhar em parceria e envolver maos o público. (foto: reprodução)

O artigo caiu como uma bomba no meio acadêmico. Houve quem criticasse, dizendo que Grafton só defendia essas ideias por ser, ele próprio, professor de Princeton, uma das universidades de pesquisa mais prestigiadas dos Estados Unidos. Mas prefiro entrar na fila dos que aplaudiram, como Claire Potter e Thomas Bender, ambos professores da Universidade de Nova Iorque.

De maneiras diferentes, os dois defendem uma mudança radical no ensino universitário de história: Bender, para recuperar o comprometimento dos intelectuais com a vida públicaque marcou a formação universitária na área de humanidades no século 19; e Potter, para defender que o trabalho do historiador no século 21 deve ser feito em conjunto e acessível ao grande público, um modelo radicalmente diferente daquele do pesquisador solitário, em vigor no século passado, que escreve somente para seus pares.
Para dar conta das novas tecnologias e para estar em dia com a produção acadêmica internacional, o historiador deve trabalhar em conjunto

Segundo Potter, os historiadores, para dar conta das novas tecnologias, das variadas formas de divulgação dos resultados de suas pesquisas, e para estar em dia com a produção acadêmica internacional, deve trabalhar em conjunto com outros historiadores. E isto vale também para o ensino e para um diálogo mais igualitário e engajado com o público (que, nas universidades do Brasil, poderíamos chamar de extensão).

Nisto não há muita novidade, a não ser a constatação, comum a ambos, de que o ensino universitário de história está muito longe de prover as competências necessárias para que os recém-formados possam se adequar aos novos tempos do mundo real. As disciplinas existentes na maioria dos cursos de pós-graduação em história são orientadas tão somente para a especialização excessiva e para a pesquisa individual. 


Perda total

No Brasil, estamos no mesmo barco. A diferença é que a Associação Americana de História acabou de se engajar em um grande projeto de reflexão sobre a profissão, que, nos próximos três anos, vai estudar e discutir os currículos de várias universidades dos Estados Unidos. 

Enquanto isso, aqui, são pouquíssimos os cursos de graduação em história que têm disciplinas como “Patrimônio” ou “Relações internacionais” em seus currículos. Candidatos a historiadores pouco estagiam em museus ou em centros culturais. Mesmo a área de ensino de história na educação básica é frequentemente neglicenciada. O resultado disso é que a maioria dos graduados na área foge das salas de aula dos ensinos fundamental e médio e nenhum curso de pós-graduação se dedica a formar professores para a educação básica

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No Brasil, a maioria dos graduados em história foge das salas de aula dos ensinos fundamental e médio e nenhum curso de pós-graduação na área se dedica a formar professores para a educação básica. (foto: Tiffany Szerpicki/ Sxc.hu)

Dos 63 cursos de mestrado e doutorado existentes na área de história no início de 2012 no Brasil, apenas dois são mestrados profissionais, um dos quais especializado em bens culturais e projetos sociais. Nenhum é devotado ao ensino de história.

Para se ter uma ideia do contraste com outras áreas, existem hoje 72 cursos de pós-graduação no Brasil dedicados exclusivamente ao ensino de ciências – física, química, biologia, ciências da terra – e matemática, entre mestrado profissional (39), mestrado acadêmico e doutorado.

Da mesma maneira, a produção acadêmica resultante de trabalhos realizados em conjunto é frequentemente desvalorizada. Por decisão dos próprios historiadores, os livros didáticos – realizados necessariamente em equipe – não são considerados pela Capes como produção intelectual qualificada, item de fundamental importância na avaliação dos programas de pós-graduação.
Dos 63 cursos de mestrado e doutorado em história no Brasil, nenhum é devotado ao ensino

O mesmo vale para textos escritos em parceria, principalmente se a coautoria for entre aluno e professor – há quem desconfie que ou o professor se aproveita do trabalho do aluno ou o aluno se aproveita do prestígio do professor para publicar – e para o conhecimento divulgado em outros meios que não a palavra escrita, como filmes e sites.

A flagrante competição entre os programas de pós-graduação – têm mais recursos e bolsas de estudos aqueles cujos professores têm produção acadêmica considerada mais qualificada – completa o quadro.

Daí não ser de espantar que a maioria dos pesquisadores da área de história só se dedique a escrever livros, artigos e capítulos para serem lidos por seus pares; que suas aulas sigam esse mesmo padrão; e que seus alunos tenham no horizonte apenas a restrita carreira acadêmica.

Seguindo esse padrão, perdemos todos: pesquisadores, professores e alunos; Perdem os programas de pós-graduação, viciados em produzir apenas o que é bem pontuado na avaliação da Capes; perdem os alunos universitários, que têm uma formação voltada para um trabalho que dificilmente exercerão e que deixam de ser qualificados em competências que fatalmente deverão desenvolver.

E perde o público, ávido por ler bons livros, ver bons filmes, frequentar bons museus e navegar em bons sites de história. 

Keila Grinberg
Departamento de História 
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Pós-doutoramento na Universidade de Michigan (bolsista da Capes)
Revista Ciência Hoje

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

“Como surgiu o sistema de castas na Índia? Ele ainda tem valor legal?”.

A hierarquia da sociedade indiana

Cláudio Costa Pinheiro, da Escola de Ciência Sociais e História da Fundação Getúlio Vargas


Embora o sistema de castas ainda esteja presente na sociedade indiana, não tem mais valor legal no país. Originalmente, as castas representavam diferentes ocupações e seus nomes designavam serviços. (foto: Flickr/ etrenard – CC BY-SA 2.0)

As castas correspondem a uma forma de identificar hierarquicamente os membros de uma sociedade a partir de grupos. Originalmente, representavam ocupações e seus nomes designavam serviços – carpinteiros, doceiros, lavadores etc. – que acabavam confirmando monopólios dessas castas sobre as atividades.

As castas são umaforma de identificar hierarquicamente os membros de uma sociedade apartir de grupos

Mas elas não representam um sistema de divisão de trabalho; pessoas de uma dadacasta podem circular entre ocupações distintas na economia. O sistema de castas é complexo, tem alto grau de endogamia.

Em textos clássicos do hinduísmo, como os cânticos do Rig Veda (2000-1000 a.C.) ou as leis de Manu (500 a.C.), já se encontramalusões à existência de quatro varnas que dividiam a sociedade: os brâmanes(sacerdotes e intelectuais), os xátrias (guerreiros, administradores e monarcas), osvaixás (comerciantes e agricultores) e os xudras (serviçais em geral). Alguns desses textos clássicos representam códigos religiosos-legais que regulamentam condutas sociais, profissionais, aspectos morais e éticos.


Os xudras incluem várias castas de ‘intocáveis’. Ocupações que lidavam com a morte, napreparação de enterros ou cremações, por exemplo, constituíram castas sobre as quais uma série de tabus proibia o contato, inclusive físico. Os quatro varnas originais dividem-se em jatis, normalmente identificadas como subcastas.


Não se devem confundir castas com classes sociais. Embora uma casta possa ser socialmente discriminada, isso não implica que seus membros sejam pobres. O inverso também é válido: membros de uma casta prestigiada podem ser desprovidos de capital financeiro.


A constituição indiana de 1950 aboliu todas as formas de discriminação, especialmente a‘intocabilidade’. Isso inaugurou políticas de discriminação positiva, chamadas ‘políticas de reserva’ (de assentos no parlamento e nas câmaras estaduais, de empregos em cargos do Estado, de vagas em universidades etc.).

O sistema de castas não tem mais valor legal na Índia, mas ainda está presente na vida cotidiana do país. Mesmo que a discriminação por casta esteja proibida, há várias formas de valorizar privilégios de castas altas, como o favorecimento em empregos.

Nascer em uma casta ainda significa quase sempre morrer nela

Nascer em uma casta ainda significa quase sempre morrer nela. A Índia, porém, tem sido sacudida pela ascensão de vários políticos de castas baixas, forçando a revisão dessa estrutura social tão hierarquicamente imóvel.

Por fim, as castas não são exclusivas do hinduísmo – existem entre muçulmanos, cristãos, sikhs e outras religiões na Índia. Além disso, são comuns a várias sociedades asiáticas e africanas.

Cláudio Costa Pinheiro
Escola de Ciência Sociais e História
Fundação Getúlio Vargas/ RJ
Revista Ciência Hoje

A pobreza condenada

Laura de Mello e Souza mostra como os pobres, que até os séculos 15 e 16 eram tratados naturalmente pela sociedade no mundo ocidental, passaram a ser considerados pessoas improdutivas e inúteis.


Ilustração do espanhol José Benlliure y Gil que mostra São Francisco misturado aos pobres pedindo esmola. Nos séculos 15 e 16, houve uma mudança radical no tratamento dado à pobreza, que antes era associada à santidade.


No mundo ocidental, os séculos 15 e 16 viram-se marcados por transformações profundas. A centralização política substituiu a fragmentação medieval, o comércio cresceu e deu força à burguesia, o controle da terra se tornou privilégio de alguns, solapando a exploração comunal: os cercamentos ingleses, com seus muros de pedra que confinavam os carneiros e impediam o acesso dos seres humanos, são uma espécie de emblema desse processo.
A pobreza eraconsiderada natural e, às vezes,associada à santidade

Até então, a pobreza era considerada natural e, às vezes, associada à santidade. Quem desejasse renunciar às vaidades terrenas começava, quase sempre, por abrir mão de seus bens, como São Francisco de Assis, Santo Inácio de Loiola ou Santa Teresa de Ávila.

O voto de pobreza sempre foi requisito para ingressar na vida religiosa, a tradição cristã rezando ser mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus. Cada convento ou mosteiro tinha seus comensais pobres, que ali acorriam para receber a sopa e o pão. Cada aldeia tinha seus mendigos e aleijados, conhecendo-os pelo nome e os socorrendo conforme pudesse.

Mas as coisas mudaram de modo radical. Vastos contingentes de trabalhadores deixaram os campos rumo às cidades e quem nada tinha além da força de trabalho procurou viver dela, muitas vezes sem sucesso. Nas ruas, nas estradas, nos adros das igrejas, os mendigos constituíam multidão.


Detalhe da tela ‘São Francisco casando-se com a pobreza’, pintada em 1633 pelo italiano Andrea Sacchi. O voto de pobreza sempre foi requisito para ingressar na vida religiosa.

Juan Luís Vives (1492-1540), grande humanista hispano-flamengo e um pioneiro na reflexão sobre os pobres, não deixou de retratá-los com impiedade, condenando-os por “desavergonhada e inoportunamente” abrirem caminho no interior dos templos, “deformados por suas pústulas, exalando dos corpos um odor insuportável” e distraindo a atenção dos fiéis que assistiam à missa.

Na Roma do papa Sixto V, a situação se tornou tão grave que uma bula papal de 1587 fulminou os vagabundos que erravam como animais pelos lugares públicos, vociferando contra a sorte. Estrangeiros nas vilas e cidades sobre as quais se atiravam, esses pobres em movimento eram vistos como ameaçadores, com seus rostos desconhecidos. Em 1516, o Parlamento de Paris decretou a expulsão dos vagabundos, que dessa formase deslocariam para outros núcleos urbanos até serem expulsos de novo.
Pobres e vagabundos não eram senão o “peso inútil da terra”

Pobreza e itinerância deixaram assim de ser toleradas pela Igreja e pelos organismos de assistência para se tornar alvo de ações governamentais. Os nascentes Estados europeus foram, sem exceção, ferrenhos opositores dos pobres, procurando transformá-los em indivíduos úteis à República e impedir que pesassem sobre a ‘parte saudável’ da sociedade.

Pobres e vagabundos, pontificaria um jurista francês do século 17, não eram senão o “peso inútil da terra”. Hospícios, casas de trabalho forçado e obras públicas absorveram um número cada vez maior dessas criaturas, obrigando-as a se ocupar em trabalhos manuais, a remar nas galeras do rei – como na França de Luís XIV –, a abrir estradas por toda a Europa, da Holanda calvinista ao Portugal ultracatólico.

Mais da metade dos pobres socorridos em 1541 pela paróquia de Santa Gertrudes, nacidade flamenga de Louvain, eram crianças. Dez anos depois, 60% dos miseráveis de Segóvia eram mulheres, cifra que em Medina del Campo – ambas cidades da Espanha –atingia então os 83%.

A história de João e Maria, abandonados na floresta pelos pais miseráveis e atraídos pelabruxa, sintetiza admiravelmente esse mundo no qual os desvalidos penavam parasobreviver e a pobreza era cada vez mais associada ao desvio e à maldade. Porque muitas das mulheres perseguidas por bruxaria nos séculos 16 e 17 eram viúvas pobres, vistas como improdutivas e desprovidas de qualquer utilidade.

Laura de Mello e Souza
Departamento de História
Universidade de São Paulo
Revista Ciência Hoje

Questão Christie

Mais do que uma questão de honra

Keila Grinberg resgata a ‘Questão Christie’, registrada na história como um episódio pouco importante de disputa entre Brasil e Inglaterra. Novas pesquisas, porém, revelam o que estava em jogo no imbróglio: a força da escravidão no Brasil imperial.

Detalhe de ‘Estudo para a Questão Christie’ (1864), do pintor brasileiro Victor Meirelles (1832-1903). O imbróglio Brasil-Inglaterra tem sido tratadocom descaso, mas estudos recentes buscam reforçar sua importância e esclarecer o cerne da disputa.

Abra um manual qualquer de história, desses de ensino médio. Qualquer um. Veja o quehá escrito sobre a Questão Christie. Eu sei. Se você não está fazendo Enem ou vestibular, você não tem a menor ideia do que seja a Questão Christie.

Para refrescar a memória: estamos em 1861, ano em que o veleiro britânico ‘Prince of Wales’ encalhou na costa do Rio Grande do Sul, quando seguia em direção a Buenos Aires. A tripulação abandonou o navio e alguns foram pedir ajuda na cidade de Rio Grande. Enquanto isso, a população local resolveu apoderar-se da carga. Quandovoltaram ao navio, os marinheiros encontraram dez dos seus companheiros mortos na areia.

William Christie, então embaixador britânico no Brasil, foi imediatamente avisado. Ele apresentou uma reclamação formal do governo britânico a D. Pedro II, imperador do Brasil, e exigiu que o governo brasileiro pedisse desculpas e indenizasse os ingleses. O imperador não fez nada.

No ano seguinte, no Rio de Janeiro, dois integrantes da Marinha Real Britânica, aparentemente embriagados e em trajes civis, envolveram-se em uma briga com marinheiros brasileiros. Ao que parece, era briga por mulher. Mas não importou. A polícia prendeu os dois por uma noite.

Dois dias depois, o governo brasileiro enviou uma nota ao embaixador britânico, o mesmo Christie, solicitando que os marinheiros ingleses fossem colocados à disposição das autoridades brasileiras, para que fossem julgados no Brasil. Christie não só negou o pedido – na época, os ingleses residentes no Brasil eram julgados pela Justiça de seu próprio país – como ainda foi ter novamente com o imperador. Ele disse que, se a indenização pela carga do navio naufragado não fosse paga e os marinheiros brasileiros envolvidos na confusão não fossem detidos, a Marinha Real Britânica bloquearia a entrada da baía de Guanabara.

D. Pedro II não quis nem saber. Se os ingleses quisessem, que viessem; os brasileiros estavam prontos para a guerra. Nesse mesmo ano de 1862, chegou ao Rio de Janeirouma esquadra de guerra britânica que bloqueou o porto, apreendeu cinco navios brasileiros e exigiu o pagamento de 3,2 milhões de libras esterlinas como indenização aos prejuízos causados aos ingleses. O que também não foi feito.
D. Pedro II não quis nem saber. Se os ingleses quisessem, queviessem; os brasileiros estavam prontos para a guerra

A população brasileira começou a protestar e ameaçar com represálias cidadãos britânicos residentes no país. Daí em diante, as relações azedaram de vez: diante das tensões diplomáticas e dos pedidos de indenização – o Brasil também pediu indenização e exigiudesculpas pela apreensão de embarcações brasileiras por ingleses em 1863 –, as duas partes concordaram que o rei Leopoldo I da Bélgica arbitrasse o conflito.

Como se acreditava que Leopoldo I fosse favorecer os ingleses, o Brasil acabou pagando a indenização antecipadamente aos britânicos. Mas não foi o que aconteceu. O rei belga deu parecer favorável aos brasileiros, mas os ingleses não devolveram o dinheiro e só pediram desculpas dois anosdepois.

Esse imbróglio, conhecido como ‘Questão Christie’, foi o o ápice do endurecimento das relações entre Brasil e Inglaterra, ácidas durante todo o século 19 por conta do comérciode escravos, que a Inglaterra condenava e, a partir de 1845, abertamente reprimia, e queo Brasil, quase tão abertamente quanto, defendia. 


Pouco caso

Mas o curioso de tudo isto é que o episódio ficou marcado, nas narrativas sobre o assunto, como tendo sido um incidente que só teria ganhado maiores proporções devidoàs disputas pela honra pátria: o Brasil teria ferido a honra inglesa, desrespeitando os marinheiros britânicos, e estes, por sua vez, teriam ferido a honra nacional brasileira.

Essa interpretação foi construída, inclusive, no momento em que tudo aconteceu: as charges das revistas de época mostram Christie tanto interventor quanto exagerado, dando mais importância ao episódio do que ele, de fato, teria tido.

Caricaturas das relações anglo-brasileiras, de Henrique Fleiuss, publicadas no hebdomadário 'Semana Illustrada', em 11 de janeiro de 1863, no ápice da Questão Christie. 


O ilustrador Henrique Fleiuss expressa, no desenho, a resposta brasileira à intervenção inglesa no território nacional. A ilustração foi publicada na 'Semana Illustrada', no Rio de Janeiro, em 25 de janeiro de 1863.

As leituras de época fizeram escola entre os historiadores, que nunca prestaram muita atenção à importância da questão Christie. Isto, até agora. Novas pesquisas sobre as relações internacionais no Império brasileiro vêm mostrando que os episódios ocorridos entre 1861 e 1865 foram apenas o estopim de um quadro de tensão que vinha há muito tempo se agravando.

Isto é o que demonstram historiadores como Beatriz Galotti Mamigonian, professora da Universidade Federal de Santa Catarina, e Daryle Williams, professor da Universidade deMaryland, nos Estados Unidos, que proferiu a palestra ‘Repensando a Questão Christie: africanos, cidadania, e nação no conflito anglo-brasileiro’, no 3º Congresso Internacionaldo Pronex ‘Dimensões e fronteiras do Estado brasileiro no século XIX’, que aconteceu esta semana na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

Combate/defesa da escravidão

Daryle Williams mostrou que a Questão Christie foi muito mais do que uma disputa em torno da honra nacional acirrada pelo sentimento popular antibritânico. Ao longo das décadas de1840 e 1850, Christie e seus antecessores no Brasil denunciaram continuamente as tentativas brasileiras de desrespeitar a própria legislação brasileira contra o tráfico deescravos, não só por continuar a introduzir africanos escravizados no Brasil, mas também por manter em regime de cativeiro até mesmo aqueles africanos considerados, pelo Estado brasileiro, livres.

Em conferência na Uerj, o historiador Daryle Williams mostrou que a Questão Christie foi muito mais do que uma disputa em torno da honranacional acirrada pelo sentimento popular antibritânico. O imbróglio estavamais relacionado ao descontentamento dos brasileiros diante da pressão inglesa contra a escravidão no Brasil. (foto cedida por Williams)

Além disso, principalmente depois de 1850, quando o tráfico de escravos foi abolido pela segunda vez no Brasil, Christie suspeitava abertamente da sinceridade docomprometimento brasileiro com o fim do tráfico. Foi isto o que ele escreveu em seu livroNotes on Brazilian questions, publicado em 1865.

Nele, Christie argumenta que os episódios que geraram a chamada Questão Christie não seriam nada se não houvesse um grande ressentimento de setores poderosos da sociedade brasileira diante da atuação dos ingleses em geral, e a sua em particular, contra o tráfico de escravos e a escravidão no Brasil.

É claro que o livro de Christie, que, curiosamente, nunca mereceu muita atenção nas análises sobre o conflito, pode ser lido como uma narrativa pessoal e autojustificatória sobre os eventos.

Mas reduzir sua argumentação a um texto autolaudatório seria mais do que simplista. Seriadeixar de ver que o que estava em jogo na crise de 1863 com a Inglaterra era a defesa da escravidão. Ou, para citar o título do mais recente livro de Sidney Chalhoub – que também menciona o livro de Christie –, o que estava em jogo era a força da escravidão no Brasil.
Foi por denunciar as tentativas deburlar a proibição ao tráfico negreiro e a escravização ilegal de africanos e seus descendentesque Christie e outros diplomatas britânicos caíram em desgraça

Em um quadro de forte sentimento antibritânico existente havia décadas, Daryle Wiliams mostrou que foi por denunciar as tentativas deburlar a proibição ao tráfico negreiro e a escravização ilegal de africanos e seusdescendentes na década de 1850 que Christie e outros diplomatas britânicos caíram emdesgraça no país e fizeram com que os incidentes de 1863 ganhassem uma proporção muito maior do que mereciam.

Afinal de contas, ainda por anos a fio, a defesa da escravidão seria uma questão de honra no Brasil.

Em tempo: se você, que está fazendovestibular, chegou até aqui na leitura, já sabe o que responder na próxima vez que sedeparar com uma dessas questões de múltipla escolha sobre a Questão Christie. A resposta certa não é ‘incidente diplomático envolvendo marinheiros britânicos embriagados no Brasil’.

Keila Grinberg 
Departamento de História 
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Revista Ciência Hoje

"Qual a origem do nome ‘Brasil’?

Laura de Mello e Souza

O nome desta terra de além-mar permaneceu 'polêmico' durante muitotempo: só no século 18 a utilização de Brasil consolidou-se, em vez deTerra de Santa Cruz. (foto: Vinícius Silva Couto)

O nome do Brasil foi e continua sendo objeto de muitas discussões. Referências, em mapas, a uma ilha chamada Brasil – em que a denominação aparece com muitas variantes – remontam à Idade Média. Quando os portugueses chegaram à costa sul-americana, em 1500, a primeira denominação escolhida foi Ilha de Vera Cruz, logo substituída por Terrade Santa Cruz. Essa forma perdurou ao longo de todo o século 16 e, a partir das primeiras décadas, conviveu com a denominação de Terra do Brasil, em virtude provavelmente damadeira então muito comercializada para tingir panos, o famoso pau-brasil.
Quando os portugueses chegaram à costa sul-americana, em 1500, a primeira denominaçãoescolhida foi Ilha de Vera Cruz

Em Portugal, círculos de letrados mais ligados ao comércio passaram a usar o nome de Brasil para as terras americanas, enquanto aqueles mais imbuídos dos intuitos salvacionistas e preocupados com a catequese dos indígenas continuavam usando o nome de Terra de Santa Cruz. Essa ambivalência aparece até em obras escritas por um único autor: Pero de Magalhães Gandavo escreveu, por volta de 1570, umTratado da Terra do Brasil e, cinco anos depois, escreveria uma História da Província de Santa Cruz.

Em 1728, o livro de Sebastião da Rocha Pitta expressou uma tendência que ia então se consolidando: escreveu uma História da América Portuguesa. Com o tempo, e ao longodo século 18, contudo, fortaleceu-se o nome Brasil, e os ‘brasileiros’ deixaram de ser apenas os comerciantes do pau de tinta para se tornarem os habitantes portugueses daAmérica, até que a Independência de 1822 fizesse deles brasileiros de fato.

Laura de Mello e Souza
Departamento de História 
Universidade de São Paulo
Revista Ciência Hoje

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Islã em perspectiva

A historiadora e cientista política Beatriz Bissio, autora do livro 'O mundo falava árabe', apresenta uma visão sem simplificações da rica cultura islâmica e resgata parte de sua história a partir da obra de dois autores clássicos do século 14.

Henrique Kugler


A pesquisadora da UFRJ Beatriz Bissio oferece ao leitor um olhar refinado e profundo sobre o florescer do islã, bem diferente da visão simplificada que costuma deturpar essa cultura. (foto: divulgação)


Primeiros séculos da era cristã, Europa em ruínas. Enquanto o velho continente agonizavaem crises profundas, o Império Islâmico vislumbrava um esplendor civilizatório semprecedentes. Não apenas pela conquista de vastos territórios – que se estendiam da península ibérica à Índia –, mas também por reunir os mais sofisticados conhecimentos disponíveis então. Foram os árabes os grandes herdeiros da sabedoria grega.

Também foram eles os compiladores e tradutores das principais obras persas, mesopotâmias, egípcias e hindus. Para os estudiosos, o islã é muito mais do que sugere a fugacidade noticiosa de nossos dias. “Temos em geral uma visão distorcida do islamismo, originada em uma simplificação que deturpa completamente o que é essa civilização e essa cultura.”
“Temos em geral uma visão distorcida do islamismo, originada em uma simplificação que deturpa completamente o que é essa civilização e essa cultura”

São palavras da historiadora e cientista política Beatriz Bissio, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em outubro, ela lançou o livro O mundo falava árabe [Civilização Brasileira] durante o 36º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), emÁguas de Lindoia (SP) (ver ‘Diálogos e reflexões’, nesta edição).

É uma elegante narrativa sobre a história doislã a partir de dois autores clássicos do século 14: Ibn Khaldun (1332-1406), destacado historiador que, para alguns, inaugurou o pensamento sociológico islâmico, e Ibn Battuta (1304-1368), viajante que percorreu longas distâncias do norte da África à Ásia e registrou em detalhe o que viu em suas andanças. Da comparação entre esses dois registros – do historiador e do viajante – Bissio oferece ao leitor um olhar tão refinado quanto profundo acerca do florescer da civilização islâmica.


No Brasil, poucos são os escritos sobre o islã. Qual foi sua motivação para lançar O mundo falava árabe? 
Escrevi o livro porque quis aprofundar meus conhecimentos sobre o assunto. Sou também jornalista, e por duas décadas viajei para cobrir a realidade do Oriente Médio e do norte da África. Vivenciei as guerras do Líbano e do Iraque, a questão Israel-Palestina, entre outros temas, na Argélia, Líbia e Egito. Fui uma das fundadoras da revista Cadernos do Terceiro Mundo, em Buenos Aires, em 1974, e sediada no Brasil a partir de 1980. Viajava regularmente ao Oriente Médio e à África, e o islã era sempre um dado da realidade sobre a qual escrevia.

Admirava profundamente a cultura, mas, por nunca tê-la estudado em profundidade, sentia que a minha visão ficava muito restrita aos fatos do cotidiano, nem sempre compreensíveis sem a perspectiva da história. Iniciei um estudo mais sistemático, e disso resultou minha tese de doutorado, defendida na Universidade Federal Fluminense [UFF], posteriormente adaptada em livro.

Por que escolheu Ibn Khaldun e Ibn Battuta como personagens centrais de seu estudo? Quem são esses autores? 
Quis estudar a civilização islâmica a partir do olhar de seus próprios autores, e a obra de Ibn Khaldun, historiador que nasceu em Túnis (atual Tunísia) no século 14, não pode ser ignorada. Ele foi provavelmente o autor islâmico mais representativo de seu tempo. Minha orientadora [Vânia Leite Fróes, da UFF] foi quem sugeriu estabelecer uma espécie de contraponto entre os escritos de Ibn Khaldun e os relatos de seu contemporâneo Ibn Battuta, um viajante que ao longo de quase 40 anos percorreu longas distâncias pelos vastos domínios do Império Islâmico.

Por que Khaldun é considerado tão importante? 
Suas reflexões, traduzidas em vários trabalhos, são extremamente complexas e sofisticadas. Sua obra-prima, os Prolegômenos (Muqaddimah), é considerada o momento fundacional do pensamento sociológico islâmico. Não é uma obra tradicional de história, como as que eram comuns até então, limitadas a narrar cronologias de dinastias. Ibn Khaldun inaugura um estudo que visa o entendimento das causas dos fenômenos históricos e, mais do que isso, os estudos sobre a sociedade humana. Moderno para a época, não? Extremamente moderno.



Uma estátua de Ibn Khaldun na Tunísia e uma ilustração de Ibn Battuta, autores clássicos do islamismo. (imagens: Wikimedia Commons)

É uma descoberta para o Ocidente que um pensador islâmico, no século 14, tenha trabalhado questões que vieram a ser estudadas, no mundo ocidental, somente dois séculos depois. Ao teorizar sobre estado, autoridade e poder, Ibn Khaldun antecipa [Thomas] Hobbes [1588-1679] e [Jean-Jacques] Rousseau [1712-1778]. Fez também descrições detalhadas da relação entre o ser humano e os demais seres vivos. Uma riqueza é a obra de Ibn Khaldun.

E quanto a Ibn Battuta? 
Viajou durante quase 40 anos, por um território equivalente ao que hoje seriam 46 países. O mundo islâmico era alicerçado pela língua árabe; o viajante poderia sair do Marrocos, percorrer toda a Ásia central e chegar à China falando árabe! Era a língua franca da época (daí o título de meu livro).
Ávido por incorporar a sabedoria da valiosa fonte de informações que era Ibn Battuta, o califa encomendou um relato escrito dessas viagens. Assim nasceu aRihla, uma obra fascinante

Ibn Battuta era juiz em Tanger (atual Marrocos) e iniciava sua viagem de peregrinação à Meca, obrigação de todo bom muçulmano. Mas, ao se desprender de seu país e de seu entorno, descobre que tem uma paixão pela aventura, pelo conhecimento, por desvendar os mistérios do mundo – e vai sempre acrescentando novos desafios à sua jornada. Acaba fazendo três vezes a peregrinação. Quando retorna à sua terra, depois de décadas, já havia uma espécie de lenda em torno dele, o viajante que nunca aparece. Pensavam que tinha morrido.

A corte o recebeu muito bem, e o califa estava interessadíssimo em conhecer o mundo pelos relatos daquele viajante que percorrera, por tanto tempo, os domínios daquele que fora o maior império na época medieval. Ávido por incorporar a sabedoria da valiosa fonte de informações que era Ibn Battuta, encomendou um relato escrito dessas viagens. Assim nasceu a Rihla [em tradução livre, ‘jornada’], uma obra fascinante.

Na época já havia uma tradição de literatura de viagens – que se tornou um gênero literário nas letras árabes. Isso se deu principalmente em função da obrigatoriedade da peregrinação à Meca. Onde pernoitar? Que cuidados tomar? Que alimentos serão encontrados pelo caminho? Como planejar o retorno? Naquele tempo, criou-se uma tradição literária em torno dessas questões. No caso de Ibn Battuta, porém, o relato ganhou dimensões muito mais expressivas, pois sua viagem foi a jornada de toda uma vida.

Mas ele percebeu que não teria condições de produzir um texto com a beleza estilística que esse tipo de depoimento exigia. Então ditou suas memórias a um poeta, que deu forma definitiva ao livro. O resultado é muito interessante: um verdadeiro relato etnográfico. Descreve a estrutura social dos locais por onde passou, as vestes, a culinária, os hábitos, as relações de poder, as interações entre homens e mulheres, as formas de se pensar e viver a religião... Trata-se de um documento histórico e antropológico da maior importância.
Revista Ciência Hoje

Era de Hobsbawm

Antropólogo homenageia historiador falecido e comenta sua importância para os estudos sobre trabalhadores e camponeses.

José Sergio Leite Lopes


Charge de Eric Hobsbawm feita pelo desenhista brasileiro Cássio Loredano e publicada na revista CH de março/abril de 1986. O historiador faleceu no dia 1 de outubro de 2012, deixando importante legado sobre a história do século 20.


A morte de Eric Hobsbawm (1917-2012), fechando a longa trajetória que o habilitou a ser um observador privilegiado e arguto do século 20 (e da primeira década do século 21), pôs em evidência sua popularidade e celebridade – qualidades raras para um historiador erudito e contestatário. Sua tetralogia sobre as Eras – das revoluções, do capital, dos impérios e, finalmente, dos extremos –, o projetou como um autor difundido internacionalmente, do ensino médio às pós-graduações.

Foi o primeiro desses livros, A era das revoluções: 1789-1848, que fez dele um historiador conhecido por um grande público. Publicado em 1962, quando tinha 45 anos, A era das revoluções é um livro de síntese e erudição histórica (de “haute vulgarisation”, como o autor classifica, ironicamente, logo no prefácio), em que Hobsbawm demonstra sua capacidadede dar uma interpretação para o período, utilizando os recursos da história social, que vinha renovando o campo da história pós-Segunda Guerra.

A obra inaugurou-lhe o caminho da fama mundial. Foi traduzido em várias línguas edestacou-se no florescente mercado editorial dos livros de história moderna e contemporânea. Até então, Hobsbawm havia feito importantes contribuições sobre a história dos trabalhadores na Europa industrializada e sobre movimentos eivados de tradição e rebeldia na Europa do sul. Mas foi como segunda opção que a prestigiosa editora Weidenfeld & Nicolson, que procurava um escritor erudito para a coleção de história das civilizações, chegou a Hobsbawm. A indicação deveu-se ao historiador J. L. Talmon, que havia declinado do convite.


Em seguida, Hobsbawm pôde então reunir  em livro seus artigos anteriores publicados em revistas especializadas, como em Os trabalhadores, de 1964. Nos anos 1960, publicou ainda uma longa introdução às Formações pré-capitalistas, manuscritos então recém-editados de Karl Marx, que corroboravam os ventos renovadores não-evolucionistas do marxismo crítico, particularmente forte entre os historiadores britânicos à época;Da revolução industrial inglesa ao imperialismo; e Bandidos, em que prolongava as preocupações de um dos seus primeiros livros, Os rebeldes primitivos.

Em 1970, tornou-se professor efetivo do Birkbeck College da Universidade de Londres, instituição onde ensinava desde 1947. A explícita militância marxista de Hobsbawm teve por efeito retardar sua ascensão nos postos universitários. Apesar de aluno de destaque em Cambridge, acabou por encontrar seu lugar na instituição universitária de ensino noturno, cujos alunos trabalhavam durante o dia, característica do Birkbeck College.

Assinale-se que o trabalho nos cursos universitários de formação de adultos ou de formação continuada teve uma importância comum à carreira de autores como E. P. Thompson e Raymond Williams, além de exilados do nazismo como Norbert Elias e Karl Polanyi.


Movimentos sociais

Antes da fama decorrente da publicação da Era das revoluções, Hobsbawm havia publicado dois livros. O primeiro, Labour’s turning point (1948), insere-se nos estudos dos movimentosde trabalhadores na Inglaterra no final do século 19, área em que havia se tornado especialista.

O segundo, Rebeldes primitivos (1959), resultou do estímulo dado por Max Gluckman e seu grupo de antropólogos da Universidade de Manchester. Certamente chegou ao conhecimento desses antropólogos – especialistas na África contemporânea e interessados nos movimentos anticoloniais que ali vinham se desenvolvendo – a experiência deHobsbawm nos movimentos de rebelião ‘tradicional’ no seio de populações camponesas ou artesãs do sul da Europa, na Espanha e na Itália, desde 1952. O grupo o convidou, em 1956, para dar três conferências sobre tal experiência e, em 1959, foi publicado o livro pela editora daquela universidade.

Por meio de observação direta e do trabalho em arquivos locais nos países estudados sobre grupos de camponeses e trabalhadores rurais atingidos pela expansão do capitalismo e sua forma de resistência ‘pré-política’ (isto é, anterior ao seu pertencimento ao teatro da grandepolítica nacional), Hobsbawm prolonga a sensibilidade histórica que tivera com manifestações similares de trabalhadores urbanos pré-industriais da própria Inglaterra. Tais análises foram apresentadas nos artigos “Os quebradores de máquinas” (1952) e “Os artesãos itinerantes” (1951), depois reunidos no livro Os trabalhadores.

É interessante observar como essa ligação pioneira da história social, à qual pertenceHobsbawm, com os antropólogos e a temática antropológica acaba não sendo devidamente ressaltada, hoje, com a onda de aproximação, a partir dos anos 1980, entre história e antropologia na chamada ‘história cultural’.
Hobsbawm iniciou a história social do trabalho não limitada aos trabalhadores organizados, suas organizações e líderes, mas voltada para asexperiências das classes trabalhadoras

No que diz respeito à história do trabalho,Hobsbawm contribuiu pioneiramente para a passagem da história das instituições operárias – partidos e sindicatos – para a história social da classe operária. Ele inicia assim uma história social do trabalho não limitada aos trabalhadores organizados, suas organizações e líderes, mas voltada para as experiências das classes trabalhadoras. Além disso, esteve atento às ligações entre a história do campesinato em diferentes países e a dos trabalhadores industriais. Foi, ainda, o introdutor e primeiro sistematizador da noção de ‘invenção das tradições’.

Com a fama alcançada nos anos 1960 e a titularidade universitária nos anos 1970,Hobsbawm foi convidado para atividades em inúmeros países. No Brasil, como conta em seu livro autobiográfico Tempos interessantes, participou de um famoso seminário dehistória na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em 1975, em plena ditadura, quando foi testada a tolerância da repressão com eventos acadêmicos que provocavam interesse maior do público universitário.

Naquele evento, apresentou um trabalho sobre movimentos pré-políticos do campesinato e teve como debatedor o antropólogo Otávio Velho. Na mesma viagem, apresentou no Museu Nacional seu trabalho sobre ocupações de terra no Peru, em palestra que marcou época naquela instituição.

Em 1992, teve uma mesa em sua homenagem, intitulada ‘A era de Hobsbawm’, em seminário com a sua presença, promovido no Sindicato dos Trabalhadores Químicos de São Paulo pelo Instituto Cajamar, de formação sindical. Foram inúmeras suas vindas ao Brasil, onde tinha como interlocutores intelectuais e lideranças de trabalhadores, inclusive os últimos dois ex-presidentes da República. 

José Sergio Leite Lopes
Museu Nacional
Universidade Federal do Rio de Janeiro
 Revista Ciência Hoje

Filósofo do samba

Morreu aos 26 anos, mas foi um divisor de águas na canção popular urbana no Brasil. Livro recém-lançado analisa o uso estratégico do humor e da ironia na obra de Noel Rosa.

Por: Gabriela Reznik


Livro explora sambas em que Noel Rosa usava humor e ironia para falar de coisa séria. A obra é temperada por histórias e curiosidades do universo artístico da época. (imagem: Luiz Fernando Reis/ CC BY 2.0 sobre caricatura de Guilherme Bandeira)


"Vivo escravo do meu samba / muito embora vagabundo". Se no imaginário popular da década de 1920 o malandro era aquele que não queria saber de trabalho, vivia do jogo e na orgia, na obra do cantor e compositor Noel Rosa (1910-1937) – autor dos versos acima –, o personagem recebe outra roupagem. Em sua música, ele está associado à imagem do sambista, que usa do humor e da ironia para expor sua condição marginal na sociedade e criticar os valores dominantes da época.


A  análise é da especialista em educação Mayra Pinto, da Universidade de São Paulo (USP), autora do livro Noel Rosa: o humor na canção, lançado em maio deste ano, mês que marcou os 75 anos de morte do compositor.

Para quem busca uma leitura leve, o livro pode não ser o mais indicado. A autora faz uma análise aprofundada de canções do poeta da Vila, que perpassam sua trajetória musical nos sete anos de intensa produção, até sua morte prematura por tuberculose aos 26.

Por ser uma adaptação da pesquisa de doutorado de Mayra Pinto, o livro traz resquícios da linguagem e organização acadêmica – com introdução, desenvolvimento e conclusão –, tornando-se, muitas vezes, um tanto hermético para os não familiarizados com termos técnicos empregados na análise musical e literária.

Com base nos conceitos filosóficos do pensador russo Mikhail Bakhtin (1895-1975), a autora foca o papel da ironia na poesia de Noel, explorando os sambas em que apresenta uma abordagem crítica sobre a condição social do sambista, seu jeito “falado” de cantar e sua contribuição para uma nova formatação da canção popular urbana.
A autora foca o papel da ironia na poesia de Noel, seu jeito “falado” de cantar e sua contribuição para uma nova formatação da canção popular urbana

A autora enriquece a leitura com detalhes históricos e curiosidades do universo artístico no qual Noel viveu ao lado dos sambistas do Estácio, cujos principais representantes foram os compositores Ismael Silva (1905-1978) e Nilton Bastos (1899-1931).

Mayra Pinto avalia que o período foi um divisor de águas na trajetória do samba, cujo legado se estende aos dias de hoje. Com pé no samba de roda e no carnaval, o grupo do Estácio revolucionou o estilo da canção, “em que um estribilho fixo era cantado por todos enquanto um solista fazia os improvisos com letras variantes”. Antes, nos sambas tradicionais, não havia uma estrutura única.

No canto, Noel se destaca pelo domínio do discurso falado, cujo maior exemplo, segundo a pesquisadora, é a interpretação da canção ‘Gago apaixonado’. Contrariando o estilo usual da voz impostada, influenciada pelo canto de ópera, “ele se filia ao tipo de interpretação criada magistralmente por Mário Reis, que igualmente tinha uma voz não tão potente e primou por um canto mais ‘falado’”, conta a autora em trecho do livro.


O riso que denuncia

Noel Rosa trocou o futuro “promissor” de médico – cursou um ano da faculdade de medicina – pelo de sambista aos 20 anos de idade. A escolha teria sido determinante para que o samba assumisse um “centro emanente de positividade” na obra do poeta.
“Noel fundou uma voz que canta, amargamente, as vicissitudes de se produzir arte num país em que o reconhecimento do artista pobre não é algo fácil de ser conquistado”

“Noel fundou uma voz que canta, amargamente, as vicissitudes de se produzir arte num país em que o reconhecimento do artista pobre não é algo fácil de ser conquistado”, afirma a pesquisadora. “Mas canta alegremente, e com o orgulho de produzi-la apesar disso.”

Se os versos de Noel provocam riso, também deflagram tensões existentes entre o universo de pobreza e marginalidade do malandro e o mundo do trabalho formal. Segundo a autora, é nesse sentido que o humor se configura como uma estratégia de ‘disfarce’ ao permitir que um viés crítico permeasse suas canções sem deixar margem para censura – que se fazia fortemente presente naquele período

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Na cena-estátua que homenageia o poeta, fincada em Vila Isabel, Noel é servido por um garçom. Apesar da morte precoce aos 26 anos, o compositor tem obra extensa, que marca a história do samba. (foto: Wikimedia Commons/ Junius – CC BY-SA 3.0)

No fim das contas, o livro é uma homenagem ao sambista que, em tão pouco tempo de vida, marcou significativamente a canção popular. Reconhecimento expresso nos versos póstumos compostos por Cartola: “Era o rei da filosofia / Fez da musa o que queria / Zombou da inspiração / Os seus versos ritmados / Por ele mesmo cantados / Tinham bela entoação”.

Noel Rosa: o humor na canção
Mayra Pinto
São Paulo, 2012, Ateliê Editorial
216 páginas

REVISTA CIÊNCIA HOJE