domingo, 28 de outubro de 2012

O que foi o Tropicalismo?


Thaís Sant’ana

Foi um movimento surgido em 1967 que revolucionou o modo de fazer a música popular brasileira. Ele chamou a atenção do público na terceira edição do Festival de MPB da emissora Record – uma espécie de American Idol da época, com forte teor político. Nesse show, Caetano Veloso cantou Alegria, Alegria acompanhado por guitarras elétricas. Foi um escândalo, já que elas eram consideradas ícones do imperialismo americano (e a MPB sempre esteve associada ao violão, especialmente na bossa nova). Mas o objetivo era exatamente este: arejar a elitista e nacionalista cena cultural brasileira, tornando nossa música mais universal e próxima dos jovens.

O nome surgiu em um texto do crítico Nelson Motta, que se inspirou na obra Tropicália, do artista plástico Hélio Oiticica.


SEM LENÇO NEM DOCUMENTO

Conheça os maiores representantes da Tropicália

COMO ERA...

As características do movimento

Mistura de vários estilos: rock, bossa nova, baião, samba, bolero...

Letras com tom poético, que abordavam temas cotidianos e camuflavam críticas sociais (mas sem oposição política explícita). Uso constante de guitarras elétricas. Mistura de tradições da cultura nacional e inovações estéticas internacionais, como a pop art.

Luta contra barreiras comportamentais, defendendo, por exemplo, o sexo livre.

O IDEALIZADOR

CAETANO VELOSO

Principais músicas: Alegria, Alegria (1967), Tropicália ou Panis et Circencis (1968), É Proibido Proibir (1968) e Atrás do Trio Elétrico (1969). Apesar de ter sido vaiada, Alegria, Alegria estourou nas rádios. O disco vendeu mais de 100 mil cópias, valor alto para a época. Ao lado de Gil, Caetano tentou trazer para o movimento outros cantores de sua geração, como Dorival Caymmi, Chico Buarque, Edu Lobo ePaulinho da Viola, mas não conseguiu.

OS ROQUEIROS

OS MUTANTES

Principais músicas: Tropicália ou Panis et Circensis (1968), Miserere Nobis (1968), Bat Macumba (1968) e A Minha Menina (1968). Enquanto Gil e Caetano tinham um projeto consciente para a música brasileira, Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias se aproximaram do movimento porque sentiram que, com ele, poderiam fazer seu som descompromissado e cheio de ironia. Estavam mais para o rock dos Beatles do que para a crítica política da Tropicália.

O SEGUIDOR

GILBERTO GIL

Principais músicas: Domingo no Parque (1967), Tropicália ou Panis et Circencis (1968) e Aquele Abraço (1968). Gil se arriscou no 3º Festival com a canção Domingo no Parque e a companhia do grupo de rock Os Mutantes. Embora também tenha recebido vaias, sagrou-se vice-campeão. Em 1969, assim como Caetano, foi preso pela ditadura militar e partiu para o exílio político, marcando o fi m do Tropicalismo.

O EXPERIMENTADOR

TOM ZÉ

Principais músicas Parque Industrial (1968) e São Paulo, Meu Amor (1968). Levou o Festival do ano seguinte (já quase todo “tomado” pelos tropicalistas) com São Paulo, Meu Amor. Ainda em 1968, gravou o primeiro disco solo. Um dos compositores e instrumentistas mais inventivos do Brasil, foi descoberto pelo músico inglês David Byrne nos anos 80 e, desde então, continua influente tanto no Brasil como no exterior.

O disco The Best of Tom Zé, de 1990, foi eleito pela revista Rolling Stone dos EUA um dos dez melhores da década!

A MUSA

GAL COSTA

Principais músicas: Não Identificado (1969), Divino,Maravilhoso (1968), Mamãe, Coragem (1968) e Baby (1968). Uma das principais parceiras de Caetano até hoje, Gal ficou em quarto lugar no Festival de 1968 com uma canção composta por ele, Divino, Maravilhoso. Com o exílio de seu grande infl uenciador, em 1969, Gal passou a trabalhar com outros compositores e, pouco tempo depois, iniciou uma fase mais “comercial” de sua carreira.

Outros membros importantes: o maestro e organizador Rogério Duprat e os letristas Torquato Neto e Capinam.

...E COMO FICOU

Onde você encontra a influência deles

Em outras formas de arte que aproveitaram a “carnavalização” tropicalista, como o cinema (Terra em Transe, de Glauber Rocha) e o teatro (a montagem de José Celso Martinez Correa para O Rei da Vela).

Em bandas que também mesclaram tradições nacionais e inovações estrangeiras, como Secos Molhados e Chico Science e Nação Zumbi.

Em álbuns de fãs no exterior, como David Byrne, Devendra Banhart, Beck e até Kurt Cobain.

FONTES Patrícia Marcondes de Barros, mestre e doutora em história e sociedade da Unesp e livros Não Vá se Perder por Aí: a Trajetória dos Mutantes, de Daniela Vieira dos Santos, eTropicalismo: Relíquias do Brasil em Debate, de Marcos Napolitano e Mariana Villaça

O novo ciclo da revolução burguesa


O que ocorre com o globalismo, quando o capitalismo ingressa em novo ciclo de expansão mundial, é que a revolução burguesa ingressa em novo ciclo, também global. Aos poucos, ou de repente, abalam-se os quadros sociais e mentais de referência de uns e outros, em todo o mundo. Todos são desafiados a re-situar-se no novo mapa do mundo

Por Octávio Ianni

No século XXI, muitos estão empenhados em compreender e explicar as situações, os acontecimentos e as rupturas, assim como as relações, os processos e as estruturas que se formam e transformam com a sociedade global; uma sociedade na qual se subsumem as sociedades nacionais, em seus segmentos locais e em seus arranjos regionais. Ocorre que a sociedade global, vista em suas implicações simultaneamente econômicas, políticas e culturais, demográficas, religiosas e lingüísticas, constitui-se como nova, abrangente e contraditória totalidade, uma formação geo-histórica na qual se inserem os territórios e as fronteiras, as ecologias e as biodiversidades, os povos e as nações, os indivíduos e as coletividades, os gêneros e as etnias, as classes sociais e os grupos sociais, as culturas e as civilizações. Uma “totalidade” simultaneamente histórica e teórica, ou seja, uma formação social e uma categoria que adquirem predominância crescente sobre umas e outras formações sociais: locais, nacionais e regionais.

Está em curso o desenvolvimento de um novo ciclo de profundas transformações sociais, compreendendo as �forças produtivas�, isto é, o capital, a tecnologia, a força de trabalho, e divisão do trabalho social, o mercado, o planejamento e o monopólio da violência; e as “relações de produção”, isto é, as instituições jurídico-políticas e econômico-financeiras, os poderes do Estado e as organizações multilaterais, o direito internacional, as instituições relativas à integração regional, a mídia também nacional e transnacional, as redes, teias e os sistemas articulando indivíduos, coletividades, povos, nações, corporações e organizações. Tudo isso envolvendo classes sociais e grupos sociais, gêneros e etnias, línguas e religiões. Está em curso, portanto, um novo ciclo de desenvolvimento da revolução burguesa em escala mundial.

É claro que as revoluções burguesas sempre transbordaram das fronteiras nacionais. As revoluções ocorridas na Holanda, Inglaterra e França ultrapassaram as fronteiras das metrópoles, alcançando as respectivas colônias, bem como outros povos e nações em outros continentes. Houve inclusive influências recíprocas entre as diversas revoluções. É evidente que a revolução de independência das colônias britânicas da Nova Inglaterra influenciou a própria Inglaterra, repercutindo em colônias ibéricas do Novo Mundo; sem esquecer que aquela revolução da independência foi a primeira batalha de uma longa revolução burguesa em curso nos Estados Unidos da América do Norte durante o século XIX. As revoluções “prussiana”, na Alemanha em formação, e “passiva”, na Itália em formação, bem como a Restauração Meiji, no Japão, as três ocorridas nos anos 60 e 70 do século XIX, repercutiram em vizinhos e em povos mais distantes. Sim, a revolução burguesa nacional sempre transborda das fronteiras do país em que ocorre. Inclusive cabe observar que todas inserem-se nas configurações e nos movimentos dos vastos processos históricos que se sintetizam nos conceitos de mercantilismo, colonialismo e imperialismo.

O que ocorre com o globalismo, quando o capitalismo ingressa em novo ciclo de expansão mundial, é que a revolução burguesa ingressa em novo ciclo, também global. Aos poucos, ou de repente, abalam-se os quadros sociais e mentais de referência de uns e outros em todo o mundo. Todos são desafiados a re-situar-se no novo mapa. As forças produtivas e as relações de produção, em moldes capitalistas, desenvolvem-se intensiva e extensivamente por todo o mundo, rearticulando e fortalecendo as redes e telas sistêmicas; tanto quanto acentuando e generalizando processos de desarticulação e fragmentação, também em escala mundial. Generalizam-se ainda mais os princípios do liberalismo criados em âmbito nacional, agora em âmbito mundial, nos termos do neoliberalismo. Generalizam-se ainda mais os princípios codificados nas expressões “liberdade”, “igualdade” e “propriedade”, organizados no “contrato”, enquanto instituto jurídico-político fundamental da sociedade de mercado, burguesa ou capitalista. Desenvolve-se um vasto processo “pedagógico” orientado no sentido da difusão e reafirmação das distinções entre o “público” e o “privado”, o “lucro”e a “corrupção”, o “Estado mínimo” e o “mercado aberto”, a “economia emergente” e a “inserção no mercado mundial”, o “equilíbrio monetário nacional” e o “equilíbrio monetário mundial”; tudo isso monitorizado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (Bird: Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento) e a Organização Mundial do Comércio (OMC), a santíssima trindade do capitalismo em geral; tudo isso orquestrado por grande parte da mídia impressa e eletrônica mundial, ela também composta por corporações transnacionais. Sob muitos aspectos, portanto, o ciclo do globalismo assinala um novo ciclo das revoluções burguesas, em escala mundial.

O que está em causa, quando se fala em mundialização, planetarização, globalização, globalidade ou globalismo é uma ampla e profunda transformação geral, envolvendo a economia e a sociedade, a política e a cultura, a ecologia e a demografia, as línguas e as religiões. Tudo se abala mais ou menos radicalmente, de modo desigual e também contraditório. Tanto é assim que ocorrem ressurgências de nacionalismo e localismo, reafirmação de identidades presentes ou pretéritas, surtos de xenofobias, etnicismos, racismos e fundamentalismos, não só religiosos como também culturais. Em vários momentos da história, inclusive ao longo dos séculos XX e nos inícios do XXI, o “cristianismo” do Vaticano e o “ocidentalismo” europeu e norte-americano têm sido brutamente fundamentalistas, principalmente quando se associam.

Mais uma vez, reabrem-se os debates sobre a “identidade”, o “outro�, a “desnacionalização” e a “desterritorialização”, o “lugar”, o “território”, a “fronteira” e o “espaço”, o “mundo sem fronteiras”, a “aldeia global”, a “terra-pátria” e “babel”.

Todos, em todo o mundo, são obrigados a defrontar-se com o desenvolvimento desigual e combinado, a não-contemporaneidade e a transculturação. Aos poucos, modificam-se ou dissolvem-se as linhas divisórias entre o Ocidente e o Oriente, a África e a Europa, a América Latina e a América Anglo-saxônica, devido às migrações transcontinentais, aos fluxos de mercadorias globais, aos movimentos mundiais de idéias, aos eventos artísticos, esportivos e outros; além da multiplicação de negociações, fusões e aquisições no âmbito das corporações, e das tensões, soluções e irresoluções. Tudo isso movimentando a máquina do mundo.

A rigor, o novo ciclo de globalização do capitalismo, com o qual se forma e desenvolve a sociedade civil mundial, não ocorre ao acaso, como se fora um processo inesperado e cego. Ainda que seja errático e contraditório, também revela-se sistemático, combinando teoria e prática com ideologia. Sim, porque esse novo ciclo de desenvolvimento intensivo e extensivo do capitalismo, em escala mundial, é influenciado ou conduzido principalmente pela “burguesia mundial”, que já vinha se desenvolvendo por dentro e por fora dos imperialismos; burguesia mundial essa com a qual se associam membros de outros setores sociais, também em curso de transnacionalização. E cabe ressaltar a contribuição de setores intelectuais diversos, dentre os quais encontram-se economistas, financistas, administradores, técnicos em eletrônica, jornalistas, sociólogos e muitos outros, oriundos das ciências sociais e naturais. Formam-se “tecnoestruturas transnacionais”, “think tanks” cosmopolitas, organizações empresariais especializadas em assessorias e consultorias de todos os tipos, inclusive credenciados para diagnosticar e classificar a categoria e confiabilidade de cada país, empresa, corporação e conglomeração, no que se refere ao investimento e à lucratividade, à previsibilidade e à confiança presente e futura.1

É assim que se abalam mais ou menos radicalmente os quadros sociais e mentais de referência que se haviam desenvolvido sob emblema do nacionalismo, da sociedade nacional, do Estado-Nação, da “modernidade-nação” ou da primeira modernidade. Sob o emblema do globalismo, tanto se recriam quadros sociais e mentais de referência anteriores como se criam novos, surpreendentes, inquietantes ou fascinantes. Formam-se a sociedade civil mundial e as estruturas mundiais de poder, redesenhando o mapa do mundo, quando se redefinem ou declinam soberanias nacionais e emergem as corporações transnacionais, de par-em-par com as organizações multilaterais, como os principais porta-vozes das classes dominantes mundiais. São muitas as instituições e os ideais, as práticas e os valores que se formam no âmbito do globalismo, da sociedade civil mundial. Nesse cenário complexo, contraditório e de amplas proporções, abrem-se outras e novas perspectivas para a ciência e a técnica, a comunicação e a informação, a desterritorialização e a miniaturização. Multiplicam-se os “espaços” e aceleram-se os “tempos”, em todas as direções, em todas as esferas de atividade e imaginação, graças às tecnologias eletrônicas com as quais se globaliza ainda mais intensa e generalizadamente a globalização. Esse é o novo palco da história, da modernidade-mundo, ou segunda modernidade.

A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção, portanto, todo o conjunto das relações sociais… O contínuo revolucionar da produção, o abalo constante de todas as condições sociais, a incerteza e a agitação eternas distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Todas as relações fixas e cristalizadas, com seu séqüito de crenças e opiniões tornadas veneráveis pelo tempo, são dissolvidas, e as novas envelhecem antes mesmo de se consolidarem. Tudo o que é sólido e estável se volatiliza, tudo o que é sagrado é profanado, e os homens são finalmente obrigados a encarar com sobriedade e sem ilusões sua posição na vida, suas relações recíprocas.

“A necessidade de mercados cada vez mais extensos para seus produtos impele a burguesia para todo o globo terrestre. Ela deve estabelecer-se em toda parte, instalar-se em toda parte, criar vínculos em toda parte. Através da exploração do mercado mundial, a burguesia deu um caráter cosmopolita à produção e ao consumo de todos os países. Para grande pesar dos reacionários, retirou debaixo dos pés da indústria o terreno nacional. As antigas indústrias nacionais foram destruídas e continuam a ser destruídas a cada dia. São suplantadas por novas indústrias, cuja introdução se torna uma questão de vida ou morte para todas as nações civilizadas – indústrias que não mais empregam matérias-primas locais, mas as provenientes das mais remotas regiões, e cujos produtos são consumidos não somente no próprio país, mas em todas as partes do mundo… Em lugar da antiga auto-suficiência e do antigo isolamento local e nacional, desenvolve-se em todas as direções um intercâmbio universal, uma universal interdependência das nações. E isso tanto na produção material quanto na intelectual. Os produtos intelectuais de cada nação tornam-se patrimônio comum. A unilateralidade e a estreiteza nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis, e das numerosas literaturas nacionais e locais forma-se uma literatura mundial.” 2

É óbvio que são ainda muitos os que reagem à globalização, combatendo-a em nome do localismo, nacionalismo e regionalismo, mobilizando inclusive fundamentalismo, xenofobias, etnicismos e racismos, e também organizando-se em movimentos “neofascistas”, “neonazistas”, nazifascistas”, em diferentes países e continentes. Há ressurgências de ideais ou experiências pretéritas ou nostálgicas, nas quais ressoam épocas passadas, reminiscências de regime ou moldes de vida “arqueológicos”.

Mas já são numerosos os indivíduos e as coletividades, as classes sociais e os grupos sociais que padecem da globalização e, simultaneamente, se conscientizam, organizam, reivindicam e lutam por outra globalização, pela “globalização desde baixo”. Aí estão as raízes do neo-socialismo. Aí estão as condições sociais, simultaneamente econômicas, políticas e culturais, sob as quais se recriam os ideais, as organizações e as práticas empenhadas na socialização da propriedade e do produto do trabalho coletivo, agora vistos em perspectiva mundial.
“Os manifestantes estão realmente unidos contra a atual forma de globalização capitalista… Os próprios protestos se tornaram movimentos globais e um de seus objetivos mais claros é a democratização dos processos globalizadores. Não deve ser chamado de movimento antiglobalização. Trata-se de um movimento alternativo de globalização, que quer eliminar desigualdades ente ricos e pobres e expandir as possibilidades de autodeterminação… Já vemos sementes desse fruto no mar de rostos que se estende das ruas de Seattle às de Gênova. Uma das características mais marcantes desses movimentos é sua diversidade, sindicalistas ao lado de ecologistas, com sacerdotes e comunistas. Estamos começando a ver o surgimento de uma multidão que não é definida por uma identidade isolada, mas que consegue descobrir a comunidade em sua multiplicidade”.3

Esse é o contexto geo-histórico, a formação social mundial, o novo palco da história, em que muitos se organizam e lutam por uma democracia política e social, nos moldes do neo-socialismo.

Um socialismo que se enraíza nas diversidades e desigualdades sociais, não só locais, nacionais e regionais, mas principalmente mundiais, enraizando-se também na avaliação crítica das experiências socialistas já realizadas em diferentes nações, ou em curso na China e em Cuba, enraizando-se inclusive nas contribuições filosóficas, científicas e artísticas que se multiplicam no Ocidente e no Oriente, na África e na América Latina, no Caribe e na Oceania, na América do Norte e nas diversas Europas.

Vistas assim, em perspectiva ampla e em toda a sua complexidade, a era do globalismo assinala o desenvolvimento de uma nova época da revolução burguesa mundial. Essa é uma revolução que se desenvolve em várias ocasiões e em distintas configurações. Teve um momento fundamental por dentro e por fora das guerras napoleônicas, com raízes na revolução industrial inglesa e na revolução política francesa, desdobrando-se no primeiro ciclo histórico de descolonização do Novo Mundo. E teve continuidade por dentro e por fora do imperialismo, em suas versões inglesa, holandesa, francesa, belga, alemã, russa, japonesa e outras. Na época do globalismo, no entanto, entra em novo ciclo o desenvolvimento da revolução burguesa mundial, por dentro da qual criam-se novas condições da revolução social, socialistas, esta também, enquanto transnacional, ou seja, uma revolução socialista mundial.

“O período burguês da história está chamado a assentar as bases materiais de um novo mundo: desenvolver, de um lado, o intercâmbio universal, baseado na dependência mútua do gênero humano, e os meios para realizar esse intercâmbio, e de outro, desenvolver as forças produtivas do homem e transformar a produção material num domínio científico sobre as forças da natureza. A indústria e o comércio burgueses vão criando essas condições materiais de um novo mundo, do mesmo modo que as revoluções geológicas criavam a superfície da Terra.”4

1. Perry Anderson, Balanço do Neoliberalismo, Emir Sader e Pablo Gentili (organizadores), Pós-Neoliberalismo, Paz e Terra, São Paulo, 1995, cap 1, pp. 9-37; Eduardo Rosenzvaig, Neoliberalism, Latin American Perspectivas, vol. 24, número 6, novembro 1997, pp. 56-62; Richard J. Barnet e Ronald Muller, Poder Global (A Força Incontrolável das Multinacionais), trad. De Ruy Jungmann, Distribuidora Record, Rio de Janeiro, s/d (edição original em inglês de 1974); C. Fred Bergstein (Coord.), O Futuro do Comércio Internacional (As Teses de Maidenhead), trad. De Ricardo Stavola Cavaliere e Liane Moraes, Editora da Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 1979 (edição original em inglês de 1975); Banco Mundial, Do Plano ao Mercado (Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial), Washington, 1996. (subir)

2. Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto do Partido Comunista, trad. De Marco Aurélio Nogueira e Leandro Konder, Editora Vozes, Petrópolis, 1988, pp.69-70; citações do cap 1: Burgueses e Proletários.(subir)

3. Michael Hardt e Antonio Negri, “Manifestantes Querem Globalização Alternativa”, Folha de S. Paulo, São Paulo, 21 de julho de 2001, p. B-3. Consultar também: Michael Hardt e Antonio Negri, Empire, Harvard University Press, Cambridge, 2000; Samir Amim, Los Desafios de la Mundialização, trad. De Marcos Cueva Perus, Siglo Veintiuno Editores, México, 1996; David Miliband (org.), Reinventando a Esquerda, trad. De Raul Fiker, Editora Unesp, São Paulo, 1997. (subir)

4. Karl Marx, “Futuros Resultados do Domínio Britânico na Índia”, Karl Marx e Friedrich Engels, Textos, 3 vols. Edições Sociais, São Paulo, 1977, 3o volume, pp.292-297; citação da p. 297. A edição não menciona o tradutor.
Revista Fórum

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

A Guerra Civil Americana

Em 12 de abril de 1861 começava a Guerra Civil Americana,, ainda hoje, a guerra mais sangrenta dos Estados Unidos, com mais de 600 mil mortos. Durante os quatro anos de combate, o conflito foi documentado por vários fotógrafos e a Biblioteca do Congresso Americano preserva um acervo com mais de 7.000 fotografias da época.

Este post é ilustrado por uma dessas coleções, a da família Liljenquist, composta por 700 fotografias em ferrótipos e ambrótipos (fotografias em suporte de metal e vidro guardadas em estojos).

A família americana Liljenquist amealhou a coleção ao longo dos últimos 15 anos em feiras de antiguidades, leilões, mostras da Guerra Civil e até no site de compras e leilões online eBay. Em 2010, a Biblioteca do Congresso recebeu todo esse acervo em doação e uma exposição para relembrar os 150 anos da Guerra será aberta hoje em Washington.

Infelizmente, a autoria destas fotos não é conhecida. A Biblioteca se esforça para descobrir quem são os retratados e muitos soldados já foram identificados. Impressiona nesta coleção a qualidades das peças, todas em excelente estado de preservação. Muitas são coloridas à mão. Outra fatia expressiva ilustra a maneira como os cenários e fundos artificiais eram usados na época.

A coleção Liljenquist tem um recorte específico, que a diferencia de outras dedicadas ao mesmo tema. Ela é dedicada aos retratos de soldados – alguns, extremamente elaborados (Foto 10) – e seus familiares.

Dentre as centenas de imagens da coleção, uma foto chama a atenção: uma garota com roupa de luto segurando a foto de seu pai, que morreu (Foto 14). Fica claro que, poucas décadas depois do advento da fotografia, ela já não tinha apenas um caráter técnico ou documental, mas já tinha um papel importante na vida cotidiana e na preservação da memória afetiva das pessoas comuns.

Apesar dos suportes diferentes, ambrótipo e ferrótipo são semelhantes em muitos aspectos: apresentam a mesma tonalidade bege leitosa da superfície, o mesmo ligante (colódio) e a prata como substância formadora da imagem. Veja abaixo como se definem as duas técnicas:

Ambrótipo = Imagem positiva direta sobre placa de vidro. A placa já revelada era colocada no estojo com um fundo preto, geralmente tecido ou cartão de papelão.

Ferrótipo = Imagem positiva direta sobre placa de ferro de baixa espessura, recoberta com verniz dos dois lados. O lado da imagem recebia um recobrimento preto ou marrom-escuro.

Alexandre Belém

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

JEAN BAPTISTE DEBRET






Jean Baptiste Debret (Paris, França 1768 - idem 1848) integra a Missão Artística Francesa, que vem ao Brasil em 1816. Instala-se no Rio de Janeiro e, a partir de 1817, torna-se professor de pintura em seu ateliê. Em 1818, realiza a decoração para a coroação de D. João VI, no Rio de Janeiro. De 1823 a 1831, é professor de pintura histórica na Academia Imperial de Belas Artes, no Rio de Janeiro, atividade que alterna com viagens para várias cidades do país, quando retrata tipos humanos, costumes e paisagens locais. Por volta de 1825, realiza gravuras a água-forte, que estão na Seção de Estampas da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Em 1829, organiza a Exposição da Classe de Pintura Histórica da Imperial Academia das Belas Artes, primeira exposição pública de arte no Brasil. Deixa o Brasil em 1831, retorna a Paris com o discípulo Porto Alegre. Entre 1834 e 1839, edita, em Paris, o livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, em três volumes, ilustrado com aquarelas e gravuras produzidas com base em seus estudos e observações.

JEAN BAPTISTE DEBRET: UM ARTISTA À SERVIÇO DA CORTE PORTUGUESA NO BRASIL

A primeira metade do século XIX nos permite relembrar, e com muita satisfação, da presença de grandes artistas franceses no Brasil. Tal circunstância deveu-se à intenção da própria Coroa portuguesa em trazer cultura para o país, na ocasião, recém ocupado pela nobreza há apenas 08 anos. Destacaremos, dentre os habilidosos "artistas-viajantes": Jean Baptiste Debret, que segundo a autora Valéria Lima, fora o mais requisitado e competente, naquilo que pretendia revelar por meio da arte. 
O que pretendemos mostrar neste humilde artigo é o interesse, por parte dos expectadores, quanto à "realidade" inserida nas obras de Debret quando da sua "missão artística" aqui no Brasil. O artista francês foi "convocado" pelo Príncipe Regente de Portugal, D. João VI - em 1816 a retratar todos os momentos ilustres da monarquia. 
Valéria Lima nos revela que Debret, em sua interessante obra: "Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil", permite demonstrar importantes traços de sua própria identidade e personalidade, distanciando-se um pouco daquela idéia de apresentar "imagens fiéis" da escravidão negra no Brasil, e também sobre os "exóticos" momentos da monarquia lusa, instalada no Rio de Janeiro a partir de 1808. Debret sem dúvida, foi mais do que um pintor oficial da nobreza, também atuou com muita competência na fundação da Academia Imperial de Belas-Artes do Rio de Janeiro, contribuindo como professor, cumprindo desta forma, outro desejo do Príncipe D. João VI.

Com o grande projeto Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, Debret revela sua profunda relação pessoal e emocional, adquirida em sua permanência no Brasil por 15 anos. Em 1831 o pintor solicitou licença ao Conselho da Regência para retornar à França, alegando problemas de saúde. Dois motivos o levaram a tomar tal atitude: primeiro para juntar-se a sua família e segundo, tão importante para o artista quanto o primeiro, era organizar o primeiro volume de sua obra Viagem pitoresca e histórica ao Brasil.

Valeria nos lembra bem que neste período o Brasil encontrava-se em processo de formação de sua própria história, inclusive como nação "independente".

Debret preocupou-se muito com os textos que acompanhavam suas imagens, demonstrando certa fidelidade ao sentido literário. Tal postura não era comum em outros "artistas - viajantes". Muitos pintores não se preocupavam demasiadamente com o sentido dos textos comparando-os com as ilustrações contidas em seus trabalhos. 
Esse desejo, por parte do pintor em resgatar costumes e acontecimentos do passado brasileiro evidencia a importância de sua estada ao Brasil durante esses 15 anos. Muitos acreditam em não haver nenhum tipo de contribuição por parte do artista para história do Brasil.

A Formação de Debret

A formação cultural de Debret se desenvolveu em meio a conturbados momentos políticos da França revolucionária. O artista passou a fazer parte do grupo de pintores responsáveis pelas imagens de atos históricos e heróicos de Napoleão Bonaparte. As academias francesas de arte até este momento, preocupavam-se com o resgate da historia antiga, trazendo, desta forma, a intenção de elevar a moralidade social da época. Com a "intervenção" de Bonaparte, o cenário é alterado, pois os pintores agora teriam de se preocupar em revelar, com praticamente nenhuma liberdade, assuntos pertinentes à história contemporânea, da qual o próprio Imperador era protagonista.

É interessante notarmos que o cenário que antecedeu a vinda do pintor francês a terras brasileiras estava um tanto quanto conturbado. Não podemos esquecer que Napoleão praticamente expulsou a Coroa portuguesa, que na ocasião, fugira para o Brasil. Em 1808 D. João e mais 15 mil pessoas que acompanhavam a Corte, desembarcaram no Rio de Janeiro. Neste mesmo período, os portugueses estavam de relações políticas e sociais, completamente cortadas com os franceses. Diante desta dimensão, talvez seja oportuno perguntarmos, qual seria o objetivo, por parte dos portugueses, em trazer artistas franceses para prestar serviços à monarquia no Brasil. Podemos, no entanto, destacar alguns fatores correspondentes à questão: Segundo a autora, o próprio Debret, como mencionamos anteriormente, fez parte dos pintores "oficiais" designado a retratar momentos gloriosos de Napoleão Bonaparte. Por outro lado, não podemos deixar de mencionar a cultura italiana que, por muitos séculos, formou grandes artistas como Michelangelo, Leonardo Davinci, dentre tantos outros. A Itália dominou, de forma soberana, o cenário artístico até meados do século XVII.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA 
LIMA, Valéria - Uma Viagem com Debret, {coleção: Descobrindo o Brasil} Ed. Jorge Zahar, RJ - 2004.

O ‘New Deal’, by Vargas

Roosevelt atribuiu ao presidente brasileiro a coautoria da política econômica que pôs fim à crise americana nos anos 1930

Flávio Limoncic
“Duas pessoas inventaram o New Deal: o presidente do Brasil e o presidente dos Estados Unidos”. O autor da frase foi o próprio criador do histórico plano de recuperação da economia norte-americana, Franklin Delano Roosevelt (1882-1945). O elogio foi feito em visita ao Rio de Janeiro, em novembro de 1936, e referia-se ao governo de Getulio Vargas. 

Pode ter sido apenas uma gentileza do visitante. Ou alguém imagina que possa haver algo em comum entre o presidente que tirou os Estados Unidos da Grande Depressão e o líder que viria a ser, um ano depois, o ditador do Estado Novo, muitas vezes comparado a Mussolini? 

A associação é mesmo rara, mas Roosevelt não falou aquilo à toa. Diante da crise do liberalismo iniciada com o crash da Bolsa de Nova York, em 1929, e que se prolongaria por boa parte da década de 1930, ambos colocaram o Estado no centro da vida econômica de seus países: Roosevelt, para enfrentar os problemas de uma gigantesca economia industrial em depressão, e Vargas, para industrializar o Brasil. Ao fazê-lo, construíram pactos sociais com setores do movimento sindical e do empresariado. 

As obras públicas, projetos de desenvolvimento e de geração de emprego e renda foram acionados pelos dois. A Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda, cuja construção começou em 1941, se tornaria um marco do desenvolvimento industrial brasileiro, ao passo que a Tennessee Valley Authority, de Roosevelt, seria o mais ambicioso programa de desenvolvimento regional até então implementado. Para gerar empregos e renda, o New Deal lançou mão também de programas criativos como o Civilian Conservation Corps (CCC), que mobilizou 2,5 milhões de jovens na restauração de sítios históricos, manutenção dos Parques Nacionais, limpeza de reservatórios de água, conservação de solo e plantio de dois bilhões de árvores.

Por outro lado, Vargas e Roosevelt colocaram o Estado no coração das disputas entre capital e trabalho. No Brasil, os sindicatos foram enquadrados em uma estrutura corporativa, enquanto nos Estados Unidos a Lei Wagner (1935) lhes garantia mais liberdade. Ainda assim, as organizações de trabalhadores submetiam-se a uma série de procedimentos, obrigações e normas ditados pela Agência Nacional de Relações de Trabalho. Tal qual a Justiça do Trabalho de Vargas, a Agência tinha não só o poder de criar normas, mas também de julgar litígios. 

A Era Vargas e o New Deal buscaram ainda construir novas identidades nacionais para brasileiros e americanos, com a valorização da memória e da natureza de seus países. Vargas, além de ter criado o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan, atual Iphan), criou também o Parque Nacional de Itatiaia, o primeiro do país, além dos Parques do Iguaçu e da Serra dos Órgãos. A capoeira e o samba foram apropriados pelo regime como símbolos da nação e cantigas folclóricas foram elevadas à condição de grande arte sob a batuta de Heitor Villa-Lobos. Nos Estados Unidos, o muralismo de inspiração mexicana, o realismo social e as cenas coletivas espalharam-se por repartições públicas e sítios históricos de todo o país. A arte era financiada pelo Projeto Federal de Artes, o Projeto Federal de Música e o Projeto Federal de Teatro, e passou a retratar o homem comum, os trabalhadores rurais, os índios, os hispânicos, os negros, assim como as belezas naturais do país. As sociedades brasileira e americana, por iniciativa, incentivo ou financiamento do Estado, repensavam suas identidades e eram convidadas a ver “sua melhor face”. Não nos Du Pont, família de grandes empresários, ou nos cafeicultores e industriais paulistas, mas nos “trabalhadores do Brasil” de Vargas e nos “homens esquecidos” de Roosevelt.

A nova força do Estado chegou a expressar-se em um culto às personalidades dos dois presidentes. Vargas, o “Pai dos Pobres”, multiplicava-se em retratos pendurados nos lares das famílias trabalhadoras e em salas de sindicatos, assim como as fotos de Roosevelt, embora, no caso americano, essa não fosse uma política deliberada. E ambos também fizeram uso intenso do rádio para se comunicar diretamente com os “trabalhadores do Brasil” e os “homens esquecidos”. Na “Hora do Brasil”, Vargas falava de suas ações e realizações, ao passo que nas fireside chats – programas radiofônicos ouvidos pelas famílias ao redor da lareira –, Roosevelt falava de suas iniciativas para combater a crise. 

Numa época em que as lideranças carismáticas eram associadas ao fascismo, ao nazismo e ao comunismo, o presidente norte-americano também se viu acusado de ser personalista e autoritário. Seu discurso de posse, no dia 4 de março de 1933, parece ecoar notórios ditadores do período: 

“Se queremos nosso progresso, devemos nos mover como um exército treinado e leal, disposto ao sacrifício em nome da disciplina comum, porque sem tal disciplina, nenhum progresso é possível, nenhuma liderança torna-se efetiva. Estamos, sei, prontos e desejosos de submeter nossas vidas e propriedades a tal disciplina, porque ela torna possível uma liderança cujo objetivo é o bem comum”. 

Ao contrário de Vargas, no entanto, Roosevelt não fechou o Congresso. Mas tampouco atacou o traço mais antidemocrático do sistema político e da sociedade americana: a negação do direito de voto aos negros e a segregação racial. Diante de uma Constituição fortemente federalista, Roosevelt preferiu não enfrentar o direito dos estados de decidirem de modo autônomo suas legislações raciais – ainda que tenha dado mostras de simpatia pelo fim da segregação. Em 1939, quando a cantora lírica negra Marion Anderson foi impedida de cantar no auditório da associação Daughters of the American Revolution, em Washington, a primeira-dama, Eleonor Roosevelt, articulou a realização de um concerto público no monumental Lincoln Memorial. A praça recebeu 75 mil pessoas. 

Uma grande distância havia sido percorrida desde 1915, quando o filme “O nascimento de uma nação”, que mostrava a ação da Klu Klux Klan em defesa da supremacia branca, recebeu comentários elogiosos do então presidente democrata Woodrow Wilson. Ainda assim, os trabalhadores negros, duramente atingidos pelo desemprego (que em 1933 chegou a 30%), foram menos beneficiados do que os brancos pelas políticas do New Deal. E não só eles. Como no Brasil de Vargas, os benefícios trabalhistas e previdenciários do New Deal deixaram de fora trabalhadores rurais e domésticos. Nos dois países, as populações do interior foram beneficiadas por outros tipos de políticas públicas, como o Serviço Nacional de Febre Amarela e o Tennessee Valley Authority, que favoreceu uma das regiões mais pobres dos Estados Unidos.

Ao longo de doze anos (ele foi eleito quatro vezes consecutivas, em 1932, 1936, 1940 e 1944), Roosevelt, de sua cadeira de rodas, liderou o combate à Grande Depressão e conduziu seu país na Segunda Guerra Mundial. Fisicamente esgotado, morreu vítima de um derrame cerebral antes de ver a vitória aliada na Europa e a pujança da economia americana do pós-guerra, que ajudou a forjar com o New Deal. O suicídio de Vargas, por seu lado, acabou para agigantá-lo diante de seus antecessores e sucessores, a maioria dos quais figuras incapazes, se não de ter a grandeza de sair da vida para entrar na História, ao menos de ter a coragem de entrar na História enquanto vivas. Suas mortes, quase épicas, certamente contribuíram para a construção de seus mitos.

Porém, mais do que mitos, Roosevelt e Vargas foram os grandes divisores de águas das histórias de seus países no século XX. No momento em que o mundo enfrenta uma crise econômica que a muitos faz lembrar a Grande Depressão, o New Deal e a Era Vargas voltam ao centro do debate político e acadêmico. 

Flávio Limoncic é professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e autor de Os inventores do New Deal: Estado e sindicatos no combate à grande depressão (Civilização Brasileira, 2009). 

Saiba Mais - Bibliografia: 

ARRUDA, José Jobson de Andrade. “A crise do capitalismo liberal”. In: Daniel Aarão Reis Filho; Jorge Ferreira; Celeste Zenha. (orgs.). O século XX. O tempo das crises. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. 
HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos. O breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 

PANDOLFI, Dulce (org.). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999.

A volta do Estado forte?

“That’s my man!”, exclamou Obama ao encontrar o presidente do Brasil, em frase livremente traduzida como “Lula é o cara!” As palavras do novo presidente americano lembram as de Roosevelt, que em 1936 dividiu com Vargas a paternidade do New Deal. Os tempos são outros – e a crise também –, mas os passos dos atuais governantes seguem uma trilha parecida com a daquela época: o Estado sai da sombra para segurar as pontas do liberalismo que desandou. 

Entoado como um mantra na década de 1990, o neoliberalismo disseminou-se com base em uma cartilha imutável para as nações que desejassem participar do maravilhoso capitalismo globalizado: investimentos privados, créditos ampliados e empresas multinacionais só chegariam aos países que segurassem a inflação e “enxugassem” a máquina pública. 

Era o auge da teoria do “Estado mínimo”. Os mercados passaram a se “autorregular” e as privatizações reduziram a máquina pública ao mínimo indispensável (ou menos que isso). Por aqui, a onda marcou os mandatos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), quando empresas de telecomunicações, de energia elétrica e de mineração, entre outras áreas, passaram para a iniciativa privada. 

Mas a desregulamentação radical dos mercados virou um tiro no pé, e é apontada como principal causa da crise atual, que eclodiu nos Estados Unidos e se espalhou pelo mundo. A ironia é que as empresas e os bancos, até então adeptos da não intervenção estatal, correram ao governo para pedir uma mãozinha assim que se viram às portas da falência. Em todo o mundo, esse socorro público já ultrapassou dois trilhões de dólares.

No Brasil, Lula (eleito em 2002) sempre adotou políticas de forte intervenção estatal na economia, acusado pela oposição de aumentar os impostos e não reduzir gastos nem pessoal. Agora que a maré virou, sua agenda “antineoliberal” entrou na ordem do dia.

Em tempos de crise – já ensinavam Roosevelt e Vargas –, quem não quer um Estado forte?
Revista de História da Biblioteca Nacional

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

ágora


«A ágora acolhia todos os aspectos da vida quotidiana dos atenienses. […] É neste recinto público que atinge o seu auge uma das formas arquitectónicas mais populares da Grécia: a stoa, um pórtico com colunas que ofereciam sombra e refúgio aos cidadãos. […] Nas stoas, as entradas e saídas eram livres, as suas colunatas abertas delimitavam um espaço para o debate público e, inclusive, filosófico.»
Nigel Spivey e Michael Squire, Panorama del Mundo Clásico, Barcelona, Ed. Blume, 2005 (adaptado)

Neoclassicismo


Jacques-Germain Soufflot, Igreja de Santa Genoveva ou Panteão, Paris, c. 1755-61,
in http://pt.wikipedia.org

«O Neoclassicismo […] [é] uma reação contra a frivolidade da arte e dos costumes da primeira  metade do século XVIII e contra as complicações do estilo rocaille ou “rococó”, condenado por  razões morais e estéticas. Os filósofos das “Luzes”, os autores da Enciclopédia, esforçam-se por transformar a sociedade, quer pelo progresso científico e técnico […], quer por um regresso à simplicidade e à pureza “primitivas”: sonha-se com um mundo melhor, com uma espécie de “idade do ouro” governada pela razão natural e pela justiça. […]
Propõem-se à gente nova exemplos de virtude cívica, de dedicação ao bem público, [...] que na arte se traduzem pela força plástica, pela simplicidade da composição, do desenho e da cor, e pelo empobrecimento voluntário da técnica. O regresso ao antigo não passa de um meio de alcançar este ideal: pedem-se assuntos morais à história da Grécia e da República Romana e uma  linguagem formal à arte greco-romana.»
Albert Châtelet e Bernard Philippe Groslier, História da Arte Larousse, 2, Lisboa, Civilização, 1985 (adaptado)

Guernica.


PICASSO, Pablo. Guernica. 1937. Museu Reina Sofia, Madrid

Guernica (figura, obra de Pablo Picasso, testemunha a destruição provocada pela Guerra Civil de Espanha (1936-1939), convertendo-se, simultaneamente, numa obra comprometida
ideologicamente, numa alegoria histórica e numa síntese formal dos principais movimentos
artísticos da primeira metade do século XX.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

OS DEMÔNIOS DO DEMÔNIO

Eduardo Galeano
Esta é uma modesta contribuição à guerra do Bem contra o Mal. Entre os diversos semblantes do Príncipe das Trevas, só estão os demônios que existem há muito, muito tempo, e que há séculos ou milênios continuam ativos no mundo

A experiência prova que a ameaça do inferno é sempre mais eficaz que a promessa do Céu. Benditos sejam os inimigos

O Demônio é mulçumano

Dante já sabia que Maomé era terrorista. Por alguma razão o colocou em um dos círculos do inferno, condenado à pena de prisão perpétua. “O vi partido”, celebrou o poeta em A Divina Comédia , “desde a barba até a parte inferior do ventre...”. Mais de um Papa já tinham comprovado que as hordas muçulmanas, que atormentavam a Cristandade, não eram formadas por seres de carne e osso, eram um grande exército de demônios que aumentava quanto mais sofria com os golpes das lanças, das espadas e dos arcabuzes.

Hoje em dia, os mísseis fabricam muito mais inimigos que os inimigos das entranhas. Porém, que seria de Deus, afinal de contas, sem inimigos? O medo impera, as guerras existem para desbaratar o medo. A experiência prova que a ameaça do inferno é sempre mais eficaz que a promessa do Céu. Benditos sejam os inimigos. Na Idade Média, cada vez que o trono tremia, por bancarrota ou fúria popular, os reis cristãos denunciavam o perigo muçulmano, desatavam o pânico, lançavam uma nova Cruzada, o santo remédio. Agora, há pouco tempo, George W. Bush foi reeleito presidente do planeta graças o oportuno aparecimento de Bin Laden, o grande Satã do reino, que as vésperas das eleições anunciou, pela televisão, que ia comer todas as crianças.

Lá pelo ano de 1564, o especialista em demonologia Johann Wier teria contado os demônios que estavam trabalhando na terra, a tempo integral, a favor da perdição das almas cristãs. Eram sete milhões quatrocentos e nove mil cento e vinte sete, que agiam divididos em setenta e nove legiões.

Muita água fervente passou, depois daquele censo, debaixo das pontes do inferno. Quantos são, hoje em dia, os enviados do reino das trevas? As artes do teatro dificultam as contas. Estes falsos continuam usando turbantes, para ocultar seus cornos, e longas túnicas tampam os rabos do dragão, suas asas de morcego e a bomba que carregam debaixo do braço.

A colossal carnificina organizada por Hitler culminou uma longa história de perseguição e humilhação


O Demônio é judeu

Hitler não inventou nada. Há mil anos, os judeus são os imperdoáveis assassinos de Jesus e os culpados de todas as culpas. Como? Jesus era judeu? E judeus eram também os doze apóstolos e os quatro evangelistas? O que você disse? Não pode ser. As verdades reveladas estão além das dúvidas e não exigem mais evidências do que a própria existência. As coisas são como se diz que são, e se diz porque se sabe: nas sinagogas o Demônio dá aulas, e os judeus desde há muito se dedicam a profanar hóstias e a envenenar águas bentas. Por causa deles aconteceram bancarrotas econômicas, crises financeiras e derrotas dos militares; são eles que trouxeram a febre amarela e a peste negra e todas as outras pestes.

A Inglaterra os expulsou, nenhum escapou, no ano de 1290, porém isso não impediu Chaucer, Marlowe e Shakespeare, que nunca tinham visto um judeu, fossem obedientes à caricatura tradicional e reproduzissem personagens judeus segundo o modelo satânico de parasita sanguessuga e o avaro usurário. Acusados de servir ao Maligno, estes malditos andaram durante séculos de expulsão em expulsão e de matança em matança. Depois da Inglaterra foram sucessivamente expulsos da França, Áustria, Espanha, Portugal e de numerosas cidades suíças, alemães e italianos. Os reis católicos Izabel e Fernando expulsaram os judeus e também os muçulmanos porque sujavam o sangue. Os judeus haviam vivido na Espanha durante treze séculos. Levaram com eles as chaves de suas casas. Há quem as guardem ainda. Nunca mais voltaram.

A colossal carnificina organizada por Hitler culminou uma longa história de perseguição e humilhação. A caça aos judeus tem sido sempre um esporte europeu. Agora, os palestinos, que jamais a praticaram, pagam a culpa.

“Toda a bruxaria provém da luxúria carnal, que nas mulheres é insaciável”

O Demônio é mulher

O livro Malleus Maleficarum, também chamado O martelo das bruxas, recomenda o mais ímpio exorcismo contra o demônio que tem seios e cabelos compridos.

Dois inquisidores alemães, Heinrich Kramer e Jakob Sprenger, o escreveram, a pedido do Papa Inocêncio VIII, para enfrentar as conspirações demoníacas contra a Cristandade. Foi publicado pela primeira vez em 1486 e até o final do século XVIII foi o fundamento jurídico e teológico dos tribunais da Inquisição em vários países.

Os autores afirmavam que as bruxas, do harém de Satanás, representavam as mulheres em estado natural: “Toda bruxaria provém da luxúria carnal, que nas mulheres é insaciável”. E demonstravam que “esses seres de aspecto belo, cujo contato é fétido e a companhia mortal” encantavam os homens e os atraíam com silvos de serpentes, rabos de escorpião, para aniquilá-los. Os autores advertiam aos incautos: “A mulher é mais amarga que a morte. É uma armadilha. Seu coração, uma rede; e correias, seus braços”.

Esse tratado de criminologia, que enviou milhares de mulheres às fogueiras da Inquisição, aconselhava que todas as suspeitas de bruxaria fossem submetidas à tortura. Se confessassem, mereceriam o fogo. Se não confessassem também, porque só uma bruxa, fortalecida por seu amante, o Demônio, nos conciliábulos das bruxas, poderia resistir a semelhante suplício sem soltar a língua.

O papa Honório III sentenciara que o sacerdócio era coisa de machos: - As mulheres não devem falar. Seus lábios têm o estigma de Eva, que provocou a perdição dos homens.

Oito séculos depois, a Igreja Católica continua negando o púlpito às filhas de Eva.

O mesmo pânico faz com que os mulçumanos fundamentalistas as mutilem o sexo e lhes cubram a cara.

E o alívio pelo perigo conjurado leva os judeus mais ortodoxos a começar o dia sussurrando: “Graças, Senhor, por não me ter feito mulher”.

Em nenhum lugar do mundo se levou em conta os muitos homossexuais condenados ao suplício ou a morte pelo delito de sê-lo

O Demônio é homossexual

Desde 1446, os homossexuais iam para a fogueira em Portugal. Desde 1497 eram queimados vivos na Espanha. O fogo era o destino merecido pelos filhos do inferno, que surgiam do fogo.

Na América, ao contrário, os conquistadores preferiam jogá-los aos cachorros. Vasco Núnez de Balboa, que entregou muitos deles para a refeição dos cães, acreditava que a homossexualidade era contagiosa. Cinco séculos depois, ouvi o Arcebispo de Montevidéu dizer o mesmo. Quando os conquistadores apontaram no horizonte, só os astecas e os incas, em seus impérios teocráticos, castigavam a homossexualidade com a pena de morte. Os outros americanos a toleravam e em alguns lugares a celebravam, sem proibição ou castigo.

Essa provocação insuportável devia desencadear a cólera divina. Do ponto de vista dos invasores, a varíola, o sarampo e a gripe, pestes desconhecidas que matavam índios como moscas, não vinham da Europa, mas sim do Céu. Assim, Deus castigava a libertinagem dos índios que praticavam a anormalidade com toda a naturalidade.

Nem na Europa, nem na América, nem em nenhum lugar do mundo se levou em conta os muitos homossexuais condenados ao suplício ou a morte pelo delito de sê-lo. Nada sabemos dos longínquos tempos e pouco ou nada sabemos dos tempos de agora.

Na Alemanha nazista, estes “degenerados culpados de aberrante delito contra a natureza” eram obrigados a exibir a estrela amarela. Quantos foram para os campos de concentração? Quantos lá morreram? Dez mil? Cinqüenta mil? Nunca se soube. Ninguém os contou, quase ninguém os mencionou. Tampouco se soube quantos foram os ciganos exterminados.

No dia 18 de setembro de 2002, o governo alemão e os bancos suíços resolveram “retificar a exclusão dos homossexuais entre as vítimas do Holocausto”. Levaram mais de meio século para corrigir essa omissão. A partir dessa data os homossexuais que tinham sobrevivido em Auschwitz e em outros campos, se é que ainda haja algum vivo, puderam reclamar uma indenização.

Os conquistadores cumpriram a missão de devolver a Deus o ouro, a prata e outras várias riquezas que o Demônio havia usurpado

O Demônio é índio

Os conquistadores descobriram que Satã, quando expulso da Europa, tinha encontrado refúgio na América. Nas ilhas e nas praias do mar do Caribe, beijadas dia e noite por seus lábios flamejantes, habitadas por seres bestiais que andavam nus, tal como o Demônio os havia colocado no mundo, que cultuavam o sol, a terra, as montanhas, os mananciais e outros demônios disfarçados de deuses, que chamavam de jogo ao pecado carnal e o praticavam sem horário nem contrato, que ignoravam os dez mandamentos e os sete sacramentos e os sete pecados capitais, que não conheciam a palavra pecado nem temiam o inferno, que não sabiam ler nem tinham nunca ouvido falar do direito de propriedade, nem de nenhum direito e que, como se tudo isso fosse pouco, tinham o costume de comerem uns aos outros. E crus.

A conquista da América foi uma longa e difícil tarefa de exorcismo. Tão arraigado estava o Demônio nestas terras, que quando parecia que os índios se ajoelhavam devotamente ante a Virgem, estavam na realidade adorando a serpente que ela amassava com o pé; e quando beijavam a Cruz não estavam reconhecendo ao Filho de Deus, mas estavam celebrando o encontro da chuva com a terra.

Os conquistadores cumpriram a missão de devolver a Deus o ouro, a prata e outras várias riquezas que o Demônio havia usurpado. Não foi fácil recuperar o tesouro. Ainda bem que de vez em quando recebiam alguma pequena ajuda de lá de cima. Quando o dono do inferno preparou uma emboscada em um desfiladeiro, para impedir a passagem dos espanhóis em busca da prata de Cerro Rico de Potosi, um arcanjo baixou das alturas e lhe deu uma tremenda surra.

Supunha-se que a leitura da Bíblia podia facilitar a viagem dos africanos do inferno para o paraíso, mas a Europa esqueceu de ensiná-los a ler

O Demônio é negro

Como a noite, como o pecado, o negro é inimigo da luz e da inocência.

Em seu célebre livro de viagens, Marco Pólo fala dos habitantes de Zanzibar. “Tinham uma boca muito grande, lábios muito grossos e nariz como o de um macaco. Caminhavam nus, totalmente negros e para quem de qualquer outra região que os visse acreditaria que eram demônios”.

Três séculos depois, na Espanha, Lúcifer, pintado de negro, trepado numa carroça em chamas, entrava nos pátios das comédias e nos palcos das feiras. Santa Tereza de Jesus, que viveu para combatê-lo, apesar disso nunca pode entendê-lo. Uma vez ficou ao lado e viu “um negrinho abominável”. Outra vez ela viu que do seu corpo negro saía uma chama vermelha, quando se sentou em cima de seu livro de orações e queimou os textos do ofício religioso.

Uma breve história do intercâmbio entre África e Europa: durante os séculos XVI, XVII e XVIII, a África vendia escravos e comprava fuzis. Trocava trabalho pela violência. Os fuzis punham ordem no caos infernal e a escravidão iniciava o caminho da redenção. Antes de serem marcados com ferro quente, na cara e no peito, todos os negros recebiam uma boa unção de água benta. O batismo espantava o demônio e dava alma a esses corpos vazios. Depois, durante os séculos XIX e XX, a África entregava ouro, diamantes, cobre, marfim, borracha e café e recebia Bíblias.Trocava produtos por palavras. Supunha-se que a leitura da Bíblia podia facilitar a viagem dos africanos do inferno para o paraíso, mas a Europa esqueceu de ensiná-los a ler.

O Demônio é estrangeiro
O imigrante está disponível para ser acusado como responsável pelo desemprego, a queda do salário, a insegurança pública e outras temíveis desgraças

O “culpômetro” indica que o imigrante vem roubar-nos o emprego e o “perigosímetro” acende a luz vermelha. Se for pobre, jovem e não for branco, o intruso, que veio de fora, está condenado, a primeira vista, por indigência, inclinação ao tumulto ou por ter aquela pele. De qualquer maneira, se não é pobre, nem jovem, nem escuro, deve ser mal recebido, porque chega disposto a trabalhar o dobro em troca da metade.

O pânico diante da perda do emprego é um dos medos mais poderosos entre todos os medos que nos governam nestes tempos de medo. E o imigrante está sempre disponível para ser acusado como responsável pelo desemprego, a queda do salário, a insegurança pública e outras temíveis desgraças.

Em outros tempos, a Europa distribuía para o mundo soldados, presos e camponeses mortos de fome. Estes protagonistas das aventuras coloniais passaram à história como agentes viajantes de Deus. Era a Civilização lançada nos braços da barbárie.

Agora a viagem se faz na contramão. Os que chegam, ou tentam chegar do sul em direção ao norte, não trazem nenhuma faca entre os dentes nem fuzil no ombro. Vêm de países que foram oprimidos até a última gota de seu sugo e não têm a intenção de conquistar nada além de um trabalho ou trabalhinho. Esses protagonistas das desventuras parecem, muito mais, mensageiros do Demônio. É a barbárie que toma de assalto a Civilização.

Os bens de poucos sofrem a ameaça dos males de muitos

O Demônio é pobre

Se lambem enquanto você come, espiam enquanto você dorme: os pobres espreitam. Em cada um se esconde um delinqüente, talvez um terrorista. Os bens de poucos sofrem a ameaça dos males de muitos. Nada de novo. Tem sido assim desde quando os donos de tudo não conseguem dormir e os donos de nada não conseguem comer.

Submetidas a um acossamento durante milhares de anos, as ilhas da decência estão encurraladas pelos turbulentos mares da vida desgraçada. Rugem as ondas sucessivas que forçam viver em sobressalto perpétuo. Nas cidades de nosso tempo, imensos cárceres que prendem os prisioneiros ao medo, as fortalezas dizem ser casas e as armaduras simulam ser trajes.

Estado de sítio. Não se distraia, não baixe a guarda, desconfie: você está estatisticamente marcado, mais cedo ou mais tarde terá que sofrer algum assalto, seqüestro, violação ou crime. Nos bairros malditos espreitam, ocultos, remoendo invejas, tragando rancores, os autores de sua próxima desgraça. São vagabundos, pobres diabos, bêbados, drogados, carne de cárcere ou bala, pessoas sem dentes, sem rumo e sem destino.

Ninguém os aplaude, porém os ladrões de galinha fazem o que podem imitando, modestamente, os mestres que ensinam ao mundo as fórmulas do êxito. Ninguém os compreende, porém eles aspiram serem cidadãos exemplares, como esses heróis de nosso tempo que violam a terra, envenenam o ar e a água, estrangulam salários, assassinam empregos e seqüestram países.

Eduardo Galeano
Lê Monde Diplomatique 

O DESAFIO DA RAZÃO: MANIFESTO PARA A RENOVAÇÃO DA HISTÓRIA


Eric Hobsbawm
É tempo de restabelecer a coalizão daqueles que desejam ver na história uma pesquisa racional sobre o curso das transformações humanas, contra aqueles que a deformam sistematicamente com fins políticos e simultaneamente, de modo mais geral, contra os relativistas e os pós-modernos que se recusam a admitir que a história oferece essa possibilidade. A análise é de Eric Hobsbawm.

"Até agora, os filósofos não fizeram mais do que interpretar o mundo; trata-se de mudá-lo." Os dois enunciados da célebre "Teses sobre Feuerbach", de Karl Marx, inspiraram os historiadores marxistas. A maioria dos intelectuais que aderiram ao marxismo a partir da década de 1880 —entre eles os historiadores marxistas— fizeram isso porque queriam mudar o mundo, junto com os movimentos operários e socialistas; movimentos que se transformariam, em grande medida devido à influência do marxismo, em forças políticas de massas.

Essa cooperação orientou de maneira natural os historiadores que queriam transformar o mundo na direção de certos campos de estudo —fundamentalmente, a história do povo ou da população operária— os quais, se bem atraíam naturalmente as pessoas de esquerda, não tinham em sua origem nenhuma relação particular com uma interpretação marxista. Por outro lado, quando esses intelectuais deixaram de ser revolucionários sociais, a partir da década de 1890, com freqüência também deixaram de ser marxistas. 

A revolução soviética de outubro de 1917 reavivou esse compromisso. Lembremos que os principais partidos social-democratas da Europa continental abandonaram completamente o marxismo apenas na década de 1950, e às vezes ainda depois disso. Essa revolução gerou, também, o que poderíamos chamar de uma historiografia marxista obrigatória na URSS e nos Estados, que depois foi adotada por regimes comunistas. A motivação militante foi reforçada durante o período do antifascismo. 

A partir da década de 1950 essa tendência começou a decair nos países desenvolvidos —mas não no Terceiro Mundo— apesar de que o considerável desenvolvimento do ensino universitário e a agitação estudantil geraram, dentro da universidade, na década de 1960, um novo e importante contingente de pessoas decididas a mudar o mundo. Contudo, apesar de desejar uma mudança radical, muitas delas já não eram abertamente marxistas, e algumas já não eram marxistas em absoluto. 

Esse ressurgimento culminou na década de 1970, pouco antes do início de uma reação massiva contra o marxismo, mais uma vez por razões essencialmente políticas. Essa reação teve como principal efeito —exceto para os liberais, que ainda acreditam nisso— o aniquilamento da idéia de que é possível predizer, apoiados na análise histórica, o sucesso de uma forma particular de organizar a sociedade humana. A história havia se dissociado da teleologia. 

Considerando as incertas perspectivas que se apresentam aos movimentos socialdemocratas e social-revolucionários, não é provável que assistamos a uma nova onda politicamente motivada de adesão ao marxismo. Mas devemos evitar cair em um centrismo ocidental excessivo. A julgar pela demanda de que são objeto meus próprios livros de história, comprovo que ela se desenvolve na Coréia do Sul e em Taiwan, desde a década de 1980, na Turquia, desde a década de 1990, e que há sinais de que atualmente avança no mundo árabe. 

A virada social 
O que aconteceu com a dimensão "interpretação do mundo" do marxismo? A história é um pouco diferente, ainda que paralela. Concerne ao crescimento do que se pode chamar de reação anti-Ranke, da qual o marxismo constituiu um elemento importante, apesar de que isso nem sempre foi totalmente reconhecido. Tratou-se de um movimento duplo. 

Por um lado, esse movimento questionava a idéia positivista segundo a qual a estrutura objetiva da realidade era, por assim dizer, evidente: bastava com aplicar a metodologia da ciência, explicar por que as coisas tinham ocorrido de tal ou qual maneira e descobrir wie es eigentlich gewessen (como ocorreu realmente). Para todos os historiadores, a historiografia se manteve e se mantém enraizada em uma realidade objetiva, ou seja, a realidade do que ocorreu no passado; contudo, não está baseada em fatos e, sim, em problemas, e exige investigação para compreender como e por que esses problemas —paradigmas e conceitos— são formulados da maneira em que são o em tradições históricas e em meios socioculturais diferentes. 

Por outro lado, esse movimento tentava aproximar as ciências sociais da história e, em conseqüência, englobá-las em uma disciplina geral, capaz de explicar as transformações da sociedade humana. Segundo a expressão de Lawrence Stone, o objeto da história deveria ser "propor as grandes perguntas do por quê". Essa "virada social" não veio da historiografia, senão das ciências sociais —algumas delas incipientes como tais— que naquele momento firmavam-se como disciplinas evolucionistas, ou seja, históricas. 

Na medida em que é possível considerar Marx como o pai da sociologia do conhecimento, o marxismo —apesar de ter sido denunciado erradamente em nome de um suposto objetivismo cego— contribuiu para dar o primeiro aspecto desse movimento. Além disso, o impacto mais conhecido das idéias marxistas —a importância outorgada aos fatores econômicos e sociais— não era especificamente marxista, ainda que a análise marxista pesou nessa orientação, que estava inscrita em um movimento historiográfico geral, visível a partir da década de 1890, e que culminou nas décadas de 1950 e 1960, para benefício da geração de historiadores à qual pertenço, que teve a possibilidade de transformar a disciplina. 

Essa corrente socio-econômica superava o marxismo. A criação de revistas e instituições de história econômico-social às vezes foi obra —como na Alemanha— de socialdemocratas marxistas, como ocorreu com a revista Vierteljahrschrift em 1893. Não aconteceu da mesma maneira na Grã Bretanha, nem na França, nem nos Estados Unidos. E inclusive na Alemanha, a escola de economia, marcadamente histórica, não tinha nada de marxismo. Somente no Terceiro Mundo do século XIX (Rússia e os Balcãs) e no do século XX, a história econômica adotou uma orientação principalmente social-revolucionária, como toda "ciência social". Em conseqüência disto, foi muito atraída por Marx.

Em todos os casos, o interesse histórico dos historiadores marxistas não se centrou tanto na "base" (a infra-estrutura econômica) como nas relações entre a base e a superestrutura. Os historiadores explicitamente marxistas sempre foram relativamente escassos. 

Marx influenciou a história principalmente através dos historiadores e dos pesquisadores em ciências sociais que retomaram as questões que ele colocava, tenham eles trazido, ou não, outras respostas. Por sua vez, a historiografia marxista avançou muito em relação ao que era na época de Karl Kautsky e de Georgi Plekhanov, em boa parte graças à sua fertilização por outras disciplinas (fundamentalmente a antropologia social) e por pensadores influenciados por Marx e que completavam seu pensamento, como Max Weber. 

Se destaco o caráter geral dessa corrente historiográfica, não é por vontade de subestimar as divergências que contém, ou que existiam no seio de seus componentes. Os modernizadores da história colocaram-se as mesmas questões e consideravam-se comprometidos nos mesmos combates intelectuais, seja que tenham buscado inspiração na geografia humana, na sociologia durkheimiana e nas estatísticas, como na França (simultaneamente, a escola dos Anais e Labrousse), ou na sociologia weberiana, como a Historische Sozialwissenschaft na Alemanha Federal, ou mesmo no marxismo dos historiadores do Partido Comunista, que foram os vectores da modernização da história na Grã Bretanha, ou que, pelo menos, fundaram sua principal revista. 

Uns e outros consideravam-se aliados contra o conservadorismo na história, mesmo quando suas posições políticas ou ideológicas eram antagônicas, como Michael Postan e seus alunos marxistas britânicos. Essa coalizão progressista encontrou expressão exemplar na revista Past & Pressent, fundada em 1952, muito respeitada no ambiente dos historiadores. O sucesso dessa publicação foi devido que os jovens marxistas que a fundaram opuseram-se deliberadamente à exclusividade ideológica, e a que os jovens modernizadores provenientes de outros horizontes ideológicos estavam dispostos a juntar-se a eles, uma vez que sabiam que as diferenças ideológicas e políticas não eram um obstáculo para o trabalho conjunto.

Essa frente progressista avançou de maneira espetacular entre o final da Segunda Guerra Mundial e a década de 1970, naquilo que Lawrence Stone denomina "o amplo conjunto de transformações na natureza do discurso histórico". Isso até a crise de 1985, quando ocorreu a transição dos estudos quantitativos para os estudos qualitativos, da macro para a micro-história, das análises estruturais aos relatos, do social para os temas culturais. Desde então, a coalizão modernizadora está na defensiva, igual que seus componentes não marxistas, como a história econômica e social. 

Na década de 1970, a corrente dominante em história tinha sofrido uma transformação tão grande, especialmente sob a influência das "grandes questões" colocadas ao modo de Marx, que escrevi estas linhas: "Com freqüência é impossível dizer se um livro foi escrito por um marxista ou por um não-marxista, a menos que o autor anuncie sua posição ideológica. Espero com impaciência o dia em que ninguém se pergunte se os autores são marxistas ou não". Mas, como também apontava, estávamos longe de semelhante utopia.

Desde então, pelo contrário, foi necessário sublinhar com maior energia qual pode ser a contribuição do marxismo para a historiografia. Coisa que não acontecia há muito tempo. Também porque é preciso defender a história contra aqueles que negam sua capacidade de ajudar-nos a compreender o mundo, e porque novos desenvolvimentos científicos transformaram completamente o calendário historiográfico. 

No plano metodológico, o fenômeno negativo mais importante foi a edificação de uma série de barreiras entre o que ocorreu, ou o que ocorre, em história e nossa capacidade para observar esses fatos e entendê-los. Esses bloqueios obedecem à recusa em admitir que existe uma realidade objetiva, e não construída pelo observador com fins diversos e mutáveis, ou ao fato de afirmar que somos incapazes de superar os limites da linguagem, ou seja, dos conceitos, que são o único meio que temos para poder falar do mundo, incluindo o passado. 

Essa visão elimina a questão de saber se existem esquemas e regularidades no passado, a partir dos quais o historiador pode formular propostas significativas. Contudo, também há razões menos teóricas que levam a essa recusa: argumenta-se que o curso do passado é contingente demais, ou seja, que é preciso excluir as generalizações, uma vez que praticamente tudo poderia ocorrer ou teria podido ocorrer. De modo implícito, esses argumentos miram todas as ciências. Vamos passar por alto tentativas mais fúteis de voltar a velhos conceitos: atribuir o curso da história a altos responsáveis políticos ou militares, ou à onipotência das idéias ou dos "valores"; reduzir a erudição histórica à busca —importante mas em si insuficiente— de uma empatia com o passado. 

O grande perigo político imediato que ameaça a historiografia atual é o "antiuniversalismo": "minha verdade é tão válida quanto a sua, independente dos fatos". Esse antiuniversalismo seduz naturalmente a história dos grupos identitários em suas diferentes formas, para a qual o objeto essencial da história não é o que ocorreu, mas como isso que ocorreu afeta os membros de um grupo em particular. De modo geral, o que conta para esse tipo de história não é a explicação racional, mas a "significação"; não o que ocorreu, mas como sentem o que ocorreu os membros de uma coletividade que se define por oposição às demais em termos de religião, de etnia, de nação, de sexo, de modo de vida, ou de outras características. 

O relativismo exerce atração sobre a história dos grupos identitários. Por diferentes razões, a invenção massiva de contra-verdades históricas e de mitos, outras tantas tergiversações ditadas pela emoção, alcançou uma verdadeira época de ouro nos últimos trinta anos. Alguns desses mitos representam um perigo público —em países como a Índia durante o governo hinduísta, nos Estados Unidos e na Itália de Silvio Berlusconi, para não mencionar muitos outros dos novos nacionalismos, acompanhados ou não de manifestações de integrismo religioso. 

De qualquer modo, se por um lado esse fenômeno deu lugar a muito palavrório e bobagens nas margens mais longínquas da história de grupos específicos —nacionalistas, feministas, gays, negros e outros— por outro, gerou desenvolvimentos históricos inéditos e extremamente interessantes no campo dos estudos culturais, como o "boom da memória nos estudos históricos contemporâneos", como Jay Winter o denomina. Os Lugares de Memória, coordenados por Pierre Nora, é um bom exemplo. 

Reconstruir a frente da razão 
Diante de todos esses desvios, é tempo de restabelecer a coalizão daqueles que desejam ver na história uma pesquisa racional sobre o curso das transformações humanas, contra aqueles que a deformam sistematicamente com fins políticos e simultaneamente, de modo mais geral, contra os relativistas e os pós-modernos que se recusam a admitir que a história oferece essa possibilidade. Dado que entre esses relativistas e pós-modernos há quem se considere de esquerda, poderiam surgir inesperadas divergências políticas capazes de dividir os historiadores. 

Portanto, o ponto de vista marxista é um elemento necessário para a reconstrução da frente da razão, como foi nas décadas de 1950 e 1960. De fato, a contribuição marxista provavelmente seja ainda mais pertinente agora, dado que os outros componentes da coalizão dessa época renunciaram, como a escola dos Anais de Fernand Braudel e a "antropologia social estrutural-funcional", cuja influência entre os historiadores foi tão importante. Esta disciplina foi particularmente perturbada pela avalanche em direção à subjetividade pós-moderna. 

Contudo, enquanto os pós-modernos negavam a possibilidade de uma compreensão histórica, os avanços nas ciências naturais devolviam à história evolucionista da humanidade toda sua atualidade, sem que os historiadores percebessem cabalmente. E isto de duas maneiras. Em primeiro lugar, a análise do DNA estabeleceu uma cronologia mais sólida do desenvolvimento desde o aparecimento do homo sapiens como espécie. Em particular, a cronologia da expansão dessa espécie originaria da África para o resto do mundo, e dos desenvolvimentos posteriores, antes do aparecimento de fontes escritas. Ao mesmo tempo, isso evidenciou a surpreendente brevidade da história humana —segundo critérios geológicos e paleontológicos— e eliminou a solução reducionista da sociobiologia darwiniana. 

As transformações da vida humana, coletiva e individual, durante os últimos dez mil anos, e particularmente durante as dez últimas gerações, são consideráveis demais para serem explicadas por um mecanismo de evolução inteiramente darwiniano, pelos genes. Essas transformações correspondem a uma aceleração na transmissão das características adquiridas por mecanismos culturais e não genéticos; poderia dizer-se que se trata da revanche de Lamarck contra Darwin, através da história humana. E não serve de muito disfarçar o fenômeno com metáforas biológicas, falando de "memes" ao invés de "genes". O patrimônio cultural e o biológico não funcionam da mesma maneira. 

Em síntese, a revolução do DNA requer um método particular, histórico, de estudo da evolução da espécie humana. Além disso, vale a pena mencioná-lo, proporciona um marco racional para a elaboração de uma história do mundo. Uma história que considere o planeta em toda a sua complexidade como unidade dos estudos históricos, e não como um entorno particular ou uma região determinada. Em outras palavras: a história é a continuação da evolução biológica do homo sapiens por outros meios. 

Em segundo lugar, a nova biologia evolucionista elimina a estrita distinção entre história e ciências naturais, já eliminada em grande medida pela "historicização" sistemática destas ciências nas últimas décadas. Luigi Luca Cavalli-Sforza, um dos pioneiros multidisciplinares da revolução DNA, fala do "prazer intelectual de encontrar tantas semelhanças entre campos de estudo tão diferentes, alguns dos quais pertencem tradicionalmente aos pólos opostos da cultura: a ciência e as humanidades". Em síntese, essa nova biologia nos liberta do falso debate sobre o problema de saber se a história é ou não uma ciência. 

Em terceiro lugar, ela nos leva inevitavelmente para a visão de base da evolução humana adotada pelos arqueólogos e os pré-historiadores, que consiste em estudar os modos de interação entre nossa espécie e seu meio ambiente, alem do crescente controle que ela exerce sobre esse meio. O que eqüivale essencialmente a fazer as perguntas que já fazia Karl Marx.

Os "modos de produção" (seja qual for o nome que se quiser dar-lhes) baseados em grandes inovações da tecnologia produtiva, das comunicações e da organização social —e também do poder militar— são o núcleo da evolução humana. Essas inovações, e Marx era consciente disso, não ocorreram e não ocorrem por elas mesmas. As forças materiais e culturais e as relações de produção são inseparáveis; são as atividades de homens e mulheres que constroem sua própria história, mas não no "vácuo", não fora da vida material, nem fora do seu passado histórico. 

Do neolítico à era nuclear 
Consequentemente, as novas perspectivas para a história também devem nos levar a essa meta essencial de quem estuda o passado, mesmo que nunca seja cabalmente realizável: "a história total". Não "a história de tudo", mas a história como uma tela indivisível onde todas as atividades humanas estão interconectadas. Os marxistas não são os únicos que se propuseram esse objetivo —Fernand Braudel também fez isso— mas foram eles que o perseguiram com mais tenacidade, como dizia um deles, Pierre Vilar. 

Entre as questões importantes que suscitam estas novas perspectivas, a que nos leva à evolução histórica do homem é essencial. Trata-se do conflito entre as forças responsáveis pela transformação do homo sapiens, desde a humanidade do neolítico até a humanidade nuclear, por um lado, e por outro, as forças que mantêm imutáveis a reprodução e a estabilidade das coletividades humanas ou dos meios sociais, e que durante a maior parte da história as neutralizaram eficazmente. Essa questão teórica é central.

O equilíbrio de forças inclina-se de maneira decisiva em uma direção. E esse desequilíbrio, que talvez supere a capacidade de compreensão dos seres humanos, supera com certeza a capacidade de controle das instituições sociais e políticas humanas. Os historiadores marxistas, que não entenderam as conseqüências involuntárias e não desejadas dos projetos coletivos humanos do século XX, talvez possam, desta vez, enriquecidos por sua experiência prática, ajudar a compreender como chegamos à situação atual.

Eric Hobsbawm
Carta Maior
Tradução: Naila Freitas / Verso Tradutores