sábado, 6 de fevereiro de 2010

Folclore e medicina popular na Amazônia*


Folclore e medicina popular na Amazônia*

Márcio Couto Henrique
Historiador da Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará; professor da Faculdade de História/Universidade Federal do Pará. Conjunto Bela Vista, travessa Marajó, 56, 66617-370 - Belém - PA - Brasil. marciocouto1@oi.com.br


RESUMO

Discute as relações entre folclore e medicina popular na Amazônia, tendo como referencial de análise o conto "Filhos do boto", de Canuto Azevedo. Aponta que os contos folclóricos estão saturados de elementos da realidade cultural e podem ser utilizados como testemunhos históricos que expressam embates entre diferentes tradições. Os registros folclóricos são fruto do diálogo muitas vezes conflituoso entre folcloristas, cientistas sociais, médicos, pajés e seus seguidores, e sua análise deve ser acompanhada de reflexão sobre as condições de sua produção. Neste caso específico, trata-se de refletir, com base no imaginário de sedução e cura em torno do boto, sobre a possibilidade de ampliar o conhecimento sobre a medicina popular praticada na Amazônia, região de forte presença da pajelança cabocla.

Palavras-chave: folclore; medicina popular; boto; Amazônia; literatura.

Em conto de 1946, intitulado "Filhos do boto", Canuto Azevedo (1957) narra a estória do sumiço da jovem Gracinha, filha de Pepira e Tertuliana.1 Tendo Gracinha sido vista pela última vez na beira do rio, seu pai concluiu que ela havia sido levada pelo boto, lembrando que havia sido advertido pelo pajé Joaquim Laranjeira no sentido de que a menina não andasse por beira de rio ou igarapé. Desesperado, Pepira pediu ajuda ao pajé a fim de localizar sua filha.

Depois de ouvir a história, o pajé concluiu que, de fato, o boto havia raptado Gracinha e pediu que Pepira levasse "uma roupa de baixo, da menina, e alguma coisa eu digo logo". Marcados então dia e hora para recuperar Gracinha das mãos do boto, o pajé convidou todos para o espetáculo: uma luta com o boto no fundo do rio, ao final da qual ele resgatou a menina. Argumentando que era necessário proteger Gracinha, pajé Laranjeira obtém dos pais autorização para que ela fique sob seus cuidados por algum tempo. Meses depois, a jovem aparece grávida e, para espanto geral, em vez de nascer um filhotinho de boto, nasce um bebê com feições semelhantes às do pajé. Gracinha só pôde regressar à casa dos pais depois da morte do pajé Laranjeira, ocasião em que ela já tinha três filhos do boto.

Mais do que divertida narrativa de uma suposta aventura amorosa do don Juan da Amazônia, penso que a história permite refletir sobre a medicina popular praticada na região amazônica. Segundo Maués (1995), tanto crenças, representações e práticas religiosas quanto práticas de cura das populações rurais da Amazônia estão intimamente associadas ao que o autor definiu como "pajelança cabocla", forma de culto mediúnico originada da pajelança dos grupos indígenas tupi, que incorpora crenças e práticas católicas, kardecistas e africanas, e atualmente recebe forte influência da umbanda. Não obstante, os praticantes da pajelança cabocla continuam se identificando como 'bons católicos', conforme veremos adiante, ao falar do pajé Laranjeira.

Em artigo intitulado "Estudos sobre medicina popular no Brasil", Marcos de Souza Queiroz (1980) divide as obras que tratam da medicina popular no Brasil em três grupos, conforme a abordagem: a dos folcloristas, a da medicina oficial e a da comunidade científica. A primeira abordagem é marcada por grande variedade de obras, com diferentes graus de complexidade, constituindo geralmente inventários em forma de dicionários, sem intenção explicativa. Trata-se de produção distanciada do controle acadêmico sobre a análise do material, e disso decorre a presença de definições etnocêntricas, tais como a de curandeiros como 'gente perniciosa' ou praticantes de 'medicina bárbara'. Para os folcloristas, a medicina popular se encaixaria naquilo que os evolucionistas chamavam de sobrevivências. A perspectiva folclorista, conclui Queiroz (p.243), "trata o universo da medicina popular como se fosse uma colcha de retalhos, confusa e ilógica e, em suma, não se chega a analisá-la como um sistema com regras e consistências próprias".

Sabe-se, hoje, que essa ausência de preocupação em identificar uma lógica própria na medicina popular se estende para os mais variados aspectos do olhar dos folcloristas. Thompson (2001, p.231) registra que, diante dos costumes e dos rituais, "as perguntas dos folcloristas raramente procuravam saber da sua função ou uso corrente". Em minha dissertação de mestrado (Henrique, 2003), por exemplo, observei que a preocupação de Couto de Magalhães - um dos fundadores do estudo do folclore em nosso país - em compreender os significados que os índios atribuíam a suas crenças o distinguia da maioria dos folcloristas de sua época, posto que, na época, era mais comum relacionar o registro das crenças amazônicas com a descrição de suas origens e a forma de sua sobrevivência. Não havia, em grande parte dos folcloristas, interesse em perceber os significados próprios dessas manifestações no contexto das comunidades da região.2 De todo modo, não se pode negar o valor das narrativas do folclore para a compreensão da medicina popular, além de outros aspectos.

Neste artigo, analiso as relações entre folclore e medicina popular na Amazônia, tendo como referência o conto de Canuto Azevedo, além de trabalhos de pesquisadores que escreveram sobre o tema, sem desconsiderar o fato de que as motivações de folcloristas e pesquisadores são, evidentemente, bastante diferentes. De fato, proponho um diálogo entre a análise dos cientistas sociais e a produção dos folcloristas. Afinal, estes últimos são sujeitos socialmente inseridos e escrevem com base em suas múltiplas experiências, tecidas na mesma sociedade em que vivem os cientistas sociais. A produção dos textos folclóricos e dos cientistas sociais deve ser pensada, então, como fruto de constante diálogo entre ambos e os adeptos da medicina popular, no qual é possível perceber diversas (in)compreensões acerca de um tema. Embora traçando caminhos diferentes, pode-se dizer que os folcloristas escrevem e reescrevem a história da medicina popular na Amazônia, o que os configura como intérpretes de seu tempo.3 De acordo com Nicolau Sevcenko (1999, p.19), "a linguagem está no centro de toda atividade humana. Sabe-se hoje que, sendo ela produzida pelo complexo jogo de relações que os homens estabelecem entre si e com a realidade, ela passou também a ser, a partir do próprio momento da sua constituição, um elemento modelador desse mesmo conjunto de relações".

Canuto da Costa Azevedo (1889-1979), autor do conto "Filhos do boto", era médico, paraense do município de Muaná, na ilha do Marajó, onde exerceu o cargo de intendente municipal. Homem do mundo das letras, criou o jornal Município de Muaná, para o qual contribuía com poesias e matérias de interesse social. Apesar de afirmar, na introdução de Histórias da Amazônia (Azevedo, 1957, p.5), que "outra coisa não visei que a distrair-me das tribulações da vida, bateando no garimpo da ficção", sua bateia literária mostra-se rica em elementos da realidade cultural amazônica. Acima de tudo, é preciso considerar que mesmo afirmando que "literatura pressupõe arte na sua divina expressão de naturalidade, cultura e beleza", a arte de Canuto Azevedo deve ser pensada como parte do complexo jogo de relações que marcaram as diferentes concepções da prática da medicina no Brasil, particularmente na Amazônia. Entretanto, se por um lado a linguagem folclórica construída pelo autor carrega as marcas dos debates de sua época, por outro, a partir do momento de sua constituição e divulgação, ela passa a ser um elemento modelador a mais desse mesmo conjunto de relações que a propiciou. Mais do que recrear o espírito, proponho aqui uma garimpagem nas pepitas etnográficas produzidas por Canuto Azevedo.

Mostrou Aldrin Figueiredo (1996) que muitas das histórias narradas pelos pajés da Amazônia, quando passavam pelo crivo das letras, transformavam-se em folclore. Nesse sentido, Canuto Azevedo utilizava suas experiências na ilha do Marajó para enriquecer seus contos folclóricos. Considerando que "o ponto de interseção mais sensível entre a história, a literatura e a sociedade está concentrado evidentemente na figura do escritor" (Sevcenko, 1999, p.246), é preciso refletir sobre o lugar social em que escrevia o autor de "Filhos do boto". Afinal, Muaná é reconhecido, de longa data, como lugar de concentração de pajés. De acordo com Figueiredo (1996), é possível acompanhar a movimentação de pajés dessa cidade, na segunda metade do século XIX, em relatos publicados nos periódicos da época. Matéria publicada no Diário de Notícias, em 8 de maio de 1884, informava que uma "menina-pajé" tratava os moradores do rio Tupuruquara, distrito de Muaná, extraindo uma série de "animalejos" do corpo de seus clientes. Em 2 de fevereiro de 1885, em Belém, a polícia prendia o pajé Raimundo Antonio de Belém - que se apresentava como "o menino inspirado de Muaná" -, acusado de ter roubado o cordão de uma moça sob a alegação de que a joia estava enfeitiçada. Dois anos depois, o mesmo periódico informava sobre o pajé Ângelo, acusado de prescrever beberagens no rio Paruru, outro distrito muanense, e retirar do corpo de um cliente enfermo bichos, formigas e flechas.

Certamente Canuto Azevedo estava a par da longa tradição da pajelança em sua cidade natal. Na condição de médico, deparou os inevitáveis conflitos com as práticas de cura dos pajés, muitos dos quais se tornaram famosos nos jornais da capital paraense. No cargo de intendente municipal, novamente os pajés cruzavam seu caminho, adequando-se ou não às posturas públicas. Enfim, na condição de folclorista, ele estava preocupado em buscar a essência poética da Amazônia junto às pessoas mais simples, a fim de identificar e registrar o que seria a alma do povo, discussão que acompanha o estudo do folclore desde seus primeiros passos (Figueiredo, 1996). Tanto é que, ao explicar o percurso que seguiu na construção de Histórias da Amazônia (Azevedo, 1957, p.9), adverte: "há-de cuidar-se, naturalmente, ressumbrem, ponto por ponto, fantasia pura. Pois, tal não seja o engano: bem que forjando uma parte, muito da realidade copiei".

Com relação especificamente ao conto em análise, Azevedo admite que ele encerra "episódios passados, verdade que esbatidos no fundo vivo de uma doirada moldura" (p.9). Para justificar a afirmação de que "muito da realidade copiei", o autor tinha diante de si um amplo painel de práticas da pajelança, filtradas nas linhas do registro folclórico. Dessa forma, pode-se pensar o conto tanto como folclore, posto que amplamente fundamentado em práticas, usos, costumes, crenças e lugares da ilha do Marajó, como literatura, uma vez que muitos matizes, nas palavras do próprio autor, foram conferidos "no tear da imaginação" (p.5). Mais do que se distrair produzindo uma coleção de contos de textura amazônica, ele nos revela, na maneira específica de articular ideias e personagens no substrato folclórico amazônico, como se situava nos debates de sua época.

Nicolau Sevcenko (1999, p.20) ressalta que se tornou "hoje em dia quase que um truísmo a afirmação da interdependência estreita entre os estudos literários e as ciências sociais". Ao analisar a obra de Lima Barreto e Euclides da Cunha, o autor esclarece que se a obra literária é fruto de uma criação do escritor, "todo escritor possui uma espécie de liberdade condicional de criação, uma vez que os seus temas, motivos, valores, normas ou revoltas são fornecidos ou sugeridos pela sua sociedade e seu tempo - e é destes que eles falam". Assim, embora estilizando suas narrativas para propiciar prazer e distração a seus leitores, Canuto Azevedo, como qualquer escritor, fala de sua época e expressa, simultaneamente, identificação e estranhamento diante de seu próprio mundo.

É bem verdade que sua narrativa se marca por definições etnocêntricas e que o folclorista não está preocupado em perceber os significados próprios que seus personagens atribuem à crença no boto e a suas aventuras amorosas com as mulheres da região. Vejamos alguns exemplos. Desde o início da narrativa, o pajé Laranjeira é definido como "caboclo sabido" e Pepira, ironicamente, como "o sabe-tudo". Na beira do rio, o pajé é descrito como "mágico" que executa um "burlesco ritual". Por oposição, o "sabe-tudo" é observado de perto por uma "récua de palermas". A esperteza do pajé também é enfatizada quando deixa bem claro ao pai de Gracinha que, para o sucesso do ritual, duas coisas bastavam: "a moca e a caninha! De nada mais se precisa". Dessa forma, o café (moca) e a cachaça (caninha) aparecem como objetos do interesse pessoal do pajé, praticamente desconectados de sua função ritual. Apesar das galhofas de que Laranjeira é vítima, posto que alguns duvidam da seriedade de suas proezas - "só eu vendo", declarou zombeteiramente o caboclo Sizenando -, os que assistem ao espetáculo do pajé são definidos como "crédula gente". Nesse aspecto, como mostrou Aldrin Figueiredo (1996), a construção da imagem negativa do pajé, por parte de Canuto Azevedo, acompanha processo de longa data entre os folcloristas. Esses pajés espertalhões eram, para alguns intelectuais, uma deturpação dos verdadeiros pajés, supostamente extintos. Por outro lado, os folcloristas incluíam a pajelança num conjunto de crenças fadadas à extinção, restando unicamente a solução de conservá-las como folclore.

Em "Filhos do boto" o personagem Sizenando, depois de constatar a credulidade dos demais, se rende: "eu acredito, pessoal! ... Vontade apenas de brincar". Cabe observar também que o narrador representa metaforicamente o mundo e a própria história, contada como "luta de tração em cuja corda pegam, de uma ponta e de outra, o crédulo e o cético, o bem e o mal intencionado, o esperto e o tolo". Ou, ainda, que o pajé consegue convencer Pepira da necessidade de manter Gracinha sob seus cuidados por mais tempo, "depois de animá-lo com sua prodigiosa lábia". Nota-se, assim, que Canuto Azevedo constrói desde o início a figura de um pajé espertalhão, ávido por tirar proveito pessoal da credulidade dos demais - construção que estaria de acordo com a definição da narrativa folclórica apresentada por Queiroz (1980), no sentido de mostrar os curandeiros como 'gente perniciosa' ou praticantes de uma 'medicina bárbara'.

Nem só de etnocentrismo, porém, é composta a narrativa de Azevedo. O autor evidencia significativo grau de conhecimento acerca das concepções da população amazônica sobre a medicina popular. Diversos aspectos do conto podem ser encontrados em trabalhos produzidos por folcloristas e cientistas sociais da região amazônica. A crença no poder de sedução do boto junto às mulheres é bastante comum nas mais diversas paragens da Amazônia. Nas muitas histórias que ouviu dos índios da Amazônia no século XIX, José Vieira Couto de Magalhães (1940), iniciador do estudo do folclore entre nós, observou que nenhum dos seres sobrenaturais da cosmologia indígena forneceu mais lendas à poesia americana do que o Uauyará, ser que se transformaria no boto. Escrevendo em 1876, dizia ele que

inda hoje no Pará não há uma só povoação do interior que não tenha para narrar ao viajante uma série de histórias, ora grotescas e extravagantes, ora melancólicas e ternas, em que ele figura como herói. O Uauyará é um grande amador das nossas Índias; muitas delas attribuem seu primeiro filho a alguma esperteza desse deus, que ora as surpreendeu no banho, ora se transformou na figura de um mortal para seduzi-las; ora as arrebatou para debaixo d'água, onde a infeliz foi forçada a entregar-se-lhe. Nas noites de luar, no Amazonas, conta o povo do Pará que muitas vezes os lagos se iluminam e que se ouvem as cantigas das festas e o bate-pé das danças com que o Uauyára se diverte (p.169-170).

Na verdade, entre aquelas que parecem ser as primeiras menções, na literatura, à figura do boto sedutor, há relatos indicando que até o século XIX acreditava-se que o boto também poderia assumir a forma feminina, para seduzir os homens. O viajante inglês Henry Walter Bates (1979, p.238), que esteve no Brasil na primeira metade do século XIX, ouviu no estado do Amazonas "muitas histórias misteriosas do boto", sendo que "uma delas falava do costume que tinha o boto de tomar as formas de bela mulher, de cabelos soltos, chegando até aos calcanhares, e que caminhava à noite pelas ruas de Ega, para seduzir os rapazes e levá-los para a água. Se algum se enamorava e a seguia até à beira d'água, ela abarcava sua vítima pela cintura e mergulhava nas ondas com um grito triunfante".

Escrevendo em 1878, o folclorista paraense José Veríssimo (1970, p.57) observava que o boto "reveste igualmente as formas de mulher para seduzir os homens que arrasta consigo para a água". Em todo caso, ao longo do século XX a imagem do boto como uma espécie de don Juan sedutor das mulheres amazônicas se sobrepôs à versão do boto sob a forma feminina. Ermano Stradelli (1929, p.603) menciona o "boto vermelho, de que se contam tantas histórias de namoros e seduções de moças", sem fazer nenhuma referência a rapazes seduzidos. Também em Câmara Cascudo (1947, p.186) o boto vermelho é definido como "o don Juan de todas as moças que ignoram o pai de seu primeiro filho".

No romance Marajó, escrito em 1947, um ano depois de "Filhos do boto", o escritor paraense Dalcídio Jurandir (1992), também originário da ilha do Marajó, faz referência ao poder de sedução da 'bota' sobre os homens, mas numa situação particular: um diálogo entre dois personagens que, em meio à caça a supostos tesouros enterrados, falam de Orminda, uma cabocla cuja beleza exercia grande poder de sedução sobres os homens em Ponta de Pedras, na ilha do Marajó:

Contavam que Orminda foi achada na praia. Não nasceu da velha Felismina. Orminda nasceu da mãe d'água e com isso Hemetério excitava a imaginação do sírio. Lá do fundo, Hemetério gritou:

- Seu Calilo, pensando em Orminda?

Calilo abeirou-se mais da cova, olhou para o fundo, ávido.

- Seu Calilo, Orminda é como bota.

O caboclo começou a explicar, enquanto cavava, que a bota se parecia com mulher. Quando morta na praia o caboclo não pode fugir à tentação.

- E ah, seu Calilo. É por demais bom, mas bom mesmo que mata. Não tem mulher igual. Mata. É uma areia gulosa. Arrancaram uma vez um pescador de cima de uma bota morta na praia. Estava quase morto. Mata, seu Calilo. (p.81-82)

"Parecer bota" ou ter sido iniciada sexualmente pelo boto eram expressões utilizadas de forma preconceituosa contra mulheres que não se encaixavam nos padrões de dominação masculina da época e do lugar. Orminda, que tinha "um corpo, uns olhos, uns modos de fêmea nascida para virar o mundo ... [que] não veio pro mundo pra ser de um homem só" (Jurandir, 1992, p.221), muitas vezes é definida em Marajó como louca. Ela era como a novilha encantada do lago Guajará, que ninguém tranca, ninguém ferra, ninguém desencanta. Por isso, a "louca Orminda" dizia de si mesma: "nasci doida-doida" (p.154). Por outro lado, ao encarnar ideais de liberdade num mundo dominado pelo coronelismo, ou melhor dizendo, pelo coronel Coutinho, Orminda representa "a exuberância solta do povo" (p.272). Mais do que louca, ela era livre, "a livre e louca Orminda" (p.148).

No mesmo romance, um diálogo entre Orminda e uns vaqueiros indica a associação de outra mulher aos poderes do boto. Trata-se da "feiticeira" madrinha Leonardina, pajé do rio Arari.

- Quem primeiro conheceu Madrinha Leonardina foi o boto.

- Conheceu?

À pergunta de Orminda, a cabocla soltou uma curta risada, cuspiu e meteu a saia cor de terra entre as coxas. Os vaqueiros riram.

- Sim conheceu, quem primeiro fez vivença com ela foi o boto.

- Deixem de graça. Assem logo esse peixe. Ofende? - retrucou Orminda fazendo-se íntima e isto animou os homens.

O vaqueiro prosseguiu: Leonardina amarrou o casco na aninga perto do Moirim e esperou pororoca estourar nas pedras. Em vez de pororoca veio o boto que soprava para a lua minguante. Madrinha Leonardina fez vivença com o bicho debaixo das pedras onde nasce a pororoca. Daí o poder que ela tem.

- Ela foi esposarana do bicho um verão inteiro, confirmou a cabocla rindo, a virar o peixe nas brasas ... (p.225)

A identificação entre Orminda e madrinha Leonardina é imediata. Ambas eram vítimas do preconceito masculino e conhecidas por suas atitudes de rebeldia. A pajé Leonardina era tão temida que mesmo o coronel Coutinho, dono de tudo e de todos em Ponta de Pedras, "não escondia o seu temor diante da fama de sua amiga, lhe trazia presentes da cidade, carne de gado, rede de varanda rendada, cachimbo novo, palha para a barraca" (Jurandir, 1992, p.223). Madrinha Leonardina era "mulher de acabar festa nas fazendas, usava faca americana, dava em homem. O corpo era cheio de tanta curva quanta curva tem o rio Arari" (p.226). Por isso, Orminda quis pular fogueira de são João para tornar-se afilhada de madrinha Leonardina. Assim, teria "uma madrinha poderosa para lhe afugentar a má sorte e ensinar-lhe a andar entre homens tão traiçoeiros e ruins" (p.222); homens que procuravam vingar-se dessas duas mulheres livres e loucas acusando-as de filhas da Mãe d'Água ou "esposaranas" do boto. Já que não podiam com elas, atacavam-nas simbolicamente, desejosos de que tais estigmas servissem como freios a suas atitudes de rebeldia.

Eduardo Galvão (1976, p.68) observou a crença no poder sedutor do boto na região de Itá (Gurupá), no baixo Amazonas: "o boto tem especial atenção pelas mulheres menstruadas. Durante esse período as mulheres devem evitar viagens em canoas ou aproximar-se do rio ou dos igarapés" (p.68). Maria Angélica Motta-Maués (1993, 1998) constatou que na região de Itapuá, pequena comunidade do município paraense de Vigia, na chamada região do Salgado, o boto estava entre as "entidades que podem causar mal à mulher nos seus 'tempos'" (menstruação), sendo que seus locais de habitação deveriam "ser evitados pela mulher naquela situação". Segundo Motta-Maués (1998, p.117), "o boto só ataca mulheres, e mais, só no período que vai da menarca até a ocorrência da menopausa. Apresentando-se como um jovem bonito, sempre vestido de branco, o boto passa a namorar a mulher, até conseguir manter relações sexuais com ela. Quando isso acontece, o boto deve ser morto à bala (o que sempre ocorre, aliás), senão ele suga todo o seu sangue, através do ato sexual e a mulher acaba morrendo anêmica".

Cabe lembrar que, na narrativa de Canuto Azevedo, Pepira logo perguntou à companheira Tertuliana se "a Graça não andou pela beira do rio". Ao ouvir de Terta a resposta de Gracinha ("que não temia bicho bobo"), Pepira concluiu que a menina havia sido levada pelo boto. Embora possa o boto prejudicar a mulher em qualquer situação e o sumiço de Gracinha, ser atribuído ao pajé sedutor, é válido deduzir, de acordo com a concepção popular amazônica, que possivelmente ela estava menstruada, o que explica os cuidados redobrados para que a menina não andasse na beira do rio, a fim de evitar o "ataque de boto" (Maués, 1990, p.158). É interessante perceber, na resposta de Gracinha ("que não temia bicho bobo"), um quê de discordância ou rompimento com a crença tradicional dos pais e de sua comunidade.

Num vocabulário de termos regionais, Canuto Azevedo (1957, p.107) explica que as caboclas do Marajó evitavam andar de canoas (montarias) vestidas com roupas vermelhas, que, segundo a crença local, atrairia a perseguição do boto. "Ainda hoje - escrevia ele, em 1946 - em Marajó, pelo menos, há mulheres que não tomam banho no rio, e tampouco viajam, durante o período das regras, com medo de serem fecundadas pelo boto. Para afugentar o malvado, acreditam que basta fazer cruzes com o terçado ou faca na água, ou jogar um punhado de farinha, que entrando-lhe no respiradouro poderá sufocá-lo". De fato, em "Filhos do boto", ao se despedir de Gracinha à beira do igarapé, os pais da moça veem o pajé Laranjeira de facão em punho, "recortando cruzes na água para afugentar o malvado".

Se para muitos de hoje a expressão 'filho de boto' está associada a uma crença característica da "infância do mundo", como afirmava José Veríssimo, os relatos dos folcloristas mostram que nem sempre foi assim. Umberto Peregrino (1942), por exemplo, ouviu do doutor Gete Jansen, na década de 1940, a história de uma mulher que levou seu filho ao serviço médico e, ao ser perguntada sobre o nome do pai, "respondeu com absoluta convicção: 'Não tem, não senhor, é filho de boto'. A mulher era casada, tinha outros filhos cuja paternidade atribuía pacificamente ao marido, mas aquele teimava em dar como filho de boto" (p.97).

De fato, é possível perceber a força da crença nas mais diversas formas de expressão cultural na Amazônia. No conto "O baile do judeu", publicado pela primeira vez em 1893, o romancista paraense Inglês de Souza4 - que, segundo Mauro Barreto (2000, p.155), nos deixou "um retrato socioantropológico da região em forma de romance, o romance da vida amazônica" - narra a história de um judeu que decidiu dar um baile, convidando a gente da terra, "a modo de escárnio pela verdadeira religião de Deus crucificado" (Inglês de Souza, 2005, p.83). A grande rainha do baile era a dona Mariquinhas, mulher do tenente-coronel Bento de Arruda, casados há três semanas. Corria animado o baile até que, por volta das 11 horas da noite, "entrou de repente um sujeito baixo, feio, de casacão comprido e chapéu desabado, que não deixava ver o rosto, escondido também pela gola levantada do casaco. Foi direito a dona Mariquinhas, deu-lhe a mão, tirando-a para uma contradança que se ia começar" (p.85). Foi grande a surpresa dos convidados diante do atrevimento daquele desconhecido, mas, por acharem que não passava de uma troça, caíram na gargalhada enquanto observavam a dança. As muitas "macaquices do engraçado cavalheiro de chapéu desabado" levaram dona Mariquinhas a desfalecer de cansaço, mas seus gemidos eram abafados pelo barulho da empolgada plateia, que só percebeu o que estava acontecendo quando o dançarino deixou cair o chapéu. Nesse momento,

o tenente-coronel, que o seguia assustado para pedir que parasse, viu com horror que o tal sujeito tinha a cabeça furada. E em vez de ser homem era um boto, sim, um grande boto, ou o demônio por ele ... . O monstro, arrastando a desgraçada dama pela porta fora, espavorido com o sinal da cruz feito pelo Bento de Arruda, atravessou a rua, sempre valsando, ao som da Varsoviana, e chegando à ribanceira do rio, atirou-se lá de cima com a moça imprudente, e com ela se atufou nas águas (p.87).

A narrativa de Inglês de Souza é bastante parecida com o registro que Câmara Cascudo (1947, p.187) fez do 'don Juan da Amazônia'. Ao cair da tarde, ele nada para a terra e torna-se homem: "fica perfeitamente um ser humano e nada resta de sua aparência de peixe em maioria absoluta dos casos. Torna-se um caboclo alegre, forte, atirado, afoito, dançando bem e com uma sede incontentável. Não há melhor par nem mais simpático cavalheiro num baile. Apenas não tira o chapéu para que não vejam o orifício por onde respira".

Também preocupado em revelar a "alma brasileira", tendo realizado pesquisas folclóricas em diversas regiões do Brasil, o maestro e compositor paraense Waldemar Henrique (1905-1995), com base num poema de Antônio Tavernard, compôs, em 1933, a música "Foi bôto, sinhá", em que narra história parecida com a de Gracinha:

Tajá-Panema chorou no terreiro,
E a virgem morena fugiu no costeiro.
Foi Boto, Sinhá... Foi Boto, Sinhô!
Que veio tentá
E a moça levou
No tar dansará,
Aquele doutô,
Foi Boto, Sinhá... Foi Boto, Sinhô!
Tajá-Panema se poz a chorá.
Quem tem filha moça é bom vigiá!
O Boto não dorme
No fundo do rio
Seu dom é enorme
Quem quer que o viu
Que diga, que informe
Se lhe resistiu
O Boto não dorme
No fundo do rio... (Chaves, Lima, 1994)

Segundo Márcia Aliverti (2005, p.284), o boto "é a saída social para as moças que engravidam sem casar. Desculpa fundamental que desvia a jovem do papel de pecadora para o de vítima. O mito também serve ao rapaz que engravidou uma jovem, uma vez que não será procurado, nem identificado, nem responsabilizado. Como resolve tantos 'desconfortos', o Boto apresenta-se como um mito socialmente perfeito, sendo talvez esta a razão que o mantém tão vivo até hoje". Portanto, atribuir a paternidade de determinado filho ao boto seria estratégia social utilizada pelas mulheres para encobrir relações extraconjugais ou mesmo uma gravidez antes ou fora do casamento, situações que, mais do que pecado, constituem rompimento de regras sociais específicas. Daí compreendermos atitudes como a relatada por Umberto Peregrino, acerca da mulher que afirmara com convicção, no serviço de saúde, que um de seus filhos não tinha pai, era filho de boto. Por outro lado, a crença no boto acaba sendo utilizada como estratégia de controle das moças, que devem evitar andar sozinhas, principalmente à beira dos rios e quando estiverem menstruadas, a fim de evitar as investidas do boto sedutor. Afinal, já que "o boto não dorme", "quem tem filha moça é bom vigiar". Quando o tajá-panema chora, já é tarde demais!5



Casa de Oswaldo Cruz - FIOCRUZ

Um comentário:

O passado é um país estrangeiro disse...

Prezado Eduardo,
Que legal ver meu artigo em seu Blog!!! Estou organizando meu próprio blog e assim que estiver pronto te informo o endereço para trocarmos ideias. Obrigado pela divulgação de meu artigo e sucesso ao seu blog!! Márcio Couto.