sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Razão triunfante: Notas sobre a visão da loucura nos escritos de Hegel


Razão triunfante: Notas sobre a visão da loucura nos escritos de Hegel[1]


Maurício Ouyama

Doutorando em História pela UFPR e professor do curso de especialização em História da Faculdade de Artes do Paraná


No início do século XIX, ainda sob os auspícios da Revolução Francesa, o primeiro clínico e o pensador da Razão estavam engajados em um mesmo movimento: a da anexação da loucura pela Razão. A experiência clínica de Philippe Pinel pôde alimentar as concepções filosóficas de Hegel porque, em matéria de insânia, ambos estavam animados por um mesmo motivo. O grande legado de Pinel foi a invenção da tecnologia asilar e do reconhecimento do louco como um “alienado” isto é, como um doente da Razão.[2] Hegel foi o primeiro a pensar a loucura em uma relação interior à própria Razão. Este artigo pretende demonstrar que os dois grandes expoentes da cultura européia do século XIX estavam em consonância absoluta, buscaremos analisar como no século XIX o pensamento médico e a tradição filosófica convergiam para um mesmo objetivo, qual seja, transformar a loucura como um elemento intrínseco à própria Razão. Buscaremos analisar com que ferramentas teóricas e conceituais Hegel trabalhou (a partir de uma matriz pineliana) e em que pontos ambos estavam em acordo. O textos utilizados são o Tratado Médico-Filosófico de Philippe Pinel e a Enciclopédia das Ciências Filosóficas de Hegel.[3] Hegel leu Pinel: da experiência clínica do alienista ele extraiu uma versão filosófica da loucura e deu à ela uma conceituação rigorosa, que tentaremos reportar à seguir.[4]
A chave do conceito de loucura no texto de Hegel aparece de forma explícita na nota § 408 e no seu adendo publicada na Enciclopédia das Ciências Filosóficas. Segundo Hegel: “a alienação mental não é a perda abstrata da Razão, mas somente contradição na Razão que ainda existe”.[5]
Notemos desde já que a loucura não é definida por Hegel como “perda” da Razão, nem como “contrário” ou “ausência”, tão comuns no vocabulário corrente da época. O que importa neste conceito hegeliano é a idéia de loucura como “contradição”. E mais: uma contradição dentro de uma Razão “que ainda existe”. Com isso percebemos logo que com Hegel, assim como em Pinel, a loucura não é algo que existe em relação de oposição a Razão, mas como um elemento dentro de uma Razão que ainda existe. Hegel só pôde pensar dessa forma porque o século XVIII trouxe uma idéia simples, mas decisiva, de que a loucura poderia ser curável, de que existia, em todo louco, um resto ainda de Razão, o que os iluministas chamavam de “Razão intacta”.[6] Em suma, a percepção dos médicos do final do século XVIII era de que em toda loucura havia um resto de Razão.
É assim que Pinel pôde pensar a alienação mental como um simples desarranjo no interior da Razão e Hegel como uma contradição na Razão que ainda existe. Portanto, a interpretação de Hegel não foi imposta de fora, por uma espécie de violência teórica, nada tinha de arbitrário em relação ao pensamento médico de sua época. Hegel confere todo o mérito de sua própria descoberta à Pinel:
O mérito é todo de Pinel especialmente por ter captado esse resto de Razão, presente nos loucos e nos delirantes, e de ter orientado segundo essa apreensão a cura dos doentes mentais. Seu escrito sobre esse assunto [isto é, o Tratado Médico-Filosófico] deve ser proclamado o que há de melhor nesse domínio.[7]
Na sua nota sobre a loucura na Enciclopédia das Ciências Filosóficas, Hegel buscou potencializar as implicações dessa interpretação, esclarecendo e direcionando as linhas de força do pensamento psiquiátrico e dando à interpretação dos alienistas de seu tempo uma conceitualização rigorosa da loucura à partir da própria noção de uma Razão que tudo superaria, em outras palavras, do advento de uma Razão Gloriosa.
Com isso, Hegel devolveu ao Desatino uma certa dignidade filosófica. A loucura, como bem observou Jacques Derrida em um texto sobre as Primeiras Meditações de Descartes, era excluída do círculo de dignidade filosófica, porque o Cogito excluía por princípio a idéia de que aquele que pensa pudesse “ser louco”.[8] Excluída, marginalizada, colocada fora do círculo de dignidade filosófica a loucura era experimentada como uma modalidade de experiência exterior, por excelência, à Razão. O Cogito cartesiano excluía em princípio qualquer possibilidade de relação ou comunicação entre Loucura e Razão.
Portanto, Hegel como o pensador da Razão reconduz a loucura ao centro da reflexão filosófica e confere à ela um lugar privilegiado em relação ao Pensamento.
Contradição, diz Hegel, mas quais os termos desta contradição? Contradição entre o que e o que? Segundo Hegel os termos desta contradição são: de um lado a “totalidade ordenada” que é a consciência objetiva do sujeito e, de outro lado, uma “determinação particular” que é o elemento heterogêneo dentro de um sistema de organização racional. Examinemos esta contradição à luz de seu reverso, explicitando inicialmente o que era o sujeito “racional” para o filósofo. Segundo ele, o sujeito “são” é aquele que

Tem presente a consciência da totalidade ordenada do seu mundo individual, em cujo sistema subsume todo particular conteúdo que lhe venha da sensação, representação, apetite, tendência, etc. e o coloca no posto que lhe cabe racionalmente: é o gênio que domina as particularidades.[9]
O sujeito “são” afirma Hegel é um sujeito reflexível, isto é, é aquele sujeito que consegue ordenar sua consciência, seu universo sensitivo, ideativo e volitivo, em outras palavras, seu mundo individual, dentro de uma “totalidade ordenada”. A sanidade é o “gênio que domina as particularidades” e coloca as coisas “no posto que lhes cabe racionalmente”. Aquilo que Hegel chama de “gênio” os alienistas de seu tempo davam o nome de “Vontade”. A vontade é o elemento regulador dos “afetos” (isto é, dos elementos que possibilitam as trocas sociais: amor materno, instinto sexual, etc.) Quando os afetos não são controlados pela vontade, viram paixões violentas. A vontade teria assim essa função de regulação social, de autoridade moral, de regulação dos afetos para que estes não se transformem em paixões perigosas.[10] Como se vê, embora utilizando um vocabulário distinto, a conceitualização de Hegel não é totalmente estranha ao pensamento médico de seu tempo. O gênio hegeliano também funciona como essa potência capaz de controlar as “particularidades” colocando as coisas, na consciência do sujeito, no posto que lhes cabe do ponto de vista racional. Ou melhor, a vontade é a versão clínica do gênio hegeliano.
A loucura sobrevém exatamente quando esta hierarquia é invertida, quando a consciência perde o controle de colocar as coisas no seu posto racional, quando o sujeito não consegue ordenar sua consciência numa “totalidade ordenada”. A loucura ocorre no momento da sublevação de alguma “determinação particular”. Quando um elemento, que faz parte da “totalidade ordenada” ganha autonomia e torna-se um elemento heterogêneo, estranho, ao sistema.
O sujeito, embora tenha revestido a forma de consciência de-entendimento, ainda é capaz dessa doença que é permanecer com pertinácia em uma particularidade de seu sentimento, que ele não pode elaborar em idealidade, nem superar. O Si repleto, o da consciência de-entendimento, é o sujeito enquanto conseqüência em si mesma, ordenando-se e mantendo-se conforme sua individual posição e conexão com o mundo externo, igualmente ordenado no interior dele mesmo. Mas, ficando preso a uma determinação particular, não assigna a tal conteúdo de-entendimento, e a subordinação que lhe compete no sistema-de-mundo individual que é um sujeito. O sujeito, desse modo, encontra-se na contradição entre sua totalidade sistematizada na sua consciência e a determinação particular que nela não é fluida nem coordenada.[11]
Hegel faz um pequeno inventário do que ele chama de “determinação particular”: vaidade, orgulho, ódio, imaginação, esperança. Como se vê, não são elementos que são estranhos ao sistema, mas de particularidades interiores à consciência que ganham autonomia e se livram desse todo organizado o qual pertenciam na origem. Trata-se, diz Hegel, de “elementos terrenos” (palavras do próprio filósofo) que ao liberarem-se da instância que as devia controlar, rompem com a totalidade ordenada do sujeito. Essa determinação não vem de fora, não é o irredutível ou exterior ao sujeito, mas um elemento que pertence à própria totalidade ao qual essa particularidade pertencia na origem.
A loucura começa quando um desses elementos particulares se fixa em si mesma e escapa ao seu lugar no sistema, conquistando independência em relação ao Todo organizado. A loucura, portanto, é compreendida na concepção hegeliana como uma “fissura” no interior do sujeito. A contradição, afirma Hegel, é entre a “consciência sistematizada” e uma de suas “particularidades”. Entre o universal e o particular, entre o Todo e uma de suas partes.
Na loucura, o sujeito fica tão preso a uma representação particular que não consegue ultrapassa-la. Essa determinação particular, que faz parte integrante do sistema, ganha autonomia e torna-se heterogêneo. O sujeito fica encerrado em sua contradição. Absorvido por esse elemento
particular, extravagante ao sistema, ele não pode mais subordina-lo, não consegue ordenar sua consciência objetiva, nem colocar esse elemento “no posto que lhe cabe racionalmente”. Na contradição, o sujeito fica estagnado em uma particularidade.
Em seu comentário sobre Hegel, Gladis Swain percebeu rapidamente a contradição que atravessa o sujeito na loucura. Existe dois pólos na loucura. Por um lado, uma consciência objetiva e organizada, por outro lado, há uma subordinação à um conteúdo particular. Há na loucura contradição da totalidade subjetiva consigo mesma: existe na loucura um elemento heterogêneo que nega a totalidade como totalização possível.
Por outro lado, esse elemento não constitui um obstáculo à totalização objetiva e constitui, ele mesmo, um sistema paralelo, uma realidade paralela,um sistema próprio. Coexistem, portanto, no sujeito louco, duas realidades paralelas , dois mundos, dois sistemas heterogêneos.
Na alienação mental propriamente dita se desenvolvem, de modo a formar , cada uma, uma totalidade distinta, uma personalidade, as duas maneiras de ser do espírito finito, a saber, de um lado, a consciência realizada e racional com seu mundo objetivo, e de outro, a
sensibilidade interna que é para si o seu próprio objeto. A consciência objetiva dos loucos se manifesta de vários modos. Por exemplo, os loucos sabem que estão num manicômio, eles reconhecem seus guardas sabem que seus companheiros são também loucos, brincam entre si sobre a loucura, se os emprega em todo tipo de trabalho, e às vezes se chega a transforma-los e, guardas, mas ao mesmo tempo eles sonham acordados, e estão presos a uma representação particular que não poderia compatibilizar com sua consciência objetiva. [12]
Existe portanto uma consciência “realizada e racional” com seu mundo objetivo perfeitamente organizado, e de outro lado, uma “sensibilidade interna” que é “para si seu próprio objeto”. Em outras palavras, todo louco parece compartilhar uma mesma “consciência objetiva”
com os “normais”, eles reconhecem que estão num hospício, brincam entre si sobre a loucura, reconhecem os guardas, etc. mas ao mesmo tempo eles “sonham acordados” ou seja, estão presos à uma representação particular. Portanto, convivem, lado à lado, uma consciência objetiva (aquela que os loucos compartilham com os sãos) e uma consciência particular (um estado de estar “sonhando acordado”, uma consciência onírica), fruto da
sensibilidade interna que é “para si o seu próprio objeto”.
O paradoxo dessa contradição é a simultaneidade entre essas duas consciências. Para Hegel, “as duas personalidades não constituem dois estados, mas estão as duas num só e mesmo estado, de forma que estas duas personalidades se negam uma à outra e se tocam e se contradizem uma à outra.[13] Como se vê, diz Gladis Swain em seu comentário sobre Hegel, o sujeito não está em dúvida entre sua consciência objetiva e a sensibilidade interna, ele simplesmente não consegue sair desse desdobramento no qual caiu. Ele está encerrado em sua representação insensata ao mesmo tempo em que está conectado ao universo objetivo. Ele está preso a uma idéia delirante ao mesmo tempo em que partilha como os homens sãos uma mesma consciência objetiva. O paradoxo, no limite impensável, é a da coexistência da idéia delirante dentro de um universo racional. O louco fica tão identificado à uma particularidade que à ela sucumbe mas continua conectado à uma consciência racional.
Esquirol já falava, no início do século XIX, de uma “perda da unidade do eu” na loucura. Hegel levou essa observação à sério e ao seu extremo, reconhecendo não apenas a perda da “unidade” do sujeito na loucura, mas a existência, no louco, de duas personalidades distintas, duas realidades paralelas, dois sistemas. Essas duas personalidades, existentes num mesmo sujeito, “se conhecem e se tocam”. É pela existência de dois sistemas que se tocam e se chocam que existe, na consciência do louco, o conflito interno, responsável pela contradição da loucura no resto de Razão que ainda existe. Como se vê, a consciência ameaçada constitui-se em um sistema enquanto a determinação particular também constitui, ela mesma, um sistema paralelo, uma totalidade independente. Opera-se assim uma cisão que acaba por geral duas “totalidades” a qual o próprio sujeito tem consciência: Segundo Hegel, “embora virtualmente ele seja um único sujeito, o alienado não se vê como um sujeito que está de acordo consigo mesmo, mas como um sujeito que está divido entre duas personalidades.”[14] Na loucura existem duas personalidades, dois sistemas, duas totalidades paralelas. Por conseguinte, afirma o autor, na loucura o sujeito permanece “em si mesmo sua negação”, isto é, a consciência do sujeito contém imediatamente o conteúdo de sua própria negação.
Hegel começou pensando a loucura como contradição entre uma “totalidade sistematizada” e uma “determinação particular”. Em seguida, ele focaliza a operação de uma cisão na consciência do sujeito, dando origem à duas realidades paralelas, dois sistemas, duas personalidades no
interior de um mesmo indivíduo. Essa cisão seria para Hegel a responsável pelo conflito entre o eu objetivo e a sensibilidade interna do sujeito.
Finalmente, Hegel termina sua conceituação se debruçando sobre a positividade do choque entre essas duas realidades, entre esses dois sistemas, da importância do conflito na busca da autonomia reflexiva.
Assim, o mais importante nesse conceito, sua “descoberta” em relação ao pensamento filosófico da época é pensar a positividade do conflito na loucura. Para Hegel, o louco não é uma entidade monstruosa ou mitológica, é um sujeito real, em conflito consigo mesmo. Hegel não pensou o louco como uma entidade excepcional, destituída da sua humanidade por ser louco, mas pensou-o como um ser humano e racional em confronto com sua própria desordem. Já se pode notar as implicações decisivas desse salto conceitual: a loucura do homem não tornou-o menos “racional”. O louco é também ele um sujeito dotado de Razão, mas em conflito com essa própria Razão ainda existente. Em Hegel, a loucura é concebida com um dos três estágios concebidos na busca da autonomia reflexiva do homem. Portanto, a loucura é tida como “natural”, e mais, como necessária ao homem. A loucura, dirá Hegel, é Um dos três degraus que a alma enquanto sentimento percorre em seu combate com o estado imediato de seu conteúdo substancial a fim de se elevar a essa subjetividade simples em relação consigo mesma que existe no eu, e entrar por ai em posse dela mesma e de sua consciência.




Revista Cantareira

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