AS CIDADES NA CHINA ANTIGA
André Bueno.
André Bueno.
No presente artigo estudaremos de forma introdutória o processo de formação das cidades na China antiga.
Para tal, devemos apontar para dois fatores fundamentais na compreensão da cultura chinesa: a questão do ritual e da estrutura de longa duração que envolve o desenvolvimento das formas de pensar nesta sociedade.
Em primeiro lugar, devemos conceituar de forma razoável a noção de ritual aqui aplicada(1): ela está ligada a constituição de uma série de modelos(2) sucessivos de adaptação ao ambiente, e a operacionalização e eficácia do mesmo, se comprovada, era fixada sob forma ritualística , absorvendo posteriormente os elementos místicos que lhes eram atribuídos. Daí se incorre que a prática de fixação desses modelos constituía uma necessidade de "sobrevivência", e sua reprodução transformava-se quase em lei, dada sua significação.
Devido à essa concepção do ritual, articulamos o segundo ponto de análise: a estrutura de longa duração do pensamento chinês(3). Em virtude da apreciação do domínio do território, os chineses criaram uma idéia de passado mítico, onde os antigos líderes eram filhos de deuses que ensinaram aos homens como viver. Neste ponto, muitos dos rituais são sacralizados, deixando de possuir tão somente suas características práticas para também ganharem um caráter religioso (embora nem todos os rituais fossem igualmente absorvidos pelas diversas religiões da China, e nem as mesmas os compreenderiam da mesma forma). O que importa, porém, é que se criou aí um ponto de atrito estrutural onde o modelo (ritual) construído para manter e expandir a vida começava a se chocar com as novas necessidades advindas da própria expansão possibilitada pelo modelo! Entenderemos isso observando melhor o desenvolvimento desses modelos(4) de complexo urbano criados na China antiga.
Inicialmente, tivemos a criação de comunidades rurais, cujo território era coletivamente trabalhado por duas (no máximo três) famílias de poder patriarcal (mas em menor número também matriarcais), onde a liderança era exercida por conselhos de anciãos. Posteriormente, com a agregação de novos trabalhadores vindos de outros territórios, essas famílias iniciaram uma fase de liderança, exercendo poder servil através de obrigações de trabalho em troca de habitação, comida e defesa aos estrangeiros que vinham habitar suas terras.
Na organização desta primeira comunidade, é de fundamental importância a análise do "Lugar-santo" (que podia ser um campo-santo, um ponto de culto ou até mesmo um cemitério). Esse espaço era um centro de importância comunitária, pois se acreditava que nele estava depositado um grande poder, uma fabulosa energia acumulada pela terra e pela natureza resultante das orgias, da prática dos ritos e que, por conseguinte, atraía a presença dos antepassados e dos espíritos.
O fato de que as primeiras cidades eram construídas em círculos, tais como aldeias muradas, com uma função protetora que dispensava a privacidade entre seus habitantes. Assim, o lugar dos ritos, dos mortos (5) era o único que ficava fora do restritíssimo perímetro urbano, além dos campos, claro.
É no "Lugar-santo" que os chineses jovens fogem com suas amadas e deixam cair no chão seu esperma fecundo; lá, encontram-se os antepassados quando as árvores florescem; é onde se realiza a orgia, onde se bebe, onde se deixa parte da vida pelo vinho, pois o esquecimento da bebedeira é um momento roubado da mesma. Quem detém o poder sobre o "lugar-santo" é o líder da aldeia, pois seu poder é igual ao do campo santo para os membros de sua comunidade: é ele quem observa os ritos, quem controla as leis, que lida com as áreas consagradas aos espíritos. De lá, ele retira parte do fundamento de seu poder Esse simples, porém complexo modelo, surge como o embrião das vilas chinesas, que depois seriam como "ilhas produtivas" (cf. GRANET, 1979, v.1, 1o cap.)
Nessas vilas, o trabalho é dividido, mas todos alternam-se nos serviços existentes Com a unificação de territórios no período de feudalização (6) (aproximadamente século XII A.C.) temos o desenvolvimento de atividades mercantis, que aperfeiçoam o comércio de trocas e o especializam. Porém, como conciliar essa
pequena comunidade agrária cujo modelo ritual é "abençoado" por um novo tipo de comunidade mais dinâmica e integrada?
Temos aí duas respostas: gradativamente, essa evolução veio pelo próprio poder do "campo-santo", que gerava um pequeno mercado a sua volta, e pela conquista de novas terras advindas do crescimento das comunidades em virtude do sucesso de seu modelo produtivo e da ritualização dos relacionamentos matrimoniais, através da sacralização das orgias. Esse crescimento força a expansão da comunidade, e de suas atividades produtivas. Por outro lado , temos também o aperfeiçoamento do domínio das técnicas de habitação e do controle das forças naturais, que dariam origem ao "feng shui' (arte da água e do vento)(7), cujo domínio possibilitava a escolha dos melhores locais para moradia, produção, etc. Essa técnica possuía, originalmente, um sentido prático, e não apenas os caracteres estéticos que hoje lhe são atribuídos.
Por conseguinte, temos o surgimento de um novo modelo de cidade: um lugar escolhido, que possui um campo santo, um mercado e uma guarda. O perímetro aumenta, surgindo então as grandes cidadelas ou muralhas. Neste período feudalizado, a delimitação das cidades pelas muralhas também muda, ganhando novas características: sua forma de ser construída e o perímetro que as mesmas vão cobrir passam a ser definidos pelos senhores locais. Este processo ocorre, obviamente, em decorrência do pragmatismo desses líderes: afinal, só se investiria tempo em muralhas mais fortes para cidades mais importantes. Existiam três tipos de amuradas: para as cidades sem templo, ou com templo não consagrado, havia uma muralha de barro; para as cidades com templo consagrado, uma de tijolos; e por fim, para as cidades sagradas, dos líderes ou com mais de um templo, muralhas de pedra.
A consagração de um templo está ligada a importância da cidade na região: é preciso um alto funcionário para fazê-la, Ela só existe com um grande campo santo e um grande mercado. A muralha é feita pelos súditos em regime de convocação: eles tiram alguns dias de seu trabalho para construí-la. São estimulados por guardas de bastões, recebendo comida e tendo direito de amaldiçoar a muralha e cantar.(cf. GRANET, 1979, v.2, p.91)
Neste contexto, a sacralização de alguns rituais, principalmente no tocante ao da construção das cidades, leva à algumas diferenciações antes não existentes ou
identificáveis: os nobres começam a morar no lado esquerdo, virados para o sul, a direção sagrada; os camponeses e mercadores do lado direito, virados para o norte. Estes detalhes apontam para o início do convívio entre eles, mas ao mesmo tempo da separação mais distinta de grupos dentro da sociedade chinesa.
O que se concebe, dessa forma, é o surgimento de um novo modelo de cidade adequado ao novo contexto, cujo processo de fundação deve ser identificado por suas inovadoras singularidades.
Foram identificadas três formas de surgimento de uma cidade na China antiga: o espontâneo, baseado na antiga comunidade rural, e de certa forma quase inexistente no século X AC; a escolhida, onde uma nova cidade era formada, segundo o interesse de algum senhor de terras em aglutinar trabalhadores, arrotear terras novas, conquistar território, etc, forma essa que se aperfeiçoou com a evolução do "feng shui", utilizado também para remodelar as cidades existentes. E uma terceira forma, "meng", surgida principalmente durante o período imperial, em torno do século IV AC. Esta era uma cidade para fins comerciais, surgida do interesse de mercadores em estabelecerem-se em uma região. Estes procuravam o senhor das terras, ou o governo local, e acordavam a construção de uma cidade fundamentada no mercado, e não no campo ou no "campo-santo". Possivelmente fruto do modo de pensar mascate, esse novo modelo de cidade estava de acordo com os padrões e modelos de construção, sendo a diferença sua função e origem. Esse tipo de cidade recebeu grande impulso imperial porque favorecia o domínio de rotas comercias e de novos territórios. A cidade "meng" era singular: seus mercadores pagavam a proteção do senhor local (ou de uma guarda) e uma taxa pela entrada e saída de produtos estrangeiros de seus perímetros: podiam vender o que quisessem (concessão especial da cidade "meng", já que outros tipos de perímetros urbanos sofriam restrições nesse sentido, não podendo negociar mercadorias sem autorização dos protetores locais), construíam a cidade segundo seus interesses, mas não podiam obrigar o senhor das terras ou o governo local a comprar seus produtos. Da mesma forma, esses líderes locais não podiam exigir, sob forma alguma, qualquer espécie de tributação em mercadorias dos comerciantes instalados em suas "meng", além das taxas anteriormente citadas.
Revista Gaialhia - UFRJ
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