A EXPRESSÃO EXPLÍCITA DA CONDIÇÃO
Eis, pois, uma imagem compósita da pessoa privada: um cidadão livre nascido em liberdade, opulento e cuja riqueza não é recente, negociante bem-educado e até culto, homem do ócio, mas com uma dignidade política. Como os diferentes detalhes de sua bela vestimenta, cada um de seus traços é um legado dos acasos do passado histórico greco-romano. Não era preciso que as coações impusessem esse ideal: tratava-se de uma evidência.
A arte funerária reflete essa imagem imperiosa, pois fala menos frequentemente de um além do que da condição do falecido e o diz numa linguagem compreensível a todos. De um túmulo a outro, segundo o capricho do talhador de pedra e as preferências do comprador, destaca-se esse ou aquele componente: a opulência do defunto, que faz suas contas, recebe a homenagem dos arrendatários, manda cortar o trigo com ceifadeira mecânica — recente maravilha da engenhosidade humana — ou fica em sua loja; o luxo da defunta, sentada numa poltrona de espaldar alto, onde se enfeita diante de um espelho que uma serva lhe estende e escolhe joias num cofre que outra escrava segura. Muitas vezes a imagem se reduz a uma espécie de emblema: uma sombrinha esculpida no lado de uma lápide informará aos passantes que a falecida dispunha de uma escrava para segurá-la e de ócio para dar seus passeios. Por vezes, antes da toalete, a defunta ergue devotamente a mão, em sinal de homenagem, diante de uma estatueta de Vênus, símbolo do casamento, que uma serva retirou do nicho de imagens sacras (lararium) e lhe apresenta. Sarcófagos de senadores justapõem a vida pública e a vida privada do falecido; no centro, ele dá a mão à esposa; nos lados, com a couraça de general, sentado em [pág. 148]
sua cadeira baixa e dobrável de dignitário, recebe a submissão dos chefes bárbaros que derrotou (ou poderia ter derrotado, conforme suas funções). Outros relevos funerários representam urna distribuição de moedas ou a luta de gladiadores que o notável oferecera a seus concidadãos. Os cargos senatoriais ou municipais do defunto, desiguais em dignidade, transparecem no número de "feixes" de açoites que levam os "litores", esses bedéis e carrascos que o precederam por toda parte durante seu ano de vida pública. Pois nessa sociedade sem direito penal todo dignitário importante exercia segundo a própria consciência um puro e simples direito de coerção.
A cada qual seu papel: na face esquerda — a mais honrosa — de uma lápide o marido exerce sua profissão: examina o enfermo, nu e de pé à sua frente; à direita, a esposa demonstra a virtude feminina da devoção: seguida pelas escravas, ergue a mão diante da imagem de um deus para agradecer-lhe determinado favor; um escravo levanta um cartaz em que sua senhora mandou escrever tal favor a fim de que todos os passantes conhecessem o mérito da divindade. Pois algumas tumbas, em vez de celebrar a opulência, o ócio, a dignidade ou a profissão, exaltam componentes mais delicados, como a devoção da falecida e a cultura do defunto. A dama oferece aos deuses a homenagem de um pouco de incenso num perfumador; o homem, em sua poltrona, lê um livro — quer dizer, um rolo — ou o segura enrolado, prova de que fez esses bons estudos que coroam um membro da boa sociedade.
Imagens pouco igualitárias e pouco individualistas: originalidade, orgulho, alegria, leveza e graça não são termos muito úteis para falar dos romanos. A arte funerária o sublinha pesadamente: sua sociedade não era apenas desigual de fato e desigualitária porque distinguia "ordens" (no sentido das três ordens de 1789), mas, além disso, saltavam aos olhos e aos ouvidos as diferenças entre indivíduos. Constituía demonstração de louvável "franqueza" (parrhesia) falar aos humildes com o insulto na boca, e os "amigos" dos grandes personagens — incluindo os dos Graco, dois reformadores sociais célebres da ve- [pág. 149]
lha República — eram classificados em níveis desiguais, como os cortesãos em Versalhes; um grande não saía sem cortejo; se chegava a um vilarejo que lhe concedera o título de "patrono" porque dele recebera um benefício, fazia uma solene entrada pública. "Ontem recebi para jantar gente de posição mais alta que vós", diz Trimálquio a seus convidados, com o único defeito de se expressar numa linguagem pretensiosa sendo um vulgar liberto e de convidar pessoas de nível superior ao seu. As pessoas simples são mais sensíveis à "simplicidade" que alguns poderosos sabem demonstrar. "Esse dignitário tão respeitável nos trouxe a salvação", dizia uma delas. Convinha-lhes dirigir-se com humildade aos mais poderosos. Tudo indicava o que MacMullen chama "a expressão explícita da condição".
INDIVIDUALISMO DO DIREITO
Obrigações não menos expressas, ou seja, ideias morais, somavam-se a essas evidências, fosse para impô-las melhor, fosse para tentar dourá-las (quando, por exemplo, os administrados citavam como modelo a virtude privada da "doçura" de que o governador dera provas); todo mundo julgava os outros lembrando-lhes seus deveres públicos e privados. "A tirania da opinião — e que opinião! — é tão tola nas cidadezinhas da França como nos Estados Unidos", escrevia o individualista Stendhal, pensando no puritanismo americano de sua época. O civismo pagão, pois, teria sido não menos inquisidor das vidas privadas?
E no entanto Roma, a mãe do direito pelo que se diz, deveria ser um Estado em conformidade com o direito, no qual ninguém seria obrigado a fazer o que a lei não prescreve e no qual a justiça pública substituiria o arbitrário. Ademais, o direito romano pode ser qualificado de individualista: a liberdade de divórcio é igual para os dois sexos, a propriedade pode ser livremente alienada, a liberdade do testador é muito ampla; não se impõe nenhuma crença religiosa, a cidade e cada indivíduo têm seus deuses favoritos, o braço secular deixa aos [pág. 150]
Deuses — se o podem — o cuidado de vingar as injúrias que lhes são feitas, e o respeito devido aos deuses que a cidade escolheu venerar limita-se à observância dos feriados; o direito de mudar de domicílio e de atividade econômica é incontestado. Acrescentemos que uma divertida indulgência em relação aos pecados sexuais, mesmo femininos, fora erigida em doutrina pelo próprio Senado. No entanto, também é verdadeiro, como observa Bleicken, que tacitamente esse liberalismo não faz senão "decorrer de um sentimento aristocrático da vida privada" e que Roma, não mais do que a Grécia, jamais garantiu de modo formal a liberdade em seu direito; este se considerava antes como o estabelecimento dos deveres piedosos para com as relações da casa, obrigações de fidelidade, responsabilidades patrimoniais e diferenças de legislação pessoal.
"Privado" em oposição a "público" é um dos adjetivos mais empregados da língua latina, porém não delimita positivamente a vida privada; seu sentido é negativo: qualifica o que um indivíduo pode fazer sem atentar contra seus deveres e suas atitudes de homem revestido de uma função pública; não erige um santuário no interior do direito privado, que não se sentia obrigados a respeitar o que respeitava de fato. Mera nuança formal, explicável pelos acasos históricos (nossas liberdades e direitos de homem nasceram de uma revolta contra o soberano)? Bem dúvida, porém essa ausência de garantia deixava a porta liberta a todos os perigos; semelhantes a tempestades, estes fizeram intrusões momentâneas, das quais a mais sangrenta foi a perseguição dos cristãos ou dos maniqueus.
A que se acrescentam, sob certos imperadores e por obra sua, pressões de ordem moral. Em princípio os soberanos romanos, diferentemente de seus homólogos chineses e japoneses, não tinham o que Maurice Pinguet chama de "o velho hábito confuciano de medir o poder proporcionalmente à ordem moral". Alguns, porém — Augusto, Domiciano, os Severo ou Constantino —, quiseram corrigir os costumes por meio de derreto; Augusto tomou medidas severas, ao menos na aparência, Contra o adultério da mulher; Domiciano obrigou os amantes a [pág. 151]
regularizarem sua união, mandou enterrar viva uma vestal que falhara em seu voto de castidade e proibiu aos poetas satíricos o uso de termos obscenos; os Severo fizeram do adultério do marido um delito e do aborto um crime contra o esposo e a pátria; a legislação de Constantino substitui por um rigorismo mais popular que verdadeiramente cristão o velho laxismo aristocrático… Esse moralismo era uma coisa muito particular: no mundo greco-romano, um legislador podia tentar revolucionar a sociedade por decreto; as leis nem sempre tinham a prudência de não se atrasar muito nem avançar demais com relação aos costumes. Pois a cidade era considerada não como um efeito de forças naturais de sociabilidade, mas, antes, como uma instituição nascida da lei e que se degradaria se o legislador não lhe desse sustentação contra forças naturais inimigas; o cidadão era um aluno preguiçoso que só respeita a disciplina sob a palmatória do mestre. Assim também as crises de ordem moral tinham como objetivo principal provar a todos que o imperador reinante era um senhor, pois, não contente de fazer reinar a ordem pública, que os vícios privados não ameaçavam absolutamente, pretendia governar a consciência moral de cada um; depois que cada cidadão se compenetrava de tal ideia, a lei revolucionária deixava de ser aplicada e era esquecida no reinado seguinte. Somente a de Constantino se manteria e marcaria a Idade Média.
História da vida privada, 1: do Império Romano ao ano mil / organização Paul Veyne ; tradução Hildegard Feist; consultoria editorial Jonatas Batista Neto. — São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
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