segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Que guerra é essa?

Que guerra é essa?
Cecília Coimbra

Os territórios do tráfico se estendem muito além das favelas, cruzam-se com o próprio Estado.

Este filme já assistimos inúmeras outras vezes! A afirmação de que vivemos uma situação de guerra em algumas cidades brasileiras, em especial no Rio de Janeiro, tem sido repetidamente enfatizada em muitos momentos. Isto ocorre quando, para justificar perseguições, violações e o domínio de certos grupos sobre outros, adotam-se medidas de exceção que abusiva e violentamente ferem os mais elementares direitos.


Grandiosas e eloqüentes campanhas anti-violência pregam a intervenção federal, a utilização das forças armadas, o endurecimento de penas, a guerra sem tréguas contra os crimes e os criminosos. Mas, que guerra é essa?
Alguns responderiam: a guerra contra o narcotráfico que fere também abusiva e violentamente os mais elementares direitos.
Mas, que guerra é essa? – continuaríamos perguntando – que mata, em sua grande maioria, jovens pobres, negros, do sexo masculino, de 15 a 24 anos de idade – segundo pesquisa do IBGE de 2000? Quem os mata? Alguns casos citados nos principais meios de comunicação de massa apontam para agentes do Estado: policiais militares e civis. Entretanto, nas matérias da imprensa isto não é analisado. Por que? E, quem são esses jovens mortos? Todos traficantes e/ou criminosos? Todos pertencentes ao outro “exército” que está em luta com “as forças da lei e da ordem”?

Como, efeito da afirmação desse “estado de guerra” cresce o terror, o pânico, o medo, a insegurança. Quem melhor para guerrear nesta situação? Quem dizem possuir competência, experiência, credibilidade e incorruptibilidade? As Forças Armadas, sobretudo o Exército que se notabilizou na também “guerra” contra os “terroristas” dos anos 60 e 70, em nosso país.
Em especial, seus serviços secretos de informações, alardeiam os que, naquele passado recente, aplaudiam as violências contra os que colocavam em risco a “segurança do regime”. Hoje, a “democracia” exige também medidas duras e repressivas. Contra quem, efetivamente? Em cima de quem têm recaído essas medidas, esse rigor penal?
Será por mero acaso que as manchetes dos grandes jornais vêm se referindo à situação fluminense como “subversão da ordem”, “guerra do tráfico”, “guerra do Rio”? O que se quer fortalecer com isto? Contra quem, em realidade, essa “guerra” vem sendo orquestrada?

A militarização da segurança pública vem se fortalecendo em nível planetário. Não por acaso, sua eficiência vem sendo proclamada no contexto atual de Estado mínimo, de desmoralização/corrupção dos poderes públicos, de polítcas públicas ineficazes, de sucateamento dos serviços públicos, em especial saúde e educação. A pesquisa do IBGE já citada mostra que os homicídios cresceram 130% em 20 anos no país. Justamente nesse período os serviços públicos vão sendo esvaziados pela política neoliberal que se implanta.
Não por acaso, a lógica militarista/repressiva vem sendo a grande vencedora nesses tempos. Voltam com força os que pregam penas mais duras, prisão perpétua, baixa da idade penal e até pena de morte. Instala-se o terror penal. Fortalece-se o mito de que penas mais severas seriam a resposta à violência. Entretanto, por que isto não tem ocorrido? Por que tal quadro só tem se agravado?

A adoção do modelo norte-americano de “tolerância zero”, “de limpeza policial das ruas e do aprisionamento maciço dos pobres, dos inúteis e dos insubmissos à ditadura do mercado desregulamentado só irá agravar os males de que já sofre a sociedade brasileira”, alerta o sociólogo Lois Wacquant.
Antes de, no calor dos acontecimentos e de forma impulsiva, apontarmos soluções mágicas para a questão da violência, não seria mais prudente fazermo-nos algumas perguntas? Por que não estranharmos algumas informações que nos são passadas de forma dramática e, mesmo, terrorista? Por que a “guerra contra o tráfico” deverá justificar violações, em muitas situações, até maiores do que as cometidas pelos criminosos?


Será que temos conhecimento de que os territórios do tráfico se estendem muito além das favelas? Que se cruzam com o próprio Estado, através de diferentes colaborações advindas de alguns setores das polícias, das forças armadas, dos poderes executivo, legislativo e judiciário?
Por quanto tempo continuaremos plagiando o Chefe de Polícia do filme Casablanca? Até quando repetiremos “prendam os suspeitos habituais”?

Cecília Coimbra é psicóloga, professora da Universidade Federal Fluminense, fundadora e atual vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ.

Revista PUCVIVA

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