sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

ENTRE O KIMBANDA E A QUIMBANDA: encontros e desencontros


Mario Teixeira de Sá Junior
Doutorando em História Cultural pela UFMS


Quimbanda é uma palavra da Língua Portuguesa originada do Quimbundo kimbanda, língua do tronco lingüístico Banto. Segundo Lopes (2003, p.187) significa “uma linha ritual da Umbanda” ou “sacerdote do culto de origem banta”. O termo corresponde ao nganga, da língua Quicongo. O dicionarista Aurélio (FERREIRA, 1985, p.1174) concorda, em parte, com essa definição. No entanto, para ele, o seu significado, além de indicar o sacerdote e o médico, indica também o feiticeiro. Indo além, ele a identifica com o ritual de Macumba. Essa palavra, por sua vez, em seu dicionário, vem associada à idéia de bruxaria e magia negra (FERREIRA, 1985, p.863).
Para o autor do dicionário Banto o significado de feiticeiro, na língua Quimbundo, seria outro: mujoli e na Quicongo seria ndoki. O quimbanda seria apenas o sacerdote ou o médico ritual. Em Lopes, kimbanda não aparece associada ao léxico Macumba. O autor chega a afirmar que “estranhamente, no Brasil, a quimbanda é tida como linha de prática maléfica” (LOPES, 2003, p.187). Procurando em um dicionário umbandista o significado se aproxima mais de Holanda que de Lopes. Segundo ele a quimbanda seria “a mesma coisa que magia negra” (PINTO, [1970], p.159).
Em pesquisas realizadas pelo autor (SÁ JUNIOR, 2003) em casas religiosas - terreiros - de Umbanda das cidades do Rio de Janeiro – RJ e Dourados – MS, e outras realizadas por outros intelectuais acadêmicos (BRUMANA & MARTÌNEZ, 1991; NEGRÃO, 1996) é possível constatar que no discurso dos adeptos dos terreiros a palavra quimbanda significa ora uma expressão ligada à feitiçaria ou a magia negra, ora a uma gira – seção – realizada dentro da própria Umbanda.
Essa é a visão do líder espiritual do terreiro, Tenda de Umbanda Caboclo Tupinambá, Sebastião, em Dourados - MS. Segundo ele, “trabalhar na quimbanda é fazer uma gira de exu”, o que ocorre normalmente em seu terreiro de Umbanda aproximadamente de dois e dois meses. Ele também
reconhece que a palavra sugere fazer o mal, mas que, como é comum no discurso dos adeptos da Umbanda, afirma não realizar tais práticas em seus terreiros.
Assim, a quimbanda aparece no discurso umbandista ora como prática inserida na própria Umbanda, através de uma gira de exu, ora como categoria de acusação, onde membros de um terreiro acusam a outros participantes ou terreiros de praticante da magia negra. É possível percebê-la ainda, como trabalhos realizados para diversos fins que chegam a envolver práticas do Vodu como os envultamentos (utilização de bonecos em forma humana em substituição ao corpo da pessoa que deseja atingir). Essas últimas, são práticas religiosas – trabalhos – normalmente pagos por aqueles que desejam se utilizar das prerrogativas da magia negra para obter fins materiais, espirituais ou afetivos.
A princípio pode parecer que as diversidades de informações religiosas, aqui apresentadas, sejam elementos distintos ou contraditórios; ledo engano, parafraseando Brumana e Mártinez ao se referirem ao universo umbandista, elas exprimem um “microcosmo da sociedade brasileira” e,
“não dizem pouco” sobre o mesmo (BRUMANA & MARTÌNEZ, 1991, p. 143). Elas expressam um pouco da história, dos conflitos e combinações (VIANNA, 2000), representações e apropriações (CHARTIER, 1986) das matrizes geradoras da cultura brasileira, de seus hibridismos e sua dinâmica (CANCLINI, 1998; BHABA, 1998). Mergulhar nesse universo histórico-cultural acaba por oferecer elementos maiores que o entendimento das práticas afro-brasileiras. Permite conhecer um pouco da história do Brasil.


AS ORIGENS DA FEITIÇARIA E PRÁTICAS MÁGICAS E SEU APORTE NO BRASIL


Laura de Mello e Souza afirma que “a feitiçaria abarca práticas mágicas e rituais em praticamente todas as sociedades”. No que diz respeito à sociedade ocidental é possível perceber a presença da feitiçaria nos atos da Circe de Homero, na Canídia de Horácio ou nas feiticeiras medievais.
Em comum, os exemplos citados possuem a idéia de maleficium, ou seja, “atos rituais que visam lesar pessoas ou propriedades”, realizados, normalmente através de um ato individual de um feiticeiro (SOUZA, 1988, p. 30).
Ao final da Idade Média e início da Moderna esse discurso religioso ganha substância com os manuais dos inquisores e de livros como o escrito, em 1486, pelos dominicanos Jacob Sprenger e Henrich Kramer, intitulado Malleus Meleficarum. Nesses trabalhos as idéias de feitiçaria e bruxaria vão ganhando significantes diferentes. Ainda segundo Laura “alguns especialistas enfatizam o caráter individual da feitiçaria e o caráter coletivo da bruxaria” (SOUZA, 1988, p. 32). A feiticeira seria a pessoa que invocaria as forças do mal enquanto a bruxaria seria a personificação do próprio mal [1].
Por sua vez, o universo africano, extremamente plural, também convivia e dava destaque as práticas da feitiçaria. Ao se referir à cosmogonia dos bacongos Marina de mello e Souza escreve sobre o papel de dois líderes religiosos: os itomi e o nganga. Ao primeiro cabia o papel de se relacionar diretamente com as forças naturais; ao segundo o papel de serviços privados e trabalhavam “objetos mágicos indispensáveis a execução dos mitos religiosos ...”(SOUZA, 2002, p.65). Demonstrando a complexidade do papel desses feiticeiros, essa sociedade ainda possuía um outro tipo: o ndoki; esse um feiticeiro especializado “em ajudar seus clientes e prejudicar o próximo” (SOUZA, 2002, p.66). A importância desses líderes religiosos, em diversos grupos étnicos africanos, é referendada por Alberto da Costa e Silva em seu magistral livro A manilha e o libambo (2002).
Quando o velho mundo entra em contato com os novos – África, Ásia e América – o imaginário europeu já estava repleto das imagens de bruxas e feiticeiras. O monolitismo do catolicismo europeu estava longe de se configurar em uma realidade. Apesar de tentativas, como a do Concílio de Trento (1545), a uniformidade da Igreja não chegou a ser obtida. Ainda no século XVII “duas religiões diversas coabitavam na cristandade européia: a dos teólogos e a dos crentes...”(SOUZA, 1986, p.88). Os processos do tribunal do Santo Ofício, são ricos em informações que comprovam essa heterogeneidade religiosa.
Ao aportar no Brasil, os teóricos da feitiçaria e da demonologia européia irão identificar essas práticas com os modelos religiosos indígenas e africanos. Às praticas do Xamanismo tupi, Nóbrega chamou de feitiçaria (SOUZA, 1993, p.28). As práticas mágicas também se fazem presentes.“A desordem demoníaca está presente, por exemplo, nas descrições feitas pelos jesuítas Luís de Grã e Fernão Cardim dos hábitos que envolviam a alimentação e a moradia entre os tupis do Brasil” (SOUZA, 1993, p.34). Ao lado da feitiçaria e das práticas mágicas européias e indígenas se incorporariam as de matrizes africanas. As visitações do Santo Ofício ao Brasil registram, de forma crescente, desde o final do século XVI, essas atividades. Muitos escravos serão denunciados por essas práticas.


FEITIÇARIA: ENTRE A SALVAÇÃO DO CORPO E A DANAÇÃO DA ALMA


Esse não é um mundo onde a feitiçaria e as práticas mágicas são sempre execradas. “No cotidiano da colônia, céu e inferno, sagrado e profano, práticas mágicas primitivas e européias ora se aproximavam, ora se apartavam violentamente” (Souza, 1986, p.149). Entre um extremo e outro, um universo a ser vivido e aproveitado.
Em uma correspondência do Governador do Rio de Janeiro ao Conselho Ultramarino (1725-1728), respondendo à sugestão do Rei em mandar escravos angola para a região das minas, ele coloca que além dos escravos minas serem mais fortes e robustos eles eram afeitos à feitiçaria, o que auxiliaria na descoberta de ouro. Indo além, o governador relata que não há mineiro que possa viver sem uma negra mina, dizendo que só com elas tem fortuna (LARA, 2000). Aqui, a feitiçaria é vista, sem parcimônia, como algo positivo na procura do ouro[2].
Esse tipo de postura também ocorre na metrópole portuguesa. Ao pesquisar processos inquisitoriais sobre as negras africanas, em Portugal, Pantoja percebe a ambigüidade das possibilidades de um(a) feiticeiro (a). Segundo ela Um reconhecimento público por ser bruxa, feiticeira, ou de se entender com o diabo, podia resultar em severa punição pelo Santo Oficio, até mesmo a morte”. No entanto, “algumas vezes poderia significar uma vida razoável com pagamentos do seus préstimos e um certo prestigio social (2000, p. 6).
Esse espaço, entre a salvação do corpo e a danação da alma, possuía local, dia e hora para acontecer na colônia. E não pareciam tão secretos assim.
Um documento do ANTT, apresenta uma denúncia registrada em 1760, na Vila de Itaubira, em Minas Gerais onde é possível se perceber que as reuniões de feiticeiro(a)s e eram conhecidas.


“...A negra Angela Maria Gomes, da nação Courana, forra, enfamada de ser mestre feiticeira, foi surpreendida com outras mulheres desenterrando um defunto no adro da Igreja de Nossa Senhor da Boa Viagem, e utilizando, além dos restos mortais, morcego e bode na confecção de seus feitiços, reunindo muita gente em sua casa, para os batuques que se realizavam todas as terças e sextas feiras, religiosamente”(apud MOTT, 1996, p.115)


Em uma visita ao Mato Grosso Bruno Pinna (s.d.[1785], p.16) registra uma denúncia em que João Pedroso de Almeida homem branco ouviu dizer Antonio Reinol escravo do Alferes Joaquim Jose da Gama que um seu parceiro que assiste nas Lavras do Cristal chamado Antonio mina escravo do mesmo Alferes Joaquim José é feiticeiro, e que com seus malefícios danificara a outro escravo do mesmo Alferes chamado José o qual ficou enfermo distando pela boca carvão, agulhas e outras imundices, que o irmão dele testemunha chamado Ignacio de Almeida Lobo viu deitar e que ouviu dizer que o tal feiticeiro se presava de o ser.
A denúncia, além de relatar a composição de práticas mágicas, a princípio européias, em rituais de escravos africanos, afirma que o feiticeiro “presava de o ser”.
Mott (1999, p. 2), registra em um texto seiscentista, que a palavra quimbanda é associada ao homossexualismo.
Há entre o gentio de Angola muita sodomia, tendo uns com os outros suas imundícies e sujidades, vestindo como mulheres. Eles chamam pelo nome da terra: quimbandas, os quais, no distrito ou terras onde os há, têm comunicação uns com os outros. E alguns deles são finos feiticeiros para terem tudo mau e todo o mais gentio os respeita e os não ofendem em coisa alguma.
Apesar de se obter mais um significante para a palavra quimbanda, o que, para fins desse artigo merece destaque na citação é que mesmo sendo o quimbanda um homossexual, o que era reprimido pela moral cristã, ele era respeitado por ser feiticeiro. Esse fragmento proporciona uma visão de que as perseguições realizadas pelos órgãos oficiais da Igreja não transformavam as práticas de feitiçaria em algo não aceito por parte sociedade colonial brasileira.
Não é difícil se perceber, se partirmos de um imaginário tão afeito a essas práticas, que o ser feiticeiro poderia gerar um capital, simbólico e/ou material, para os seus praticantes, conforme o demonstrado com os casos acima citados. Os praticantes da feitiçaria transformavam os seus poderes em moeda de troca, numa sociedade que se lhe mostrava tão adversa, benefícios que, por certo, seriam utilizados por outros grupos sociais, não escravos.
A tolerância por parte dos senhores de escravos e mesmo de clérigos em relação as suas manifestações culturais foi uma prática no Brasil escravista.
Antonil afirma que


Negar-lhes totalmente os seus folguedos, que são o único alívio do seu cativeiro, é querê-los desconsolados e melancólicos, de pouca vida e saúde. Portanto, não lhes estranhem os senhores o criarem seus reis, cantar e bailar por algumas horas honestamente em alguns dias do ano, e o alegrarem-se inocentemente à tarde depois de terem feito pela manhã suas festas de Nossa Senhora do Rosário, de São Benedito, e do orago da Capela do Engenho (s.d.[1711], p.161).



Benci (1977) e Pereira (1929), no século XVIII, vão além. Eles denunciam que alguns senhores de engenho não apenas toleravam os encontros religiosos, como por vezes os estimulavam. Num universo onde se aproximar ou se apartear, combinar ou divergir faz parte da mesma realidade,
negros, como os kimbandas e os ngangas, sofreram perseguições, mas também puderam utilizar seus conhecimentos religiosos visando uma melhor participação no corpo social.
Em alguns casos, mais que tolerar e encorajar alguns homens de outros segmentos sociais acabavam por participar das práticas da feitiçaria. Em uma Postura Municipal da primeira metade do século XIX, se encontra o registro de que Todo indivíduo, branco ou preto forro, que em sua casa fizer ajuntamento de pretos que dizem feitiçarias ou Bangalez, ainda mesmo que consista em sua casa desamparada por esta forma de seus senhores, incorrerá em pena de 15 dias de prisão e dez mil-réis de condenações pagos na cadeia (POSTURAS, 1831).

Em uma outra de 1845, se afirma que


Todo o que a título de curar feitiços, ou de adivinhar, se introduzir em qualquer casa, ou receber na sua algum para fazer semelhantes curas por meios supersticiosos e bebidas desconhecidas, ou para fazer adivinhar e outros embustes será multado, assim como o dono da casa (POSTURAS, 1845).
Ora, as leis, historicamente criadas para por no lugar o que está fora de ordem, nesse caso denunciam a participação de homens brancos. Elas não
se remetem especificamente aos escravos ou negros forros. O feiticeiro negro se tornava, pouco a pouco, de todas as cores.


FEITICEIRO: UM MESTIÇO DE CORPO E ALMA
O contato entre os imaginários europeu, americano e africano não se furtou em realizar trocas, ressignificações e apropriações. Em momentos específicos uma das identidades do feiticeiro poderia ser privilegiada. Um cucumbi registrado por Melo Morais Filho, na segunda metade do século XIX, teatraliza a luta entre um caboclo brasileiro e um feiticeiro negro. Nele, Mameto, o filho da rainha – provavelmente a famosa nzinga dos angolas – é morto pelo caboclo. O feiticeiro é chamado e, demonstrando o seu poder, ressuscita Mameto e vence o caboclo brasileiro (KARASCH, 2000, p. 334). Aqui a identidade apresentada é do feiticeiro africano contra o brasileiro, aqui representado na figura do caboclo[3]. Mas, a identidade do feiticeiro é cada vez mais plural, resultado de um longo diálogo cultural.
Em depoimento ao Santo Ofício a escrava Joana Pereira de Abreu relata uma experiência, que se pode dizer, sabática (apud: MOTT, 1997, p. 209).

Ela relata que era transportada misteriosamente e
[...] logo se achavam no campo do enforcado donde está já como superiora de todo o Congresso a Mestra Cecília, sentada em um banco ou tripeça. [...] O Congresso é numero de mulheres trazidas, como suponho, da mesma sorte de várias partes de terras distantes, mas eu as não conheço, não lhes sei os nomes. No Congresso há mulheres de todas as cores e castas. Também aparecem homens: mas estes, julgo não serem homens, mas demônios em figura humana. Não nos falamos mais que estas palavras que nos dizemos umas às outras: Camaradas, nós vimos os nossos amores. Depois de assim juntas nesse Congresso e cada uma com o seu, se fazem as cerimônias, as adorações e arrenegações etc., depois de a Mestra Cecília dizer em voz alta para todo o Congresso estas palavras; acabou-se a nossa Vida Nova, bem nós podemos ir embora. Logo desandava eu com as três colegas as sessenta ou setenta léguas e nos achávamos logo nas cajazeiras.(ANTT, IL, Caderno do Promotor n 121, 27/4/1758)


Esse relato muito se aproxima do descrito por Ginsburg (1991, p, 9) onde


Bruxas e feiticeiros reuniam-se à noite, geralmente em lugares solitários, no campo ou na montanha. Às vezes, chegavam voando, depois de ter untado o corpo com ungüento, montando bastões ou cabos de vassouras; em outras ocasiões, apareciam em garupas de animais ou então transformados eles próprios em bicho. [...] Seguiam-se banquetes, danças, orgias sexuais. Antes de voltar para casa, bruxas e feiticeiros recebiam ungüentos maléficos, produzidos com gordura de criança e outros ingredientes.
Sem desqualificar o papel formatador de depoimentos, realizados pelos membros dos tribunais que inquiriam os denunciados, é possível perceber um conhecimento do imaginário europeu pela escrava. Uma especificidade do seu discurso chama a atenção: a presença de mulheres de todas as cores e castas. Esse não é um depoimento isolado. A presença de vários grupos étnicos e sociais no universo das práticas mágicas é registrada em vários outros tipos de documentos e em séculos também variados.
Esses documentos permitem confirmar que essas aproximações não se dão apenas no campo étnico-social. As combinações, reinterpretações e apropriações são também realizadas no campo das religiosidades. O kimbanda de Angola, o Nganga do Congo, dentre outros feiticeiros de origem africana, compõe com matrizes da feitiçaria e práticas mágicas indígenas e européias. Desse hibridismo cultural (CANCLINI, 1998) são forjadas práticas religiosas que vão se distanciando se suas origens e produzindo novas identidades, modelos ímpares e brasileiros.
Assim, Maria Padilha, dos autos da inquisição espanhola, desembarca no Brasil e se torna rainha das giras de exu, das macumbas cariocas (MEYER, 1993). E, com ela, o nosso feiticeiro negro, Kimbanda ou Nganga, se amasia, sob as bençãos de Iara. Desse encontro, são gestados verdadeiros macunaímas, que contribuem para a formação do “povo brasileiro”; povo esse, que no dizer de Romero “é um mestiço, se não no sangue nas idéias” (ROMERO, 1949:85). Indo além, pode-se dizer que é um mestiço, no sangue, nas idéias e na alma: essa é a receita de ser brasileiro.
Respeitando as especificidades do Brasil colonial e de suas práticas mágicas, é possível percebermos a continuidade do discurso mágico no Império e na nascente República. Nina Rodrigues, o pioneiro nos estudos da religiosidade afro-brasileira, registra, em relação à sociedade baiana que

[...] todas as classes, mesmo a dita superior, estão aptas a se tornarem negras. O número de brancos, mulatos e indivíduos de todas as cores e matizes que vão consultar os negros feiticeiros nas suas aflições, nas suas desgraças, dos que crêem publicamente no poder sobrenatural dos talismãs e feitiços, dos que em muito maior número, zombam deles em público, mas ocultamente os ouvem, os consultam, esse número seria incalculável... (1935:186).
Um contemporâneo de Nina, o cronista João do Rio diz, se referindo à sociedade do Rio de Janeiro, que “é provável que muita gente não acredite nem nas bruxas, nem nos magos, mas não há ninguém cuja vida tivesse decorrido no Rio sem uma entrada nas casas sujas onde se enrosca a indolência malandra dos negros” (RIO, 1951, p. 34). Ou ainda:

Eu vi senhoras de alta posição saltando, às escondidas, de carros de praça, como nos folhetins de romances, para correr, tapando a cara com véus espessos, a essas casas; eu vi sessões em que mãos enluvadas tiravam das carteiras ricas notas e aos gritos dos negros malcriados que bradavam (RIO, 1951, p. 41).
Sobre o poder das práticas de feitiçaria na sociedade carioca, bastante comuns nas religiões de possessão, é ainda João do Rio que oferta uma pérola, ao dizer que

Vivemos na dependência do Feitiço, dessa caterva de negros e negras de babaloxás e yauô, somos nós que lhes asseguramos a existência, com o carinho de um negociante por uma amante atriz. O Feitiço é o nosso vício, o nosso gozo, a degeneração. Exige, damos-lhe; explora, deixamo-nos explorar e, seja ele maitre-chanteur, assassino, larápio, fica sempre impune e forte pela vida que lhe empresta o nosso dinheiro (RIO, 1951, p.35).
A crença no feitiço extrapola o campo da religiosidade. Se antecipando à Constituição de 1891, - que em seu Art.72, parágrafo 3 afirma que “todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum” -, o Código Penal de 1890 assim se refere sobre essas questões:
Art. 156 – Exercer a medicina em qualquer dos seus ramos e a arte dentária ou farmácia: praticar a homeopatia, a dosimetria, o hipnotismo ou o magnetismo animal, sem estar habilitado segundo as leis e regulamentos.
Art. 157 – Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar talismãs e cartomancias para despertar sentimentos de ódio e amor, inculcar cura de moléstias curáveis ou incuráveis, enfim para facilitar e subjugar a credulidade pública.
Art. 158 – Ministrar, ou simplesmente prescrever, como meio curativo para uso interno ou externo e sob qualquer forma preparada, substância de qualquer dos reinos da natureza, fazendo, ou exercendo assim, o ofício denominado de curandeiro.
Segundo Maggie, “ao serem instituídos, os artigos revelaram, da parte dos autores, temor dos malefícios e necessidade de se criar modos e instituições para o combate” (1992, p.22). As leis republicanas referendavam a existência do feitiço e dos feiticeiros, lhes reconhecendo os poderes, a tal ponto, que era preciso criar uma jurisprudência que pudesse combatê-los.


Revista Cantareira

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