quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

A modernidade republicana


Maria Tereza Chaves de Mello
Professora do Departamento de História da PUC/RJ.
E-mail: terezacmello@gmail.com

Proclamação da República é um episódio da modernização à brasileira.

Nas décadas finais do Império, o vocábulo república expandiu seu campo semântico incorporando as idéias de liberdade, progresso, ciência, democracia, termos que apontavam, todos, para um futuro desejado.

Para essa renovação da linguagem foi de especial valia a ação da propaganda – em lato senso – que estabeleceu uma relação dicotômica entre república e monarquia, montando com os dois termos um par antônimo assimétrico, recurso de grande força persuasiva, como nos ensinou R. Koselleck.1 Trata-se de um instrumento de argumentação, como esclarece o historiador alemão, que coloca em confrontação dois conceitos, sendo que um deles apresenta o outro de forma que este não se reconhece. Esse expediente retórico compôs não só a oratória da propaganda estrito senso, como freqüentou panfletos e opúsculos, se fez a espinha dorsal de obras teóricas,2 esteve estampado em artigos de jornais e ganhou, por vezes, a literatura.

Nas fontes de publicização acima elencadas, à monarquia vão se colando termos tais como: tirania, soberania de um, chefe hereditário, sagrado e inimputável, privilégio, súditos, apatia, atraso, centralização, teologia. Em contraposição, à república são associadas as idéias de liberdade, soberania popular, chefe eleito e responsável, talento ou mérito, cidadania, energia, progresso, federalismo, ciência. Enfim, de um lado, o passado; de outro, o futuro. Frente ao despotismo, a "democracia pura".3

É freqüente nos textos de época aparecer a equação: privilégio = atraso X talento = progresso. O diretor do jornal A República,4 maliciosamente, convidava seus leitores a esposar sua dúvida: "Se a monarquia é o privilégio, como pode a monarquia ter espírito de progresso".5 Na década de 1880, a equação ganhou maior contundência em função do esvaziamento de um dos trunfos da propaganda monárquica: o confronto entre a estabilidade, a paz e o progresso do Brasil com a anarquia e a barbárie das repúblicas sul-americanas. Naquele momento, diversos desses países já haviam encontrado sua forma de estabilidade institucional e, muito ao contrário, Argentina e Chile, pelo menos, se adiantavam em relação ao Império brasileiro: maior progresso material, mais ampla população educada, maior adesão às "idéias avançadas". O que nos interessa é que nada disso se passava sem o registro da imprensa. A aprovação do casamento civil no Chile, por exemplo, deu ensejo à comparação: "As pequenas repúblicas vão dando quinaus no grande império".6

Nesse quadro renovado, a paz imperial começa a ser sentida como um resultado da inércia e apatia de um povo infantilizado pelo poder pessoal centralizado. Um povo de súditos frente a repúblicas de cidadãos.

O sentimento de inadequação temporal, de atraso, vai se expressar no insistente apelo por reformas: "reforma ou revolução", alertava o Novo Partido Liberal, em 1869. Entretanto, as expectativas logo se fizeram frustrações pela lentidão das poucas medidas tomadas, pela desfiguração de propostas mais consistentes quando levadas à discussão e à decisão parlamentares. Daí que se foi generalizando a impressão de que as reformas eram impossíveis com a monarquia. A sensação era a de que o regime só se mantinha pela força porque se tornou um sistema sem projetos, um sistema que não se via no futuro. Um sentimento que se expressava claramente: "O governo sentindo-se fraco e confessando haver perdido a força moral (...) quer governar pelo terror".7

Para avaliarmos a operatividade do conceito de república, destacadamente na última década do Império, vamos buscar surpreender sua penetração social. Para tanto, o que cabe avaliar é a extensão da difusão de uma nova cultura que, desde os anos 1870,8 vinha varrendo a visão de mundo da direção9 imperial.

Desejo de futuro

Em consonância com marcadas alterações sócio-econômicas, novas idéias penetraram intensamente a sociedade brasileira letrada – e talvez não só nela – a partir da década de 1870. A mais profunda mudança por elas produzida foi a de dar um conteúdo histórico à já difundida e assimilada noção de progresso, noção que, agora, extravasava o campo dos avanços materiais que, entretanto, tanto maravilhavam os contemporâneos, orgulhosos do seu tempo. Valendo-nos de códigos visuais da época, alcançar o progresso exigia o embarque no trem da evolução rumo à estação "civilização". Um lugar pré-figurado de paisagem definida. Dito em outra escala: uma teleologia que dava direção e sentido ao tempo linear ascendente. A novidade de uma idéia de tempo que tem significado e é significante.

Essa mentalidade historicista ganhou as mentes e os corações, os republicanos e os monarquistas – pelos menos, nas grandes cidades – e tornou-se um dado inescapável de qualquer percepção do mundo e do Brasil dentro dele. É ela que está, necessariamente, informando os debates daquela conjuntura, reformando o léxico e, principalmente, a semântica da linguagem política e social. Ela se revela nas falas, nos textos e até nas imagens produzidas pelas revistas ilustradas.

As "novas idéias", todas materialistas, conjugaram ao positivismo, já posto na cidade letrada, o evolucionismo de Spencer, que era uma instrumentalização das teorias de Darwin para interpretar as sociedades humanas. O que cabe destacar é que elas foram capazes de renovar profundamente a mentalidade. Em primeiro lugar, porque mexeram com a idéia de tempo, e depois, porque instauraram um verdadeiro culto à ciência, que passou a ser o selo exclusivo de garantia de legitimidade na explicação sobre qualquer fenômeno, natural ou social.

Entre nós, aquelas filosofias não foram, propriamente, objeto de debates teóricos ou de adesões ortodoxas. Poucos abraçaram integralmente uma ou outra. Ironicamente, Renato Lessa distingue uma "versão tupi-positivista".10 Bem ou mal assimiladas, o que destacamos, entretanto, é que elas serviram de arsenal de onde foram retiradas as munições para pensar as "questões"11 brasileiras, para participar intensamente dos debates por reformas e, até mesmo, para discutir o conteúdo da identidade nacional. Estamos diante de uma geração profundamente engajada na vida do país e interessada em decifrá-lo com vista ao seu encaminhamento na senda do progresso e da civilização, no caminho do futuro. Fora dessa estrada, só havia obsolescência e ignorância.

A força de convencimento da nova cultura foi tal que a ela aderiram tanto republicanos como monarquistas, tanto liberais como conservadores, desde que fossem iniciados nos códigos dessa linguagem, que emprestava competência e verdade aos que dele se valiam. O emprego desse discurso por monarquistas foi um poderoso instrumento de desqualificação do sistema, evidenciando a falência da antiga rede simbólica para dar conta da realidade.

A década de 1880 se distinguiu por uma grande atividade da inteligência: os jornais "independentes"12 se multiplicaram em função de um público ampliado, a produção teórica em livros e panfletos foi intensa, as conferências – que, explícita ou inadvertidamente, divulgavam as novas idéias – atraíam um público muito interessado, as campanhas, a abolicionista e a republicana, enchiam, entusiasticamente, as ruas e os auditórios públicos.

Tanto Comte quanto Spencer entendiam o desenrolar da história humana como uma sucessão escalonada de superações, pelas quais a religião e a monarquia eram valores de um passado caduco. Todas as sociedades caminhavam inexoravelmente para o advento de um mundo guiado pela ciência e pela democracia. Nessa cultura científica e democrática o regime republicano era uma necessária culminância política.

A nova cultura chegou a um público mais amplo através da imprensa, das conferências públicas e da literatura; foi visualizada nas imagens das revistas ilustradas e nos préstitos carnavalescos; ganhou o auditório das ruas e dos cafés. Por esses canais se foi operando o desmonte da cultura imperial. No artigo intitulado "Páginas Cor de Rosa", saído após a Proclamação da República, explicou assim a Revista Ilustrada a vitória republicana: "Obscuramente, todos nós tínhamos, dia a dia, lavrado o seio fecundo da terra da América, com o arado do pensamento (...)".13 Foi esse o sentido da resposta do deputado republicano Saldanha Marinho para aquietar a platéia que se assustara com o emprego em seu discurso do termo "revolução": "Não se trata da revolução da espingarda (risos); antes dela virá a revolução das idéias".14

O solo monárquico foi sendo esterilizado pela ação daquele arado que se esforçou em arrancar dele as sementes que o fecundavam: a religião e o romantismo. Os homens da "Geração 70" se declaravam "livres pensadores", com raras exceções. A expressão significava a não-submissão mental à Igreja e às suas interpretações, tidas como resultado da ignorância. A adesão aos seus princípios era qualificada de "fanatismo" ou de "velho preconceito". Em resposta às suas "ficções", a razão havia dado a conhecer aos homens a sua verdadeira origem animal, sem fantasias ou explicações metafísicas. Francisco Cunha resume o sentimento generalizado daquela "geração": "O catolicismo sustenta um páreo impossível com a civilização".15 É o que Teófilo Dias pôs em versos:

A força, que ao porvir o Grande-Ser conduz,

A implacável ciência, a eterna deicida,

Vertendo nova seiva à árvore da vida,

Arrancou-lhe a raiz de onde surgiste, oh cruz!

(...)

– Já não existe um Deus (...).16


As "novas idéias" chegaram ao público encarnadas nas "questões", nas polêmicas e na literatura que, na década de 1880, ampliou seu público e ganhou mais espaço, adentrando os jornais. Foi uma robusta e variada produção que acompanhou o veio de engajamento da sua geração. Nesse sentido, a chamada "poesia social" foi o seu exemplo mais acabado. Valentim Magalhães, ativo animador cultural do final do século XIX, qualificou-a de "cívica, revolucionária, ou combatente".17 Poetas de grande prestígio naquele momento, tais como Raimundo Correia, Teófilo Dias, Lúcio de Mendonça, Luiz Delfino e outros usaram o timbre hugoano (de Vitor Hugo) para, sob o influxo do cientificismo, se jogarem contra a religião e o regime monárquico. A virulência do ataque é um demonstrativo da paixão que os animava. Deram-se eles a missão de desconstruir o mundo obsoleto em que viviam para serem os apóstolos do futuro. Vejamos esse trecho de Raimundo Correia:

Enquanto do Futuro o archote incendiário

Não vem incinerar os báculos e os cetros;

E repelir não vem o lôbrego cenário

Trono e Igreja – estes dois pavorosos espectros (...)18

Nessa empreitada, tiveram os bardos a colaboração, não menos entusiasta, de setores da imprensa, com marcada atuação da Revista Ilustrada. A luta pela secularização completa do Estado e da sociedade brasileiras foi a primeira de suas campanhas, prestigiando todos aqueles que por ela se batiam, como foi o caso do mais ardoroso dos seus apóstolos, o deputado republicano Saldanha Marinho.19 A Revista valia-se ora da ironia mordaz: "nem creio na mácula universal, só porque D. Eva se deixou tentar pela serpente. (...) condenados a cozinhar como um pato no grande forno das chamas eternas";20 ora da virulência:

Eu não farei comentário sobre o ensino religioso que prega a mentira e a superstição; mas acho ridículo essa referenda do governo à propaganda religiosa.

Certamente os jesuítas estão no seu papel; e se os pais de família querem educar suas filhas no histerismo religioso (...).21

Mas, certamente de impacto mais generalizado, teriam sido as suas imagens do clero: os padres eram retratados em suas páginas ilustradas com orelhas de burro ou como horrendos morcegos. Muitas vezes eram flagrados em olhares lúbricos para as índias.

O teatro teve grande popularidade durante o Império. No final da década de 1870, embaladas pelas "Questões Religiosas", peças anticlericais atraíram extenso público; e não só na Corte. No ano de 1875, repetindo aqui o grande sucesso que já fizera na Europa, subiu à cena fluminense o drama Apóstolos do Mal, um frontal ataque à Companhia de Jesus. Também houve platéia para Ganganelli, terror dos jesuítas. Entretanto, o Conservatório Dramático Brasileiro censurou Os Lazaristas, de autor português, como indecente e muito anticlerical. Em desafio, a Gazeta de Notícias publicou o drama em forma de folhetim.

O empenho na conversão da sociedade às novas idéias deu ensejo à excrescência de uma poesia científica, na qual Martins Junior foi seu maior expoente. Sua principal obra, significativamente intitulada Visões de Hoje – que, fora dos padrões da época, teve reedições – é um poema narrativo que metrifica a epopéia da vitória da ciência e da razão na evolução humana. A sua finalidade didática é evidente:

Também o mar da História está sujeito às leis

Imutáveis, fatais, que a natureza fez

Desde a elaboração do Cosmo, do universo,

Quando o poema da vida apenas tinha um verso.22


Na peleja pela introdução do mundo novo entre nós atiraram-se os "mosqueteiros" contra os valores basilares da cultura monárquica. Já ficou aqui alguma notícia sobre o anticlericalismo e o ateísmo dos seus textos. A título de observação, vale notificar o emprego da maiúscula para grafar as palavras "futuro" e "história" nos poemas citados. Um dos braços desse combate foi a campanha literária contra o romantismo, pejado de artificialismo, pieguice, excessivo sentimentalismo e idealização. Contra essa literatura de falsificações – nelas incluído o indianismo – proclamou-se a superioridade do retrato fiel da sociedade e dos homens, dos seus costumes e vivências, descritos com verdade e imparcialidade. Nessas recomendações, logo se vê, vibrava a corda do cientificismo. As vinculações entre o romantismo e a visão de mundo difundida pelos dirigentes da monarquia era muito clara para a "Geração 70". Vejamos esse comentário de um dos seus mais destacados membros, Clóvis Bevilacqua:

(...) representou [o romantismo], no campo da imaginação, o que a monarquia constitucional representou na política ou, com mais propriedade, o que representa a metafísica na ordem filosófica, – uma fase transitória, exercendo sobre os espíritos uma ação negativa indispensável para o aplainamento do terreno.23

O que é certo é que a literatura ampliou seu público – antes adstrito ao universo feminino letrado –, renovou o gosto e adquiriu prestígio social. É o que avaliou Lúcia Miguel-Pereira: "Patenteadas as suas raízes filosóficas e sociológicas, a literatura ganhou o respeito dos outros e a consciência do seu valor. E não só isso, como também a maior repercussão do que escreviam os escritores".24

Essa estética da verdade encontrou seu veículo privilegiado na prosa naturalista, corrente literária que foi recebida com entusiasmo entre nós. Aluísio Azevedo, seu maior nome, foi o primeiro escritor brasileiro a viver do seu ofício. Esse foi o ambiente intelectual de Machado de Assis: "O seu universo é, em última análise, constituído de acordo com o pensamento científico do século XIX".25

Como significativa marca de uma sensação contemporânea, não podemos deixar de registrar que José Veríssimo, destacado crítico literário da época, cunhou para toda essa produção literária e a sua ambiência cultural o termo "modernismo".26

Difusão da nova cultura

Nas ruas e praças da cidade do Rio de Janeiro realizaram-se os grandes e pequenos meetings da década de 1880. Nelas se desencadearam as grandes campanhas da Abolição e a da República, numa renovada forma de se fazer política, que lembrava aos mais velhos os anos da Regência, pelo o que se cunhou a expressão "reviver liberal".

A difusão da nova cultura ficou por conta da centralidade da Corte na vida do país. E a vida da Corte pulsava na apertada rua do Ouvidor (e redondezas), onde se concentravam as redações dos jornais, as editoras, as livrarias, os grandes magazines, o comércio e mais os cafés27 e confeitarias, os hotéis e os teatros. Ao mesmo tempo mundana e intelectual, a rua do Ouvidor era o palco dos grandes acontecimentos nacionais e a passarela da sociedade fluminense, a "grande artéria da civilização do Brasil".28

Graças a sua estreiteza – quase um "beco" para decepção dos forasteiros –, os personagens da vida política, social, artística e intelectual eram reconhecidos pelas pessoas que a freqüentavam. Essa rua dava visibilidade às modas e aos que buscavam notoriedade. Tornava nacionais os acontecimentos – e até os incidentes – que nela ocorriam e era nela que eles quase que necessariamente ocorriam. Discussões, debates, artigos de jornal, opiniões, poemas ou mesmo fofocas e boatos eram ouvidos sem que fosse necessária a indiscrição. Para Coelho Neto, aquela rua é um personagem: "Sabe tudo – é repórter, é lanceuse, é corretora, é crítica, é revolucionaria. Espalha a notícia, impõe o gosto, eleva o câmbio consagra o poeta, depõe os governos, decide as questões à palavra ou a murro, à tapona ou a tiro".29

Ir diariamente à rua do Ouvidor passou a fazer parte do dia-a-dia de muitos habitantes do Rio de Janeiro. A "Crônica do Chic" da Revista Ilustrada diz, jocosamente, que era preciso pagar um "tributo de solas" à rua e que "o hábito inveterou-se de tal forma, que se um dia deixarmos de lá passar, falta-nos alguma coisa, como a um crente que se esqueceu de fazer o sinal da cruz (...)".30 Explicou com clareza Sílvio Romero: "O Brasil é o Rio de Janeiro, dizem os insensatos, incapazes de compreender o espírito de uma nação, e que o enclausuram nas vitrines da Rua do Ouvidor".31

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http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-77042009000100002&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

Revista Tempo

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