por Ignácio de Loyola Brandão
Arquivo Última Hora/AESP
Em janeiro de 1962, famílias separadas pela barreira ainda podiam manter contato visual em ocasiões especiais, como o casamento
Quando, em março de 1982, o avião sobrevoou Berlim, preparando-se para aterrissar, eu, o olho pregado na janela, procurei “o muro”. Encontrei uma linha cinza que serpenteava pela cidade. Mais tarde descobri um dos apelidos do muro: serpente petrificada.
Desembarquei, me esperavam, queriam que eu fosse ao Möhrig, uma das tradicionais conditoreien(confeitarias) berlinenses, com seus bolos cremosos. Desapontei, dizendo: "Não! Quero ver o muro". Não continha minha ansiedade. Como seria? Uma muralha como a da China, alta, pesadona, intransponível, monumental?
Quando cheguei a Bernauerstrasse, a avenida ao longo da qual a barreira separando leste e oeste foi erguida, tive uma decepção. O muro tinha uns dois metros e meio de altura, parecia inocente, apenas uma parede plantada no meio da rua. Então era aquilo? O muro que causava a famosa síndrome que acometia todo berlinense e o obrigava a deixar a cidade de tempos em tempos?
No fim de minha estada, eu também sentia a síndrome. Tinha me acostumado, ainda que fosse difícil, a andar, andar e dar com ele. Para qualquer lado, lá estava a parede cinza de concreto. A sensação de ser prisioneiro logo me ocupou. Em Berlim Ocidental, diziam, havia a liberdade, só que encerrada dentro de uma parede de módulos de concreto com 155 km de extensão.
Uma vez, acompanhando alunos do Instituto Ibero Americano, que estudavam com o professor Berthold Zilly, fiz um estranho périplo. Durante dias, seguimos a pé, ao longo do muro. Quando chegava a noite, comíamos e íamos dormir.Retornávamos no dia seguinte, seguíamos do mesmo ponto. Desisti na altura dos 50 km, a meninada prosseguiu.
O muro cortava o quintal das casas, dividia calçadas, atravessava cemitérios, violava túmulos. Em algumas ruas, sobravam aos moradores 40 cm de calçada para chegar em casa. A parede criou "o lado de cá" e o "lado de lá". De cá, o Ocidente. De lá, o Oriente. Todavia, descobri que do outro lado se dizia também: o lado de cá e o lado de lá. O mundo depende da perspectiva.
Então, o muro caiu. Eu não estava na cidade. Quem estava era o escritor Rubem Fonseca. No dia seguinte, Rubem e Ute Hermanns, tradutora e ensaísta, andavam pelas proximidades. Um repórter da TV Manchete ouviu-os falando português e os entrevistou. Rubem, um gozador, deu um nome qualquer, não me lembro qual. Digamos José da Silva. Somente no Rio de Janeiro, na redação,
reconheceram o Rubem, que é famoso por não dar entrevista. Não como Rubem, sim como José.
Quando voltei a Berlim após a queda, tive sensações estranhas na altura de Steinstücken, o esquisito bairro de mansões antes cercado pelo muro, como se contido em uma gota. Naquela tarde, pessoas faziam cooper, outras andavam de bicicleta, velhotas caminhavam fazendo crochê. Naturalmente, como se nada tivesse se passado ali durante 28 anos. No entanto, as torres de vigia ainda estavam de pé. Ali de onde os guardas vigiavam e atiravam para matar. A perplexidade continuava.
Ignácio de Loyola Brandão é escritor e jornalista. Autor de Zero (Brasília-Rio), Não verás país nenhum (Codecri) e O verde violentou o muro (Global), já recebeu vários prêmios por sua obra, entre os quais o Jabuti e o Pedro Nava (Academia Brasileira de Letras)
Revista História Viva
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