segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

CAPITALISMO CRIMINALIZADO


CAPITALISMO CRIMINALIZADO

León Pomer
professor do departamento de história da faculdade de ciências socias da puc-sp


Como julgar uma sociedade, ou, se for preferível, uma forma de relações entre seres humanos? Pode-se fazê-lo a partir de muitos ângulos, mas há um infalível: o tipo de condutas geradas e os valores, ou anti-valores, que lhes são subjacentes. No presente artigo, tratamos de condutas que, sejamos justos, não incluem todos, mas que se apossaram de muitos habitantes deste sistema capitalista hoje planetário.
O capitalismo criminali- zado se move em diferentes espaços, âmbitos e dimensões. Prospera em empresas legalmente constituídas que atuam, presume-se, integralmente à luz do dia, mas que não se privam de burlar as leis que juram acatar; é o capitalismo “respeitável”, que, com certa freqüência, nos avisa dos seus negócios escusos, da lavagem de dinheiro e da assimilação de capitais cuja origem não resistiria a uma investigação séria. Temos o outro capitalismo, o que atua, hoje, no gigantesco âmbito da mais absoluta ilegalidade, já que não é inteiramente clandestino, pois lava, anualmente, segundo dados fornecidos pela ONU para 2002, a “insignificante” quantidade de 750 bilhões de dólares provenientes de atividades criminais, fuga de capitais, evasão de impostos e vários etcéteras com o mesmo nível de pureza e santidade. A lavagem, só a lavagem, indica ainda a ONU, dá comissões e honorários de modestos 150 milhões de dólares anuais para bancos, intermediários financeiros, empresas de fachada, diretivos de trusts e sociedades fiduciárias em paraísos fiscais. Logo veremos que, somando outras atividades, as comissões se elevam a cifras estratosféricas.
As gigantescas fraudes da Enron e da World Com norte-americana, verdadeiros estrondos catastróficos ocorridos no fim de 2001, no então plácido paraíso da bolsa, das finanças e dos negócios, foram cronologicamente precedidas pelo mais formidável escândalo financeiro ocorrido na França, que se deu quando diretores e executivos da então estatal ELF (hoje privatizada), gigante do petróleo, foram descobertos como ladrões em altíssima escala.
Em 2002, se soube, na Espanha, da mais obscura manipulação de dinheiro realizada pelo popular Banco Bilbao Vizcaya Argentaria (com forte presença no Brasil), que utilizava paraísos fiscais; esta manipulação incluía a constituição, nos Estados Unidos, de suculentos fundos de pensão para benefício clandestino de vinte e dois conselheiros do banco. A última novidade (e continuamos no âmbito das empresas legais) vem, uma vez mais, dos Estados Unidos, onde o setor de fundos de investimentos (7 trilhões de dólares são poupados por 95 milhões de pessoas) se revelou como um eficiente espaço de fraudes gigantescas, em detrimento dos honestos entusiastas do “american way of life”, os quais depositaram suas economias com a louvável intenção de obter algum rendimento sem o habitual esforço físico, ou seja, sem trabalhar.
As atividades de ilegalidade absoluta, por sua vez, estão vinculadas com o capitalismo “respeitável” por infinitos laços, como, por exemplo, por meio das empresas legais que são usadas como fachada. Neste âmbito, mencionaremos as fraudes com medicamentos, negócio que move cerca de 32 bilhões de dólares anuais, e cujas conseqüências são a morte dos desgraçados que procuram remédio para seus males, ignorando ser uma mentira o que estão consumindo. Só na África, morrem, anualmente, 200 mil pessoas que se tratam de malária com produtos farmacêuticos falsificados e portanto inócuos. É óbvio que, para fabricar tamanha quantidade de remédios e comercializá-los por todo o mundo, é necessário um grande complexo industrial e comercial que não tem nenhuma possibilidade de ser invisível ou de se ocultar atrás de um biombo.
Há, no nosso pequeno e maltratado planeta, por volta de 50 paraísos fiscais, dentre os quais as ilhas Cayman, as quais são o quinto centro bancário mais importante do sistema financeiro internacional. Esses paraísos são o refúgio seguro de todas as máfias e governos mafiosos que existem ou existiram. Lembremo-nos do clã Suharto na Indonésia, o matrimônio Marcos nas Filipinas, o duo Fujimori-Montesinos no Peru, o governo Menem na Argentina e as duradouras ditaduras com as quais nós tivemos que nos acostumar em nossa dolorida América Latina: na República Domini- cana, Trujillo foi um representante conspícuo dessa linhagem mafiosa. Agregue-se que, em determinados países, existem zonas “liberadas”, aparentemente fora do controle estatal, para o exercício do narcotráfico e da produção de entorpecentes. Na Tailândia, existe o chamado Triângulo de Ouro, nome sugestivo e muito apropriado; algo parecido ocorre na Colômbia, e também no vale de Békaa, Líbano, ocupado pelo exército sírio e grande produtor de papoula. Temos, pois, máfias no governo e máfias com poderosas conexões em diversas esferas e níveis governamentais. E algo mais: o dinheiro mafioso irriga a economia legal e é lavado por meio dela. A industria têxtil de Bangkok (capital de Tailândia) recebeu vários bilhões de dólares provenientes da heroína comercializada a partir do Triângulo de Ouro. A poderosíssima indústria cinematográfica de Hong Kong obteve diversos fundos do capitalismo criminalizado. Na Itália, ocorreu algo talvez menos curioso do que poderia parecer. Franco Berardi informa que as estatísticas italianas sobre pobreza urbana situavam Palermo, capital da Sicília, como a sétima cidade mais pobre do país1 . Porém, observada de perto por funcionários do governo federal, Palermo gozava de luxo: vendia-se grande quantidades de automóveis de grande porte e de preço ainda maior, e o desemprego não era tal qual o que era anunciado: 400 mil pessoas viviam direta e indiretamente da máfia. Agreguemos que a imagem da máfia siciliana que Coppola transmite ao público em seus magníficos filmes já não corresponde à realidade; os capos e seus subordinados operam empresas de grandes dimensões. No Japão, durante o boom especulativo dos anos 80, os altos dignitários da Yakuza (máfia japonesa) “contribuíram para o desenvolvimento urbano” investindo maciçamente em construções, o que também fizeram seus colegas italianos em seu país natal, além de investir maciçamente na compra de terras agrícolas.
As Nações Unidas se ocuparam da economia criminal2 . No informe produzido, consta o seguinte: “a entrada das organizações criminosas foi facilitada pelos programas de ajuste estrutural que os países endividados foram obrigados a adotar como forma de ter acesso aos empréstimos do Fundo Monetário Internacional”. Em outras palavras: os programas de liberação da economia, a onda de privatizações das empresas estatais, o brutal castigo inferido à saúde pública, à educação e outros serviços essenciais foram a oportunidade para os grandes escândalos. Uma vez mais: o governo Menem na Argentina foi um exemplo acabado e o resultado foi o colapso da economia e o empobrecimento de mais de 50% dos habitantes. A mesma fonte das Nações Unidas estimava que as cifras geradas, em nível mundial, das organizações criminosas transnacionais eram da ordem de um trilhão de dólares anuais. Para explicitar o que esta cifra significa, as Nações Unidas demonstraram que ela era equivalente ao Produto Nacional Bruto combinado dos países com “receita debilitada” (categorização do Banco Mundial), nos quais vivem três bilhões de habitantes — a metade da população mundial.
O investigador canadense Michel Chossudovsky3 ressalta que a colaboração entre a máfia japonesa, as européias e a americana, às quais se havia agregado, com notável ímpeto, a máfia russa (desenvolvida sob o poder soviético), gerava um lucro superior ao das quinhentas empresas mais importantes do mundo, de acordo com a classificação realizada anualmente pela revista Fortune. Apenas no México, entre 1992 e 1993, segundo declarou o general Basilio Trueba, os narcotraficantes obtiveram uma renda de 26 a 28 bilhões de dólares, números comparáveis às exportações mexicanas legalmente registradas daqueles anos. Diga-se de passagem que o mercado norte-americano de drogas, cliente preferencial dos provedores mexicanos, pagava, em 1995, a soma de 48 bilhões de dólares pela cocaína e heroína consumidas (O Estado de S. Paulo,12-05-1998).
Já mencionamos a economia criminalizada da Rússia; transcrevemos agora informações publicadas pelo diário “Kommerzant” de Moscou (reproduzidas em Courrier International, nº20. Paris, 1994). Em 1994, por volta de mil e trezentas organizações criminais, cujas raízes devem ser procuradas na ex-União Soviética, controlavam 48 mil empresas comerciais, mil e quinhentos estabelecimentos públicos e oitocentos bancos. Esse capitalismo, não tão clandestino nem tão oculto, dominava cerca de 40% da economia da Federação Russa, incluindo a metade do mercado imobiliário de Moscou. Por assim dizer, quase a metade das construções moscovitas estava em sua posse – as melhores, obviamente, eram dos mafiosos.
O capitalismo crimina- lizado conseguiu subordinar uma massa importante de produtores rurais e trabalhadores urbanos, e brindou-os com uma alternativa de vida que a economia legal lhes nega. Os “cocaleros” da Bolívia são um exemplo. Na Ucrânia, o cultivo de ópio substitui o de trigo; na Iugoslávia, a “Santa Corona Unità” fez sua aparição; trata-se de um braço da máfia italiana, que encheu o país de laboratórios para fabricar heroína. O citado trabalho de Chossudovsky fala dos milhares de camponeses marroquinos que produzem heroína, com o seguinte detalhe: a exportação clandestina — ou melhor, não legal — deste produto superava o montante das exportações agrícolas legais do Marrocos. E um dado sobre os Estados Unidos: a cadeia mundial de TV Cable News Network4 colocou o país como um importantíssimo produtor de maconha. A colheita de 1995 do tão apreciado cânhamo foi estimada em 32 bilhões de dólares, obtidos com a participação de um milhão de cultivadores, que plantavam a erva geralmente em jardins e hortas domésticas. Os norte-americanos, sempre em dia com as inovações tecno-científicas, utilizaram, em muitos casos, a engenharia genética para aumentar a produtividade e melhorar o rendimento. Maconha de primeiro mundo.
Mencionamos acima as comissões e outros benefícios que o capitalismo crimina- lizado paga a seus colaboradores, entre os quais se encontram os grandes bancos internacionais. Num passado não muito distante, uma comissão padrão oscilava em torno de 3%. Mas a Transparency International informa que o tráfico de armas paga cerca de 15%, e que o conjunto de comissões oscila anualmente em torno de 4 bilhões e quinhentos milhões de dólares. O senhor Bernard Challe, procurador geral e chefe do serviço central de prevenção contra corrupção da França, alertou que as comissões, além de elevarem os preços, inclusive os dos produtos gerados legalmente, também, como conseqüência, provocavam inflação. Entre os mais ilustres beneficiários destes fabulosos negócios em 1995, figurou um cavalheiro chamado Willi Claes. Ele era o secretario geral da OTAN. No entanto, houve alguém de cargo mais importante nesse esquema do que este simples burocrata internacional. Nos referimos ao marido da anterior rainha da Holanda, príncipe Bernardo, que sempre demonstrou um notável interesse pelo bom andamento dos negócios da Philips, transnacional holandesa cujo nome é sinônimo de lâmpadas. Em seu momento, o Príncipe protagonizou um peque no escândalo que deve ter amargado a existência de sua esposa, que era apenas uma inocente rainha.
Quando um sistema de relações humanas que coloca o interesse pessoal acima de qualquer outra consideração gera máfias e corrupção de tamanho apocalíptico, é conveniente pensar que o problema está na entranha do próprio sistema. E que o problema não é de agora, ainda que agora tenha o tamanho da economia capitalista. Sem ânimo de fazer história, a história do capitalismo é também a história de fraudes gigantescas, mentiras colossais e armadilhas armadas contra a boa fé dos incautos que sempre existiram e ainda existem.

Notas
1 Franco “Berardi, Une Politique de l’Imagination”. Chimères, nº 23. Paris: 1994.
2 La Globalización del Crimen. N.York: 1995.
3 Michel Chossudovsky , “La Corruption Mundialisée”, Manière de Voir, nº 33. Paris: 1997.
4 v. a reportagem publicada no jornal Página 12. Buenos Aires, 18-02-1996.

Revista PUCVIVA

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