segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

A crise da cultura


A crise da cultura
por Pierre Fougeyrollas

Compreendemos, aqui, como cultura não somente as atividades superiores do espírito humano, mas também as maneiras de viver, isto é, de sentir, de agir e de pensar, próprias a uma sociedade determinada. A cultura aparece, pois, como a participação dos indivíduos na sociedade a que pertencem. E toda cultura funciona sob a influência de valores, ou seja, de princípios e de normas que asseguram esta participação e, conseqüentemente, a coesão do corpo social. A partir daí, pode-se compreender que as culturas das diferentes sociedades conheceram grandes e numerosas transformações ao longo da história.
Mais precisamente, os historiadores, os sociólogos e os antropólogos opuseram seguidamente as culturas modernas, nascidas das profundas transformações iniciadas na Europa nos séculos XV e XVI, às culturas tradicionais, de origem remota. Nesta perspectiva, a passagem da cultura tradicional à cultura moderna constituiria uma "norma" que deveria se impor, cedo ou tarde, a todas as sociedades humanas.
Era o que pensavam Auguste Comte, Herbert Spencer e Émile Durkheim, quando manifestavam sua confiança nos progressos das ciências e das técnicas e nos efeitos supostamente benéficos desse progresso para um número crescente de seres humanos. No entanto, em 1929, Freud demonstrava sua inquietude em relação a essas esperanças em um livro intitulado Das Unbehagen in der Kultur (Mal-estar na civilização).
Entre as catástrofes das duas Guerras Mundiais, o fundador da psicanálise questionava, assim, a confiança humanista no processo histórico da modernização. Antes dele, Tönnies distinguira duas formas fundamentais da vida coletiva dos indivíduos: a comunidade, marcada pela participação quase biológica dos indivíduos em sua família, em sua aldeia e em sua etnia, e a sociedade, caracterizada pelo isolamento dos indivíduos uns em relação aos outros e pela sua dependência para com as instituições, sobretudo urbanas, e para com o Estado. Censurava assim a modernidade societária, estatal e abstrata em nome da tradição comunitária, vitral e concreta.
Atualmente, não acreditamos, ao contrário de Tönnies, que seja possível retornar às comunidades que existiam antes da irrupção do processo avassalador da modernização. Mas nos recusamos à idealização desse processo. Isto significa que temos consciência do estado de crise em que se encontra doravante a cultura moderna, tanto nos países que a viram nascer como naqueles que a importaram e para os quais ela foi exportada.
Quando Freud, na esteira de Nietzsche, diagnosticava o declínio da cultura herdada do helenismo clássico, do cristianismo e do iluminismo, constatava somente que a cultura tradicional – baseada na existência de uma harmonia entre o corpo social e o mundo circundante, bem como na valorização da imutabilidade e da conformidade dos comportamentos das novas gerações aos modelos fornecidos pelos velhos e mesmo pelos ancestrais – fora destruída, no Ocidente, pela modernização que pretende substituir o reino da tradição pelo da razão, inspiradora e animadora das ciências e das técnicas.



Agora, sabemos que essas ciências e essas técnicas, que subjugaram o meioambiente natural de nossa espécie, podem destruí-lo e até já começaram a fazê-lo. Neste aspecto, a crise da cultura, enquanto crise da modernidade, exprime o fato essencial de que a humanidade ainda não é senhora dos instrumentos que inventou e colocou em ação para dominar a matéria, a vida, enfim, a natureza. Fundamentalmente, é nossa opinião pessoal que aquilo que começou nos séculos XV e XVI está agora, sob nossos próprios olhos, chegando a seu fim através de um processo no qual descobertas científicas e fabulosas invenções técnicas misturam-se com assustadoras convulsões políticas e sociais. A crise atual da cultura exprime o fim dos Tempos Modernos e a gestação dolorosa de uma nova era que se pode ou não denominar de pós-moderna.
Ao longo do século XIX e início do século XX, o movimento operário, nascido da industrialização e relacionados a seus efeitos sociais subjugadores, pretendia substituir a sociedade moderna, chamada por ele de "capitalista", por uma sociedade radicalmente nova, que seria liberada da "exploração e da opressão do homem pelo homem". Tal movimento desembocou, por um lado, em práticas "reformistas" que o fizeram integrar-se à economia e à sociedade "capitalista", sem destruí-la nem ultrapassá-la e, por outro lado, na Revolução Soviética e no totalitarismo que dela resultou. A implosão da União Soviética em 1989-1991 e o fim dos regimes afins na Europa do Leste mostraram que a tentativa histórica de substituir os valores modernos, ocidentais e "burgueses" por valores revolucionários, "proletários" e universais fracassara. Vivemos, nestas condições, uma crise da cultura, uma crise dos valores morais e políticos muito mais profunda, muito mais radical do que aquela de que Nietzsche e, depois, Freud, tomaram consciência.
De fato, as esperanças revolucionárias oriundas do século XIX vinham acompanhadas de uma visão da história universal, segundo a qual a cultura tradicional seria seguida pela cultura moderna que, por sua vez, seria seguida por uma cultura que exprimisse a condição de uma humanidade liberada e reconciliada com ela mesma. O desmoronamento dessa escatologia coloca-nos em uma situação angustiante: por um lado, as culturas tradicionais desapareceram, ou estão em vias de desaparecer, junto com os valores que por muito tempo animaram a vida coletiva dos seres humanos e conferiram ao corpo social sua coesão interna; por outro lado, a cultura moderna se encontra agora imersa em uma crise cujo futuro é muito difícil de prever.
Apesar desta preocupante conjuntura histórica, é preciso, mesmo assim, reconhecer que nosso século teve o grande mérito de atingir uma plena consciência - ao menos nos meios esclarecidos – da pluralidade das culturas e do respeito devido a cada uma delas. Isto quer dizer que existe uma hierarquia das sociedades existentes do ponto de vista de seu nível tecnológico e de seu poder econômico, mas que não se pode falar, rigorosamente, de culturas superiores ou inferiores a outras culturas; existem somente culturas diferentes. Não esqueçamos que, para um filósofo do porte de Hegel, a África constituiria eternamente "o mundo da infância", que o "mundo oriental", ou seja, para ele a China, a Índia e a Pérsia, seria apenas o primeiro momento do futuro da humanidade que, em seguida, se elevaria gradualmente, através do mundo grego e, em seguida, do mundo romano, até sua plenitude, por ele chamada de "mundo cristão-germânico", forma de designar o ocidente na sua pretensão de erigir-se em modelo único da Civilização. E Auguste Comte, com sua chamada lei dos três estados, não pensava fundamentalmente de outra forma.
Hoje, os eruditos e os espíritos esclarecidos sabem que as culturas inspiradas pelo budismo ou pelo islã não são nem inferiores nem superiores às culturas inspiradas pelo cristianismo. De forma mais geral, cada povo teve ou conservou uma visão do mundo e do ser humano, e nada permite pretender que algumas dessas visões sejam superiores ou inferiores às outras. No fundo, a espiritualidade não se reduz unicamente aos saberes científicos e ao conhecimento técnico, contrariamente às asserções da ideologia de glorificação da modernidade e da ocidentalidade.
No entanto, as técnicas em uso em uma sociedade não deixam de influenciar as maneiras de viver e de pensar vigentes nessa mesma sociedade. O que permite entender porque, desde o final da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos da América desempenharam um papel dominante, não somente no campo da maioria das técnicas científicas e industriais (no qual conquistaram o primeiro lugar), mas também na produção de um modelo cultural exportável, a partir do famoso "american way of life".
Certamente, a cultura própria aos Estados Unidos não é desprovida de virtudes. Ela provém de indivíduos que viveram e conceberam a concorrência e, de forma mais geral, a competição como uma "luta pela vida" da qual deveriam despontar os melhores . O trabalho obstinado, a poupança, a organização e o rigor na gestão das empresas são os valores constitutivos da sociedade estadunidense, inspirados, como bem notou Max Weber, em uma forma de protestantismo que inicialmente era um puritanismo. Contudo, o "american way of life", de que se fala desde 1945 e, sobretudo em nossos dias, distanciou-se consideravelmente do ideal e do gênero de vida dos pioneiros puritanos dos séculos XVIIIXIX.
Trata-se muito mais de modos de vida essencialmente urbanos, que implicam uma certa ruptura ou, pelo menos, um certo distanciamento em relação à natureza, e que consistem em uma busca desenfreada pelo dinheiro, menos para poupá-lo e investi-lo de acordo com um espírito weberiano do que para desfrutá-lo segundo uma mentalidade muito materialista. É o que Riesmam e, depois, Marcuse chamaram, visando denegri-lo, de "ideal" da "sociedade de consumo".
Após as terríveis adversidades da Segunda Guerra Mundial, compreende-se que os mais diversos povos e, principalmente, as novas gerações, tenham aspirado a desfrutar o máximo possível de bem-estar e tenham adotado o que o "american way of life" parecia lhes oferecer. O cinema, o rádio - sobretudo com a invenção dos rádios de pilha - e finalmente a televisão, com a força de suas imagens, veicularam o modelo cultural emblemático da "sociedade de consumo". Pode-se, portanto, falar de uma norte-americanização generalizada dos modos de vida e de pensamento, ainda que as fortes tradições culturais de um país como o Japão ou de diversos países da Europa tenham oposto uma importante resistência à referida norte-americanização. Cabe, mesmo assim, a pergunta se, a longo prazo, a expansão e a banalização dos modelos culturais provenientes dos Estados Unidos não prevalecerão sobre essas resistências, e se não contribuirão eficazmente para o declínio irremediável das tradições culturais que ainda hoje constituem uma das riquezas essenciais do patrimônio espiritual da humanidade.

(publicado originalmente em O Olho da História, n.5, 1998.)




Revista O Olho da História

Um comentário:

Ianê Mello disse...

Excelente matéria, Eduardo!

Olha, já respondi seu e.mail sobre a revista.

Aguardo sua resposta.

Beijos.