sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Roma - questão da Escravidão


A VERDADEIRA NATUREZA DA ESCRAVIDÃO
Nesse império, os que entre nós se chamariam Colbert ou o superintendente Fouquet eram escravos ou libertos do imperador; a multidão dos que chamamos funcionários igualmente o eram: trabalhavam nos negócios administrativos do príncipe, seu amo. Na extremidade inferior da escada, uma parte da mão-de-obra rural compõe-se de escravos. Certamente vai longe a época da "escravidão de plantação" e da revolta de Espártaco, e não é verdade que a sociedade romana repousa sobre a escravidão; o sistema da grande propriedade cultivada por bandos de escravos foi, aliás, peculiar a certas regiões, sul da Itália ou Sicília: o escravagismo não é um traço essencial [pág. 59]
da Antiguidade romana mais do que a escravatura no Sul dos Estados Unidos antes de 1865 constitui uma característica do Ocidente moderno. Fora dessas regiões de eleição e passada sua época, a escravidão é apenas uma das relações de produção agrícola, ao lado dos sistemas de meeiro e assalariado; algumas províncias praticamente ignoram a escravidão rural (é o caso do Egito). Um grande proprietário usa escravos para cultivar a parte de suas terras que ele explora ou manda explorar, em lugar de entregá-la a meeiros; esses escravos vivem em dormitórios, sob a autoridade de um administrador também escravo, cuja companheira cozinha para todos. Um pequeno proprietário também pode ser ajudado por escravos; Filóstrato conta a história de um modesto vinhateiro que se resignara a trabalhar a vinha com as próprias mãos porque seus poucos escravos lhe custavam caro demais.
No setor do artesanato a mão-de-obra, ao que parece, é basicamente servil; escravos e libertos compõem a totalidade do pessoal nas olarias de Arezzo (onde numerosas pequenas empresas, todas independentes, contam de um a 65 trabalhadores). A agricultura compreende principalmente pequenos camponeses independentes e meeiros que trabalham para grandes proprietários. Mas também comporta uma mão-de-obra extra, que compreende ou diaristas assalariados de condição livre porém muito miserável, ou "escravos na corrente", que, a meu ver, são "maus" escravos punidos pelo senhor com a revenda mediante a condição de o comprador mantê-los nessa situação de prisioneiros privados. A escravaria acrescenta-se a um imenso campesinato já existente; para que a relação de produção servil se tornasse preponderante, seria preciso que os romanos escravizassem esse campesinato livre. Em comparação com o país, os escravos constituíam a quarta parte da mão-de-obra rural na Itália. Nesse império em que os camponeses são os burros de carga da sociedade, a condição dos escravos rurais certamente era a mais dura.
Não sendo camponês, geralmente um escravo é doméstico; um romano da classe alta tem em casa dezenas de servos; um [pág. 60]
romano da classe média (evidentemente bastante rico para viver sem fazer nada) tem um, dois ou três. "Em Pérgamo havia um gramático", conta Galeno, "que tinha dois escravos; todo dia o gramático ia ao banho com um deles [que o vestia e despia] e deixava o segundo trancado em casa para guardar a propriedade e fazer a comida." A condição dos escravos varia consideravelmente, desde a doméstica encarregada dos trabalhos mais duros até o todo-poderoso administrador que, conta Galeno também, gere todos os negócios do amo e recebe os cuidados dos maiores médicos quando adoece. Suas relações com o senhor variam na mesma proporção, e o escravo cúmplice, o escravo que leva o dono pela coleira, não é apenas um tipo de comédia (a menos que o amo, num momento de furor, o envie aos trabalhos forçados de seus domínios no dia em que se inverter essa relação ambivalente). O dono e a dona da casa encarregam os escravos de confiança de espionar a conduta dos "amigos" ou clientes e dos preceptores, filósofos e outros domésticos de condição livre; esses escravos cochicham ao ouvido do dono os ridículos e escândalos secretos da casa. Para certas vocações, a condição servil era o meio usual de se colocar a serviço de uma importante figura e adquirir uma posição estável: um gramático, um arquiteto, um cantor, um comediante serão escravos do senhor que utiliza seus talentos; a intimidade de um grande é menos sórdida que um salário no dia-a-dia, e mais cedo ou mais tarde o amo lhes dará a liberdade.
Quem é o homem que geralmente sucede o médico romano? Um escravo que esse médico instruiu (não havia escolas de medicina) e depois libertou. Não se concebe o assalariamento como uma relação neutra e regulamentar, mas como uma ligação feita de desprezo, pois não se trata de um vínculo pessoal. Só que a intimidade desse vínculo é desigual, e nisso as diversas condições de todos os escravos, tão desiguais entre si, têm algo de idêntico que impede a escravidão de ser uma palavra vã; poderosos ou miseráveis, todos os escravos são tratados no mesmo tom e com os mesmos termos dirigidos às crianças e aos seres inferiores. A escravidão é extraeconômica e também não cons- [pág. 61]
titui uma simples categoria jurídica, mas — coisa incompreensível e revoltante aos olhos dos modernos — é uma distinção social que não se fundamenta na "racionalidade" do dinheiro, e por isso a comparamos ao racismo; nos Estados Unidos, ainda há meio século, um negro podia ser um cantor célebre ou um rico empresário: os brancos dirigiam-lhe a palavra num tom de voz familiar e sempre o chamavam pelo primeiro nome, como a um criado. Como diz Jean-Claude Passeron, pode existir uma hierarquia, visível pelos sinais de estima, que nada tem a ver com riqueza ou poder. Assim a escravidão, o racismo, a nobreza.

A ESCRAVIDÃO É INCONTESTÁVEL
O escravo é inferior por natureza, não importa quem seja e o que faça; isso acompanha uma inferioridade jurídica. Se o amo resolve mandá-lo negociar, para recolher os lucros, o escravo imediatamente dispõe de uma espécie de patrimônio chamado pecúlio, de plena autonomia financeira, do direito de assinar contratos por iniciativa própria e até mover uma ação judicial, desde que se trate dos negócios do senhor e este não retome seu pecúlio. Apesar desses úteis simulacros de liberdade, o escravo é e continua sendo um homem que a qualquer momento pode ser vendido; se seu amo, que tem o direito de castigá-lo à vontade, decidir que ele merece o derradeiro suplício, alugará os serviços do carrasco municipal, fornecendo-lhe a resina e o enxofre para queimar o infeliz. O escravo poderá ser torturado perante os tribunais públicos para confessar os crimes do amo, enquanto os homens livres não eram ameaçados de tortura.
A divisão estanque que separava os homens dos sub-homens devia ser insuspeitável. Não era decente lembrar que este ou aquele escravo nascera livre e se vendera voluntariamente, nem especular sobre a eventualidade de um homem livre se vender dessa maneira: tinha-se o direito de comprar bens futuros, como por exemplo uma colheita "para a época do [pág. 62]
amadurecimento", mas não se tinha o direito de comprar um cidadão "para a época em que ele será vendido como escravo". Da mesma forma que no Ancien Régime, um silêncio pudico envolvia os numerosos rebentos de nobres empobrecidos que obscuramente perdiam a nobreza. E, como não devia haver nenhum equívoco entre a liberdade e a servidão, o direito romano tem uma norma — a do "favor para a liberdade" — segundo a qual, na dúvida, um juiz deve decidir em favor da presunção de liberdade; por exemplo, se a interpretação de um testamento pelo qual o defunto parecia libertar seus escravos é duvidosa, optar-se-á pela interpretação mais favorável: a liberdade. Outra norma era que, uma vez tendo libertado um escravo, não se podia voltar atrás nessa decisão, pois "a liberdade é o bem comum" de todas as ordens de homens livres, como o Senado reafirmará no ano 56 de nossa era; questionar a libertação de um só escravo equivaleria a ameaçar a liberdade de todos os homens livres. Esse grande princípio de optar pela solução mais humana só tem de humanitarista a aparência; da mesma forma, suponhamos que existe um princípio tal que se num júri há tantas vozes pela libertação como pela guilhotina vencerá a libertação: esse princípio não quererá dizer que se tem má consciência ao condenar mesmo os culpados comprovados; trata-se de um princípio formulado no interesse dos inocentes e não dos culpados. Percebemos também o paradoxo: deve-se favorecer a liberdade, porém somente na dúvida; ninguém se preocupa com os escravos cuja servidão é inequívoca. Detestar os erros judiciários não significa contestar a santidade da justiça, ao contrário.
A escravidão era uma realidade incontestável; o humanitarismo não consistia em libertar os escravos de todos os seus senhores, mas em se comportar pessoalmente como bom senhor. Os romanos estavam tão seguros de sua superioridade que consideravam os escravos crianças grandes; geralmente os chamavam de "pequeno", "menino" (pais, puer) mesmo quando eram velhos, e os próprios escravos se tratavam dessa forma entre si. Como as crianças, os escravos estão sujeitos [pág. 63]
ao tribunal doméstico que constitui o arbítrio do senhor; e se seus erros demandam os tribunais públicos, receberão castigos físicos, dos quais estão isentos os homens livres. Criaturinhas sem importância social, não têm nem esposa nem filhos, pois seus amores e proles são como os dos animais de um rebanho: o dono ficará contente de ver o rebanho crescer, só isso. Os nomes próprios que o amo lhes dá compõem uma classe diversa daquela dos homens livres (como entre nós os nomes dos cães) e são de origem grega, ao menos em aparência (na verdade não passam de meros pastichos romanos de nomes gregos, fabricados ad hoc). Sendo os escravos crianças, sua revolta constituiria uma espécie de parricídio; quando relega ao pior lugar de seu inferno "os que participaram de guerras ímpias e renegaram a fé devida a seus amos", Virgílio está pensando em Espártaco e seus seguidores.
A vida privada dos escravos é um espetáculo pueril que se olha com desdém. No entanto esses homens tinham vida própria; por exemplo, participavam da religião, e não apenas da religião do lar que, afinal, era o seu: fora de casa um escravo podia perfeitamente ser aceito como sacerdote pelos fiéis de alguma devoção coletiva; podiam também se tornar padres dessa Igreja cristã que nem por um momento pensou em abolir a escravidão. Paganismo ou cristianismo, é possível que as coisas religiosas os tenham atraído muito, pois bem poucos outros setores estavam abertos para eles. Os escravos também se apaixonavam pelos espetáculos públicos do teatro, do circo e da arena, pois, nos dias de festa, tinham folga, assim como os tribunais, as crianças das escolas e… os burros de carga.
Tudo isso fazia sorrir ou irritava; os sentimentos dos escravos não são os de gente grande e, por exemplo, seria tão engraçado imaginar um escravo apaixonado quanto atribuir a uma camponesa de Molière as emoções e os ciúmes racinianos. Aonde se chegaria, se além de tudo os senhores tivessem de levar em conta os caprichos sentimentais de seus servos? "Agora os escravos se apaixonam neste país?", pergunta, surpreso e chocado, o herói de uma comédia feérica de Plauto. Um escravo [pág. 64]
deve viver para seu serviço, mais nada; Horácio pode muito bem divertir os leitores contando-lhes a vida privada de seu escravo Davo, que frequenta as prostitutas baratas nas ruas quentes e arregala os olhos diante das pinturas que imortalizavam as grandes lutas de gladiadores: os juristas riam menos; fanatismo religioso, exagerada inclinação para o amor, gosto imoderado pelos espetáculos e pelas pinturas (hoje diríamos cartazes), tais são os defeitos que um mercador de escravos deve declarar ao comprador. "Defeitos" no sentido em que falamos dos defeitos de fabricação de uma mercadoria? Não: o escravo é um homem, e esses defeitos são falhas morais e vieses psicológicos.
Todos sabem, com efeito, que a psicologia dos servos não é a dos senhores: toda a psicologia de um escravo se reduz a ser próprio ou impróprio para o serviço e ter sentimentos de fidelidade para com o amo; historiadores e moralistas relatam com aprovação e estima os casos de escravos que levaram o dever ao ponto de um humilde heroísmo e se deixaram matar para salvar seu senhor ou segui-lo na morte. Mas também existem muitos "maus escravos", e a expressão diz tudo: um mau escravo não é uma criatura com certos defeitos, como um encanador guloso ou um notário preguiçoso; é um escravo impróprio para o uso, como uma "má ferramenta", um escravo que realmente não é escravo.
Assim como em relação às crianças, a psicologia do escravo se explica pelas influências que ele sofre, pelos exemplos que recebe: sua alma não tem autonomia. Diz-se que a imitação de maus servos pode torná-lo jogador, bêbado ou vadio e o exemplo de um amo vicioso pode torná-lo vagabundo ou preguiçoso. Também o direito proporciona um recurso contra terceiros que tenham estragado um escravo; constitui um delito abrigar conscientemente um servo fugitivo ou encorajar com palavras seu intento de fugir. Para falar a verdade, a vítima em geral é o primeiro culpado; um senhor que deseja se fazer respeitar, diz Platão, não deve brincar com os servos e todas as manhãs deve ser o primeiro a se levantar; muitos são fracos demais, e a maldade pública não ignora isso. Um gramático romano fornece- [pág. 65]
-nos uma informação curiosa: "Nas comédias ligeiras os poetas podem colocar em cena escravos mais sábios que seu amo, o que não seria suportável nas comédias mais formais"; pois na comédia ligeira imagina-se um mundo maliciosamente revirado, enquanto a comédia realista deve mostrar a nobre verdade.

EVIDÊNCIA DA ESCRAVIDÃO
Como os escravos suportavam tanta miséria e humilhação? Com raiva contida ou revolta dissimulada, anunciadora de explosões e guerras civis? Com resignação? Seria esquecer que entre esta última passividade e a ativa luta social existe um meio-termo, que é comum em nossos dias: a reatividade; como quem dorme numa baia desconfortável, tomavam uma posição mental que lhes permitia sofrer menos e consistia em amar o senhor que não podiam eliminar. Esse amo que em seu jargão chamavam de "ele mesmíssimo" (se é possível traduzir assim o termo ipsimus ou ipsissimus). "Fui escravo durante quarenta anos", relata um liberto a Petrônio, "sem ninguém saber se eu era escravo ou livre; fiz de tudo para dar plena satisfação a meu senhor, que era um homem honrado e digno. E em casa lidava com gente que não queria outra coisa além de me passar uma rasteira. Enfim, consegui sobreviver, graças sejam dadas a meu amo! Esses são méritos verdadeiros, pois, para nascer livre, não é difícil." Esse arrivismo vê na condição servil uma carreira onde poderá fazer melhor que os outros.
Na falta de outras perspectivas, os escravos partilham os valores do senhor, admiram-no, servem-no zelosamente; observam-no viver com a mistura de admiração e desforra zombeteira que faz dos servos os vigias de seus amos. Tomam seu partido, defendem-lhe a vida, são os fiéis guardiães de sua honra; em caso de tumulto ou até de guerra civil, são seu braço direito, seus guerreiros. O senhor pode muito bem exercer sobre eles ou suas concubinas o direito ao hímen; os escravos se adaptam por meio de um provérbio: "Não há vergonha em [pág. 66]
fazer o que o amo ordena"; quando o senhor vai visitar sua fazenda, a companheira do administrador naturalmente se encontra em sua cama nessa noite. Saber obedecer é a seus olhos padrão de virtudes e eles criticam os indisciplinados: "Os imbecis de teus senhores não sabem te fazer obedecer", diz um velho escravo a um mau escravo. Percebe-se como esse amor, uma vez frustrado ou ferido, podia se transformar em fúria sanguinária contra um senhor indigno. Quanto às guerras servis de Espártaco e seus êmulos, a gênese era diferente; os desfavorecidos não pensavam em combater para construir uma sociedade menos injusta, da qual seria banido o escândalo da escravidão, mas sim em escapar da miséria lançando-se numa aventura mais ou menos comparável à dos mamelucos ou dos flibusteiros: estabelecer seu próprio reino em terras romanas.
Uma geração antes de Espártaco, por ocasião da grande revolta de escravos na Sicília, os rebeldes já haviam instituído uma capital, Enna, e escolhido um rei, que cunhou moeda; é difícil acreditar que nesse reino de antigos escravos a escravidão fosse proibida: por que seria?
Nenhum homem jamais pôde estender os olhos além dos cenários cambiantes dos dramas históricos nos quais é figurante e perceber enfim o fundo nu dos bastidores, pois não existe fundo; nenhum escravo, nenhum senhor soube questionar e evidência da instituição servil. O que os escravos, ou pelo menos a maioria deles, desejavam (pois era melhor servir que ser livre e morrer de fome) era escapar individualmente à servidão e serem libertados. Os próprios amos achavam decente libertar escravos. No Satyricon, Trimálquio declara, depois de beber: "Meus amigos, os escravos também são homens e mamaram o mesmo leite que nós, ainda que a Fatalidade os tenha vencido; provarão a água da liberdade antes que seja tarde (mas não tentemos o azar falando nisso, pois desejo continuar vivo!); enfim, em suma, libertei todos em meu testamento". Assim falando e agindo, um senhor se honrava e, longe de desmentir a legitimidade da escravidão, tirava consequências lógicas de sua autoridade paterna sobre essas crianças grandes. Um senhor que [pág. 67]
ama seus escravos será levado a libertá-los, pois é o que eles mais desejam; isso não prova que a escravidão seja a seus olhos mais uma injustiça que uma desgraça fatal, porém apenas demonstra que o próprio senhor quer ser um bom amo.
Libertar escravos constitui um mérito, mas não um dever. Um rei está em seu direito quando condena à morte um criminoso e é adorável se o perdoa; contudo o perdão é gratuito, e o rei não age erradamente se não perdoa. O prazer que um senhor sente ao libertar confirma a autoridade em virtude da qual ele poderia também não fazer isso; ele comanda com amor, e o amor não tem lei. O subordinado não deve esperar a clemência como algo que lhe é devido. Dupla imagem de pai: castiga, perdoa; seu perdão, não sendo um dever, não poderá ser solicitado pelo próprio escravo, e sim apenas por uma terceira pessoa, nascida livre como o senhor; essa terceira pessoa se honrará fazendo a imagem paterna clemente suceder à imagem severa e ao mesmo tempo honrará a autoridade dos senhores em geral sobre seus escravos em geral.

História da vida privada, 1: do Império Romano ao ano mil / organização Paul Veyne ; tradução Hildegard Feist; consultoria editorial Jonatas Batista Neto. — São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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