Justiça que falha
A escrava Ambrozina foi presa aos 12 anos sob a acusação de ter matado uma jovem branca. Mas o assassino era o marido da vítima
Maria Regina Clivati Capelo
Culpada ou inocente? Acusada de ter assassinado sua patroa a machadadas, Ambrozina tinha apenas 12 anos quando foi presa, em janeiro de 1852, na região dos campos de Palmas, jurisdição da Vila de Castro, (sudoeste do atual estado do Paraná). Depois de um mês encarcerada, acabou confessando o crime: matara Antonina Joaquina Fernandez enquanto ela dormia. O motivo seria uma ameaça de castigo físico, versão confirmada por cinco testemunhas no julgamento.
Tudo parecia se encaixar. Ambrozina tinha acesso à vítima, já que trabalhava na fazenda onde ela morava, e era escrava, o que inspirava desconfiança. Mas o verdadeiro autor do crime era o marido da jovem assassinada. Ele ameaçou Ambrozina de morte, obrigando-a a assumir toda a culpa. A menina padeceu na prisão por quatro anos à espera de justiça.
Ela teve o destino de muitos outros cativos no Brasil. Os negros que caíam nas redes do Judiciário precisavam ter amigos brancos e livres para garantir credibilidade a suas narrativas. Este não era o caso de Joaquim Rodrigues da Silva, o marido da vítima. Branco, casado com uma mulher também branca com quem teve dois filhos, era capataz de uma fazenda e, por vezes, até substituía o dono da propriedade, Antônio Joaquim de Camargo, em suas ausências. Foi o capataz quem registrou queixa-crime contra a escrava, desaparecendo em seguida. Mas nem mesmo a sua fuga despertou suspeita.
Foi obedecendo ao proprietário da fazenda e seu senhor que Ambrozina passou a trabalhar para o capataz e sua esposa. Mal sabia o que aquela tarefa lhe custaria. Joaquim aproveitou que a menina estava no lugar errado na hora errada para se livrar de sua culpa.
Ela não sabia ler e desconhecia sua data de nascimento. Sua idade foi determinada, durante o processo, pela avaliação de duas testemunhas que lhe deram aproximadamente 12 ou 13 anos, com base em seus traços. Sua inserção no mundo do trabalho fora precoce. Separada de seus pais muito cedo, aos seis anos ela já lavava roupas, carregava água e fazia outros serviços na propriedade, como informa seu processo, arquivado no Fórum Judicial da cidade de Palmas.
As circunstâncias pareciam conspirar contra a menina. À confissão de Ambrozina somava-se o depoimento das seis testemunhas, mas apenas uma delas pôs em dúvida a culpa da ré. Eram homens com idade média de 30 anos considerados confiáveis, isto é, não eram negros, tinham profissão, esposa, e haviam jurado sobre os Evangelhos. Além disso, o curador nomeado pelo juiz para dar proteção à criança, acompanhando-a ao longo do processo, faltou a todas as audições das testemunhas, à exceção da primeira. Os curadores não gostavam de representar escravos e sempre apresentavam alguma justificativa, como doença ou viagem.
A conclusão do juiz municipal João Miguel de Mello Taques foi que a ré tinha discernimento para cometer o crime e, assim, foi sentenciada como culpada. Mas nem tudo indicava que Ambrozina era a assassina. Havia alguns pontos no mínimo mal contados da história: nenhuma das testemunhas chegou a presenciar o crime ou mesmo escutar ruídos no dia do acontecido: “Sei por ouvir dizer do povo que a ré teve uma conferência com a finada Antonina e esta prometeu amarrar e surrar e que por isto [...], quando estava dormindo, tirou-lhe (de Antonina) uma criança de seus seios pondo-a para o lado e depois deu-lhe três machadadas, das quais morreu”, disse um dos depoentes.
Apesar dos testemunhos questionáveis, em maio de 1852 o nome de Ambrozina foi posto no rol dos culpados. Somente em fevereiro do ano seguinte teve início a inquirição de novas testemunhas. Estas ressaltaram, mais uma vez, a culpa de Ambrozina. O curador da menina-escrava simplesmente não tomou a palavra para fazer perguntas às testemunhas.
Durante novo interrogatório, necessário pela mudança de juiz, houve a grande revelação: o verdadeiro assassino da jovem Antonina era Joaquim Rodrigues da Silva, afirmou a escrava. Na hora do crime, ela estava “lavando roupas no rio e quando voltou achou morta Antonina e seu marido já não se achou”, disse.
Mesmo diante da informação bombástica, o curador de Ambrozina nada fez. O juiz (Ignácio Mariano de Oliveira), por sua vez, não deu ouvidos à ré. Mais uma vez, ela estava só. Os autos foram encerrados com a justificativa de que a escrava confessara o crime em três ocasiões e por isso não havia dúvidas sobre a autoria do assassinato. O suplício de Ambrozina estava longe de terminar.
O processo acabou engavetado, sendo reaberto somente três anos depois, em março de 1855, quando um dos juízes municipais que haviam atuado no caso liberou-se do cargo e assumiu a defesa de Ambrozina. Enquanto isso, ela permanecia no cárcere.
Contratado pelo dono da fazenda e senhor da ré para ser advogado de defesa da menina, João Miguel de Mello Taques apresentou um documento argumentando que não havia razões para acusar a menina, já que ela havia sido coagida a confessar sob ameaça do marido da vítima. Ambrozina contou em uma audiência que havia sido amarrada pelo capataz e mais cinco homens. Eles a ameaçaram de morte caso não dissesse ter sido a assassina, e conduziram-na às autoridades à força. Em uma carroça, o marido de Antonina carregou o corpo da vítima, Ambrozina e as testemunhas, que eram seus vizinhos e amigos.
Aparentemente, as novas evidências não eram suficientes para salvar Ambrozina da prisão. O processo, engavetado novamente em maio de 1855, permaneceu parado durante longos dez meses, ora porque não havia juízes na localidade de Palmas, ora porque não havia promotor. A reclusão parecia não ter fim quando, em fevereiro de 1856, foi nomeado o juiz Vicente Ferreira da Silva Bueno, que fez o processo caminhar. Ele marcou uma audiência para o dia 11 do mesmo mês.
Poucos dias depois, em 15 de fevereiro, foi pronunciada a sentença final: Ambrozina era absolvida do crime que não havia cometido. Por inexistência de provas jurídicas – as testemunhas não compareceram à audiência –, o juiz considerou improcedente a acusação. O magistrado levou em consideração que as três confissões haviam sido feitas mediante grave ameaça e que quem havia prestado queixa estava desaparecido. Além disso, a escrava era menor de idade na época do crime. Ambrozina tinha finalmente o nome riscado do rol dos culpados.
Os escravos no Brasil ficaram marcados pelos valores da sociedade branca, e suas vidas foram construídas sobre o tripé de humildade, obediência e fidelidade, como afirma a historiadora Kátia Mattoso. Durante quatro anos, a menina ficou presa esperando que a justiça e a ciência dos homens brancos se revelassem justas. Ela foi inferiorizada e ameaçada, confessou crime alheio, enquanto o verdadeiro assassino permanecia livre. Quantas Ambrozinas devem ter existido nos mais de 300 anos de escravidão no país?
Maria Regina Clivati Capelo é professora aposentada do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina.
Saiba Mais - Bibliografia:
BINZER, Ina von. Os meus Romanos: alegrias e tristezas de uma educadora no Brasil. Trad. Alice Rossi e Luisita da Gama Cerqueira. 5ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
FERNANDES, Florestan. O Negro no Mundo dos Brancos. São Paulo: Difusão Européia, 1972.
GONÇALVES, Luiz Alberto Oliveira. “Negros e Educação no Brasil” In: LOPES, Eliane M. T.; FARIA FILHO, L. Mendes; VEIGA, C. Greive. (orgs). 500 Anos de Educação no Brasil. 3ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2003, pp. 325 - 346.
MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser Escravo no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1988.
VAINFAS, Ronaldo. Ideologia e escravidão: os letrados e a sociedade escravista no Brasil colonial. Petrópolis: Vozes, 1986.
Saiba Mais - Filmes:
“Amistad”, de Steven Spielberg. Estados Unidos, 1997.
“Quanto vale ou é por quilo?”, de Sérgio Bianchi. Brasil, 2005.
“Quilombo”, de Cacá Diegues. Brasil, 1984.
“Terras de Quilombo: uma dívida histórica”, de Murilo Santos, 2004.
Na mira da lei
Como uma propriedade, uma “coisa”, pode ser julgada? A princípio, a justiça imperial não fazia distinção entre livres e cativos: todos os que cometiam crimes eram julgados pela mesma estrutura judicial, e não foram raros os julgamentos de escravos. Mas a Revolta dos Malês, que ocorreu na Bahia em 1835, assustou a elite escravocrata brasileira. Naquele mesmo ano, foi aprovada uma lei que previa penas duríssimas para escravos que cometiam crimes contra os seus senhores. O primeiro artigo da lei de 10 de junho dizia: “Serão punidos com pena de morte os escravos ou escravas que matarem por qualquer maneira que seja, propiciarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem outra qualquer ofensa física a seu senhor, à sua mulher, a descendentes ou ascendentes, que em sua companhia morarem (...)”.
Ser julgado por essa legislação significava, além do risco da condenação à morte, a impossibilidade de recorrer às instâncias superiores. Somente na década de 1860, por intervenção do imperador, estas penas começaram a ser comutadas em prisão perpétua. Alguns dos homens que mais se destacariam no cenário político nacional se envolveram nestes casos, como Joaquim Nabuco, que atuou na defesa de escravos em Pernambuco na década de 1860, livrando três condenados da forca. (Equipe RHBN)
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
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