LOUVÁVEL OCIOSIDADE
A economia romana comportava um importante setor servil; havia também a prisão por dívidas, em que um credor sequestrava o devedor com a mulher e os filhos para fazê-los trabalhar; e um setor do Estado em que os condenados, os escravos do fisco (ou seja, de inumeráveis domínios imperiais) penavam sob as chibatadas dos guardas; muitos cristãos conheceram tal destino. Mas o setor principal continuava juridicamente livre. Pequenos camponeses independentes penavam para pagar os impostos; como escreveu Peter Brown, "o Império Romano deixava o terreno livre para as oligarquias locais de notáveis e confiava-lhes o cuidado de garantir as tarefas administrativas; exigia-lhes pouca coisa pela via fiscal e evitava mostrar-se muito curioso quanto à maneira como os impostos eram extorquidos do campesinato; é a espécie de governo displicente que constituiu o princípio de muita dominação colonial num período recente". Outros camponeses eram meeiros desses notáveis. Trabalhadores agrícolas, assalariados, artesãos cujos serviços eram comprados para determinada tarefa tinham com os empregadores um pacto de compromisso que raramente assumia a forma de contrato escrito (à exceção de casos em que havia um contrato de aprendizagem). Assim como o Código Napoleônico acata a palavra do senhor nas contestações relativas aos salários dos criados, assim também um empregador romano faz justiça se os assalariados o roubam, como se fossem escravos. As cidades são essencialmente os lugares onde os notáveis, como a "nobreza citadina" da Renascença italiana, distribuem os lucros da terra: oposição completa com a Idade Média francesa e sua nobreza de castelões. Ao redor desses notáveis urbanos vivem [pág. 112] artesãos e comerciantes que são os fornecedores de tais ricos; era isso uma "cidade" romana (que com uma cidade moderna só tem em comum o nome). Como se reconhecia uma cidade? Pela presença de uma classe ociosa, a dos notáveis. A ociosidade é a peça principal de sua "vida privada"; a Antiguidade foi a época da ociosidade tida como mérito.
Por volta de 1820, dizia um astrólogo ao jovem herói de A cartuxa de Parma: "Dentro de talvez um século não se há mais de querer ociosos". Tinha razão. Em nosso século XX ninguém confessa de bom grado que vive de rendas. Desde Marx e Proudhon a noção de trabalho tornou-se um valor social Universal, um conceito filosófico. Tanto que o antigo desprezo pelo trabalho, as declarações de desdém não disfarçado pelos que trabalham com as próprias mãos, a exaltação do ócio como condição necessária para uma vida de homem "liberal" digno do nome de homem, tudo isso nos choca. O trabalhador era não apenas socialmente inferior mas também visto como um tanto ignóbil. A partir disso muitas vezes concluímos que uma sociedade que desconhecia a tal ponto os verdadeiros valores devia ser uma sociedade mutilada, obrigada a pagar o preço de sua mutilação: não seria o desprezo pelo trabalho que explicaria o atraso econômico dos antigos, sua ignorância das máquinas? A menos que uma praga se explique por outra praga e o desprezo pelo trabalho tenha sua explicação nesse outro escândalo que foi a escravidão…
E, no entanto, se formos sinceros encontraremos em nós uma das chaves desse enigma. Sim, o trabalho nos parece respeitável e não ousaríamos nos gabar de ser ociosos; isso não impede que sejamos muito sensíveis às distinções de classe e, sem confessar, vejamos os operários e artesãos como gentinha; não gostaríamos que nós e nossos filhos caíssemos a esse nível nos envergonhamos um pouco de tal sentimento.
Essa é a primeira das seis chaves das atitudes antigas diante do trabalho: o desdém pelo valor trabalho era desdém social pelos trabalhadores. Esse desdém perdurou até a época de A cartuxa de Parma, mais ou menos; depois, para manter a hie- [pág. 113] rarquia das classes sociais reduzindo os conflitos de classes, foi preciso enaltecer no trabalho um valor verdadeiro e o valor de todos; foi a paz social dos corações hipócritas. O mistério do desprezo antigo pelo trabalho consiste simplesmente no fato de que os acasos da guerra social não conduziram a esse provisório armistício da hipocrisia. Uma classe social orgulhosa de sua superioridade canta a própria glória (é isso a ideologia).
RIQUEZA É VIRTUDE
1º) Primeira chave, pois: a diferença dos grupos sociais é valorizada de acordo com seus recursos. Em Atenas, na época clássica, quando os poetas cômicos qualificavam um homem por seu ofício (Eucrates, o comerciante de estopa; Lisicles, o comerciante de carneiros), não era precisamente para honrá-los; só é homem por inteiro quem vive no ócio. Segundo Platão, uma cidade bem-feita seria aquela na qual os cidadãos fossem alimentados pelo trabalho rural de seus escravos e deixassem os ofícios para a gentalha: a vida "virtuosa", de um homem de qualidade, deve ser "ociosa" (logo veremos que é a vida de um proprietário de bens de raiz, que não "trabalha" no sentido de se ocupar em dirigir suas terras). Para Aristóteles, escravos, camponeses e negociantes não poderiam ter uma vida "feliz", quer dizer, ao mesmo tempo próspera e cheia de nobreza: podem-no somente aqueles que têm os meios de organizar a própria existência e fixar para si mesmos um objetivo ideal. Apenas esses homens ociosos correspondem moralmente ao ideal humano e merecem ser cidadãos por inteiro: "A perfeição do cidadão não qualifica o homem livre, mas só aquele que é isento das tarefas necessárias das quais se incumbem servos, artesãos e operários não especializados; estes últimos não serão cidadãos, se a Constituição conceder os cargos públicos à virtude e ao mérito, pois não se pode praticar a virtude levando-se uma vida de operário ou de trabalhador braçal". Aristóteles não quer dizer que um pobre não tenha meios ou oportunidades de [pág. 114] praticar certas virtudes, mas, sim, que a pobreza é um defeito, uma espécie de vício. Para Metternich, o homem começava no barão, para os gregos e romanos, começava no proprietário de terras, que vivia de rendas. Os notáveis do mundo greco-romano não se consideravam superiores à média da humanidade, como os nobre do Ancien Regime: consideravam-se a humanidade plena e inteira, a humanidade normal; portanto, os pobres eram normalmente inferiores: não viviam como se devia viver.
Riqueza constituía virtude. Num processo em que era acusado e a multidão ateniense atuava como juiz, Demóstenes jogou na cara do adversário as seguintes críticas: "Sou melhor que Esquines e mais bem-nascido; não gostaria de dar a impressão de insultar a pobreza, mas devo dizer que meu quinhão foi, quando criança, frequentar boas escolas e ter bastante fortuna para que a necessidade não me obrigasse a trabalhos vergonhosos. Tu, Esquines, foi teu destino, quando criança, varrer como um escravo a sala de aula onde teu pai lecionava". Demóstenes ganhou triunfalmente o processo.
Os pensadores gregos confirmaram os romanos nessa convicção natural. "As artes do vulgo, as artes sórdidas", escreveu Sêneca, "são, segundo o filósofo Posidônio, as dos trabalhadores braçais, que empregam todo o seu tempo em ganhar a vida; tais ofícios nada têm de belo e em nada se parecem com o Bem." Cícero não teve de aprender com o filósofo Panaitios, cujo conformismo apreciava, que "todo salário é sórdido e indigno de um homem livre, pois constitui o preço do trabalho, e não de uma arte; todo artesanato é sórdido e o comércio de revenda [por oposição ao alto negócio] também o é". A igualdade democrática, o ideal socialista e a caridade cristã não existiam para ordenar a esse desprezo espontâneo que tivesse algum pudor.
A Antiguidade celebrava a condição de quem vivia de rendas com o mesmo despudor com que o Ancien Regime considerava indigente quem não era nobre. Uma classe de ricos notáveis mais ou menos cultos e que deseja reservar para si as alavancas políticas exaltava sua afortunada ociosidade como possibilidade de uma cultura liberal e de uma carreira política. Os [pág. 115] trabalhadores, dizia Aristóteles, não saberiam governar a cidade, e acrescentava que não podem, não devem e, de resto, não pensam nisso. Na verdade muitos ricos, no dizer de Platão, não se imiscuíam nos negócios públicos e tratavam principalmente de se divertir e aumentar seu patrimônio. Os ricos, escreverá o místico Plotino, geralmente são decepcionantes; pelo menos têm o mérito de não precisar trabalhar e, assim, "formam uma espécie que guarda alguma reminiscência da virtude"; quanto à "massa dos trabalhadores braçais, é uma desprezível multidão, destinada a produzir objetos necessários à vida dos homens virtuosos".
Sem dúvida os ricos não precisam trabalhar; só que, escreve Platão, cometem o erro de trabalhar assim mesmo: por cobiça. Seu amor às riquezas "não lhes deixa um momento de descanso para se ocuparem de outra coisa além de suas propriedades privadas; a alma de cada cidadão hoje se acha presa a seu enriquecimento e nunca pensa em outra coisa senão fazer que cada dia traga seu lucro; cada um está disposto a aprender qualquer técnica, a praticar qualquer atividade que lhe dê lucro, e não lhe importa o resto".
História da vida privada, 1: do Império Romano ao ano mil / organização Paul Veyne ; tradução Hildegard Feist; consultoria editorial Jonatas Batista Neto. — São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
A economia romana comportava um importante setor servil; havia também a prisão por dívidas, em que um credor sequestrava o devedor com a mulher e os filhos para fazê-los trabalhar; e um setor do Estado em que os condenados, os escravos do fisco (ou seja, de inumeráveis domínios imperiais) penavam sob as chibatadas dos guardas; muitos cristãos conheceram tal destino. Mas o setor principal continuava juridicamente livre. Pequenos camponeses independentes penavam para pagar os impostos; como escreveu Peter Brown, "o Império Romano deixava o terreno livre para as oligarquias locais de notáveis e confiava-lhes o cuidado de garantir as tarefas administrativas; exigia-lhes pouca coisa pela via fiscal e evitava mostrar-se muito curioso quanto à maneira como os impostos eram extorquidos do campesinato; é a espécie de governo displicente que constituiu o princípio de muita dominação colonial num período recente". Outros camponeses eram meeiros desses notáveis. Trabalhadores agrícolas, assalariados, artesãos cujos serviços eram comprados para determinada tarefa tinham com os empregadores um pacto de compromisso que raramente assumia a forma de contrato escrito (à exceção de casos em que havia um contrato de aprendizagem). Assim como o Código Napoleônico acata a palavra do senhor nas contestações relativas aos salários dos criados, assim também um empregador romano faz justiça se os assalariados o roubam, como se fossem escravos. As cidades são essencialmente os lugares onde os notáveis, como a "nobreza citadina" da Renascença italiana, distribuem os lucros da terra: oposição completa com a Idade Média francesa e sua nobreza de castelões. Ao redor desses notáveis urbanos vivem [pág. 112] artesãos e comerciantes que são os fornecedores de tais ricos; era isso uma "cidade" romana (que com uma cidade moderna só tem em comum o nome). Como se reconhecia uma cidade? Pela presença de uma classe ociosa, a dos notáveis. A ociosidade é a peça principal de sua "vida privada"; a Antiguidade foi a época da ociosidade tida como mérito.
Por volta de 1820, dizia um astrólogo ao jovem herói de A cartuxa de Parma: "Dentro de talvez um século não se há mais de querer ociosos". Tinha razão. Em nosso século XX ninguém confessa de bom grado que vive de rendas. Desde Marx e Proudhon a noção de trabalho tornou-se um valor social Universal, um conceito filosófico. Tanto que o antigo desprezo pelo trabalho, as declarações de desdém não disfarçado pelos que trabalham com as próprias mãos, a exaltação do ócio como condição necessária para uma vida de homem "liberal" digno do nome de homem, tudo isso nos choca. O trabalhador era não apenas socialmente inferior mas também visto como um tanto ignóbil. A partir disso muitas vezes concluímos que uma sociedade que desconhecia a tal ponto os verdadeiros valores devia ser uma sociedade mutilada, obrigada a pagar o preço de sua mutilação: não seria o desprezo pelo trabalho que explicaria o atraso econômico dos antigos, sua ignorância das máquinas? A menos que uma praga se explique por outra praga e o desprezo pelo trabalho tenha sua explicação nesse outro escândalo que foi a escravidão…
E, no entanto, se formos sinceros encontraremos em nós uma das chaves desse enigma. Sim, o trabalho nos parece respeitável e não ousaríamos nos gabar de ser ociosos; isso não impede que sejamos muito sensíveis às distinções de classe e, sem confessar, vejamos os operários e artesãos como gentinha; não gostaríamos que nós e nossos filhos caíssemos a esse nível nos envergonhamos um pouco de tal sentimento.
Essa é a primeira das seis chaves das atitudes antigas diante do trabalho: o desdém pelo valor trabalho era desdém social pelos trabalhadores. Esse desdém perdurou até a época de A cartuxa de Parma, mais ou menos; depois, para manter a hie- [pág. 113] rarquia das classes sociais reduzindo os conflitos de classes, foi preciso enaltecer no trabalho um valor verdadeiro e o valor de todos; foi a paz social dos corações hipócritas. O mistério do desprezo antigo pelo trabalho consiste simplesmente no fato de que os acasos da guerra social não conduziram a esse provisório armistício da hipocrisia. Uma classe social orgulhosa de sua superioridade canta a própria glória (é isso a ideologia).
RIQUEZA É VIRTUDE
1º) Primeira chave, pois: a diferença dos grupos sociais é valorizada de acordo com seus recursos. Em Atenas, na época clássica, quando os poetas cômicos qualificavam um homem por seu ofício (Eucrates, o comerciante de estopa; Lisicles, o comerciante de carneiros), não era precisamente para honrá-los; só é homem por inteiro quem vive no ócio. Segundo Platão, uma cidade bem-feita seria aquela na qual os cidadãos fossem alimentados pelo trabalho rural de seus escravos e deixassem os ofícios para a gentalha: a vida "virtuosa", de um homem de qualidade, deve ser "ociosa" (logo veremos que é a vida de um proprietário de bens de raiz, que não "trabalha" no sentido de se ocupar em dirigir suas terras). Para Aristóteles, escravos, camponeses e negociantes não poderiam ter uma vida "feliz", quer dizer, ao mesmo tempo próspera e cheia de nobreza: podem-no somente aqueles que têm os meios de organizar a própria existência e fixar para si mesmos um objetivo ideal. Apenas esses homens ociosos correspondem moralmente ao ideal humano e merecem ser cidadãos por inteiro: "A perfeição do cidadão não qualifica o homem livre, mas só aquele que é isento das tarefas necessárias das quais se incumbem servos, artesãos e operários não especializados; estes últimos não serão cidadãos, se a Constituição conceder os cargos públicos à virtude e ao mérito, pois não se pode praticar a virtude levando-se uma vida de operário ou de trabalhador braçal". Aristóteles não quer dizer que um pobre não tenha meios ou oportunidades de [pág. 114] praticar certas virtudes, mas, sim, que a pobreza é um defeito, uma espécie de vício. Para Metternich, o homem começava no barão, para os gregos e romanos, começava no proprietário de terras, que vivia de rendas. Os notáveis do mundo greco-romano não se consideravam superiores à média da humanidade, como os nobre do Ancien Regime: consideravam-se a humanidade plena e inteira, a humanidade normal; portanto, os pobres eram normalmente inferiores: não viviam como se devia viver.
Riqueza constituía virtude. Num processo em que era acusado e a multidão ateniense atuava como juiz, Demóstenes jogou na cara do adversário as seguintes críticas: "Sou melhor que Esquines e mais bem-nascido; não gostaria de dar a impressão de insultar a pobreza, mas devo dizer que meu quinhão foi, quando criança, frequentar boas escolas e ter bastante fortuna para que a necessidade não me obrigasse a trabalhos vergonhosos. Tu, Esquines, foi teu destino, quando criança, varrer como um escravo a sala de aula onde teu pai lecionava". Demóstenes ganhou triunfalmente o processo.
Os pensadores gregos confirmaram os romanos nessa convicção natural. "As artes do vulgo, as artes sórdidas", escreveu Sêneca, "são, segundo o filósofo Posidônio, as dos trabalhadores braçais, que empregam todo o seu tempo em ganhar a vida; tais ofícios nada têm de belo e em nada se parecem com o Bem." Cícero não teve de aprender com o filósofo Panaitios, cujo conformismo apreciava, que "todo salário é sórdido e indigno de um homem livre, pois constitui o preço do trabalho, e não de uma arte; todo artesanato é sórdido e o comércio de revenda [por oposição ao alto negócio] também o é". A igualdade democrática, o ideal socialista e a caridade cristã não existiam para ordenar a esse desprezo espontâneo que tivesse algum pudor.
A Antiguidade celebrava a condição de quem vivia de rendas com o mesmo despudor com que o Ancien Regime considerava indigente quem não era nobre. Uma classe de ricos notáveis mais ou menos cultos e que deseja reservar para si as alavancas políticas exaltava sua afortunada ociosidade como possibilidade de uma cultura liberal e de uma carreira política. Os [pág. 115] trabalhadores, dizia Aristóteles, não saberiam governar a cidade, e acrescentava que não podem, não devem e, de resto, não pensam nisso. Na verdade muitos ricos, no dizer de Platão, não se imiscuíam nos negócios públicos e tratavam principalmente de se divertir e aumentar seu patrimônio. Os ricos, escreverá o místico Plotino, geralmente são decepcionantes; pelo menos têm o mérito de não precisar trabalhar e, assim, "formam uma espécie que guarda alguma reminiscência da virtude"; quanto à "massa dos trabalhadores braçais, é uma desprezível multidão, destinada a produzir objetos necessários à vida dos homens virtuosos".
Sem dúvida os ricos não precisam trabalhar; só que, escreve Platão, cometem o erro de trabalhar assim mesmo: por cobiça. Seu amor às riquezas "não lhes deixa um momento de descanso para se ocuparem de outra coisa além de suas propriedades privadas; a alma de cada cidadão hoje se acha presa a seu enriquecimento e nunca pensa em outra coisa senão fazer que cada dia traga seu lucro; cada um está disposto a aprender qualquer técnica, a praticar qualquer atividade que lhe dê lucro, e não lhe importa o resto".
História da vida privada, 1: do Império Romano ao ano mil / organização Paul Veyne ; tradução Hildegard Feist; consultoria editorial Jonatas Batista Neto. — São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
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