segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Dose de preconceito


Dose de preconceito
Personagens de Monteiro Lobato são salvos da preguiça e da ignorância pela doutorice do autor
Antonio Luigi Negro

Emília, Narizinho, Dona Benta, Cuca e Saci-pererê são alguns dos personagens facilmente lembrados quando o assunto é o escritor Monteiro Lobato (1882-1948). Fora do mundo encantado que o consagrou como o criador da literatura infanto-juvenil, ele se envolveu em grandes temas nacionais, como a defesa de uma indústria siderúrgica e de uma exploração petrolífera 100% brasileira. Esse fervor ultranacionalista influenciou sua obra literária, que incluía embates contra o que ele mesmo chamou de “doutorice”. Para Lobato, a mocidade estudantil, muito encantada pelo bacharelismo, afastava-se da realidade nacional.

Mas é possível reparar que sua antidoutorice tem um quê doutoral. Ao reunir suas armas contra a doutorice, o autor se municiou de um discurso científico e por vezes presunçoso. Há tons autoritários e preconceituosos nas narrativas que criaram os personagens Jeca Tatu e Zé Brasil.

Lobato tinha contato com a população rural do Vale do Paraíba desde a infância. Em 1911, herdou as terras de um avô em Taubaté e adotou técnicas agrárias modernas. Sua experiência como fazendeiro foi amarga, sem colher êxitos, mas não infrutífera: serviu para que se interessasse pelos problemas da lavoura e do trabalhador rural.

Na coletânea de contos Urupês, de 1914, surgiu o personagem Jeca Tatu: indolente, atrasado, matreiro, ignorante e preguiçoso. Diante de uma recepção desfavorável, o escritor se defendeu das acusações ao Jeca: “O Jeca não é assim; está assim”. Em grande parte, ele apontou que os problemas da população rural eram matéria de saúde pública, e não culpa do próprio Jeca.

Em fragmento intitulado “Rápido Croquis”, é tracejada uma terra gigantesca, a Jecatatuásia, ou seja, uma Ásia de Jecas. Na base da pirâmide dessa sociedade estava uma grande massa de meros puxadores de enxada. Sabendo que quase nenhum lavrador gozava de boa saúde, pode-se vislumbrar o tamanho do problema. Bem sadia e fresca, no topo da pirâmide, estava a doutorice. “Na cúspide”, escreveu Monteiro Lobato, “um bacharelismo furiosamente apetrechado de diplomas e anéis com pedras de todas as cores”. No meio, nada. “A classe fecunda, a classe obreira do progresso industrial”, inexistia. Na sua falta, o país a importava. Entre o Jeca e o doutor havia uma “cunha estrangeira”, apontou o nacionalista Lobato, que chegou a acenar contra a “invasão imigrantista”.

Ficou claro para o autor que o problema era inserir Jeca na classe produtiva. Caso contrário, na visão dele, a massa caipira seria imprestável. Mas poderia prestar, por exemplo, se conseguisse emprego numa indústria automobilística, outra frente de batalha de Lobato. “Depois que Henry Ford demonstrou como se aproveitam até cegos e aleijados, ninguém tem o direito de alegar o que não presta. Tudo presta”, sentenciou ele no livro Mister Slang e o Brasil, de 1927. “O mesmo cego, que aqui não presta para coisa nenhuma, em Detroit produz igual a um homem perfeito e ganha seis dólares diários. O brasileiro precisa de condições para prestar”.

Na época em que escreveu sobre o Jeca, no início do século XX, não havia indústria automobilística no Brasil e o personagem não iria procurar emprego. Ele era preguiçoso por ser a contrapartida do bacharelesco parasitismo dos doutores. Segundo Monteiro Lobato, enquanto a doutorice se agarrava como carrapato às tetas do Estado, os “vagabundos indisciplinados” pulavam como pulgas nas classes baixas.

Os estrangeiros eram, na opinião de Lobato, de “raça mais apta” para progredir e enriquecer. Enquanto isso, o negro, o “fator secular da movimentação agrícola”, depois que se viu sem o providencial “chicote espevitador dos seus brios”, era um peso morto, uma “quantidade negativa”. O resultado disso tudo era: quem fosse brasileiro e não pudesse ser doutor, que se assumisse como indolente. Não é à toa que um problema do qual o Jeca se ressente é o “intaliano”, seu vizinho europeu e branco, laborioso e progressista, que sua e produz, enquanto o Jeca, invejoso e acabrunhado, se acocora e pita. Mas num dia de sorte, passa por sua casa um médico. O doutor faz um diagnóstico certeiro: estava com amarelão (ancilostomíase, doença parasitária intestinal). Receitado um remédio, o médico recomendou que parasse de andar descalço. Jeca “não acreditava muito nas palavras da Ciência”, mas comprou os remédios e botinas.

Quando o médico reapareceu, ele estava saudável, produtivo e enriquecendo. O doutor explicou cientificamente o que Jeca tinha, mas o caipira era daqueles que “só vendo”. Depois de mostrar ao paciente uns “bichinhos miudíssimos” pela lupa, o médico aconselhou: “Daqui por diante, não duvide mais do que a Ciência disser”.

Enquanto o Jeca trabalhava e progredia, o vizinho estrangeiro se assombrava e largava no ar interjeições: “Per Baco!” “Per la Madonna!” O nacional Jeca, em obediência ao autor, americanizava-se. Comprou um caminhão Ford e só “pensava em melhoramentos, progressos, coisas americanas”. Finalmente, Lobato e o Jeca estavam reconciliados. A criatura se comportava como desejava seu criador, americanizado e moderno. E a criatura faria até uma superação, já que seria bem-sucedido como fazendeiro, o que o escritor não foi.

Em 1947, Lobato criou o personagem Zé Brasil. Diferente do Jeca, ele sempre trabalhou muito, mas é muito pobre e azarado. Não tem doutor para dar remédio e ainda tem um patrão cruel. Zé Brasil vivia como agregado nas terras de Tatuíra – de onde foi expulso quando o latifundiário deitou olhos gordos sobre a beleza de sua roça –, enquanto Jeca Tatu não fazia nada e era proprietário. De qualquer jeito, tudo o que se atribuía a um se dizia também do outro: vadio, indolente, sem ambição, imprestável. Ninguém reparava os males que os derrubavam: a doença, no caso do Jeca, e a exploração, no caso de Zé.

Não há doutor com quem o caipira azarado possa conversar. Mas Zé Brasil tem em Monteiro Lobato um interlocutor, como o médico do Jeca. O literato ensina, explica, esclarece ou instrui. É aí, precisamente, que Lobato deixa transparecer sua doutorice. “Se, sendo tão poucos, os Tatuíras dominam e exploram vocês, que são milhões, isso vem duma coisa só: falta de conhecimento por parte de vocês. É que vocês não sabem!” O Zé não tem esclarecimento de como as coisas são. Ambos dependem de revelações científicas, do saber médico ou do saber dos comunistas.

Mas os argumentos de Lobato sobre o homem do campo nada têm de encantador. Na Jecatatuásia, há negros tachados de vagabundos. Em Jeca Tatu, o caipira, depois de se render à Sinhá Ciência e de virar opulento fazendeiro made in America, almeja o brasileiríssimo título de coronel, que ecoa o atraso tantas vezes associado ao Brasil rural. Em Zé Brasil, o caboclo é “curado” por Prestes, que lhe é apresentado por uma voz que sabe e ensina, o próprio Lobato.

Foram duas curas bem distintas. De fato, havia um sério problema de saúde pública, e Jeca Tatu contribuiu muito para uma sociedade que, gradativamente, adotava meios de comunicação de massa. O Laboratório Fontoura chegou a imprimir centenas de milhares de exemplares do Jeca Tatu. O folheto do Jeca é tão popular que até o Zé possuía o seu exemplar em sua casinha pobre de tudo. Já a primeira edição de Zé Brasil, lançada em 1947 pela Editorial Vitória (ligada ao PCB), foi logo apreendida em batidas policiais. Zé Brasil era tão subversivo que até hoje se encontra no prontuário do escritor na polícia paulista.

Anunciar um caipira politicamente atuante, como Lobato fez com o Zé Brasil, não é uma opção nova. Em folhetos marxistas dos anos 1940, é comum o operário se dar conta de que precisa aprender o “segredo” do funcionamento da sociedade depois de ouvir a voz esclarecida da vanguarda. Ele sente o peso de sua realidade sofrida, mas não consegue refletir direito, necessitando de doutorais esclarecimentos da ciência marxista.

Às margens da Baía de Todos os Santos, estavam humildes casebres de taipa parecidos com a morada triste de Zé Brasil. Ali residia a força de trabalho, que teve um convívio com o ouro negro bem diferente da breve experiência do literato. Lobato partiu do Rio ansioso para visitar as cacimbas do poço, que foi perfurado em 1939. Cheirou, lambuzou-se e sentiu nos dedos o betume viscoso, preto e fedorento. Inebriado, levou-o num garrafão, feliz com a prova de que tinha razão, de que o Brasil tinha petróleo.

A experiência dos milhares de Zés e Jecas foi árdua e longa. Participaram, de forma criativa e valorosa, da construção de uma economia nacional desenvolvida. Viveram e criaram um mundo em alguma medida distante das doutorices alheias, com experiências que desconcertam, porque são autônomas e imprevisíveis. Sim, sempre prestaram. E para prestar não precisaram de descobertas políticas reveladas pela doutorice de ninguém. A Jecatatuásia apresenta uma realidade surpreendentemente encantadora.

Antonio Luigi Negro É Professor Da Universidade Federal Da Bahia E Autor De E Autor De “Linhas De Montagem. O Industrialismo Nacional-Desenvolvimentista E A Sindicalização Dos Trabalhadores” (Boitempo, 2004)

Saiba Mais - Bibliografia:

AZEVEDO, Carmem, CAMARGOS, Márcia, SACCHETTA, Vladimir, MONTEIRO Lobato. Furacão na Botocúndia. São Paulo: Editora Senac, 1998.

MONTEIRO LOBATO, “Rápido Croquis”. Obras Completas, v. 10. São Paulo: Brasiliense, 1957.

PASSIANI, Enio, Na trilha do Jeca: Monteiro Lobato e a formação do campo literário no Brasil. Bauru: Edusc, 2003.

Saiba Mais - Filmes:

“Jeca Tatu”, de Milton Amaral. Brasil, 1959.
“Tristeza do Jeca”, de Amácio Mazzaropi e Milton Amaral. Brasil, 1961.

Saiba Mais - Documentário:

“O Povo Brasileiro”, de Isa Ferraz. Brasil, 2005.

Revista de História da Biblioteca Nacional

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