sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Jihad e escravidão: as origens dos escravos muçulmanos da Bahia


Jihad e escravidão: as origens dos escravos muçulmanos da Bahia
Paul E. Lovejoy

Sabe-se que a configuração étnica da população baiana modificou-se significativamente nas últimas décadas do século XVIII e ao longo do seguinte, quando Hauçás, Nupes e outros povos islamizados tornaram-se comuns entre os escravos, em especial a partir dos volumosos desembarques de cativos de fala Ioruba no século XIX.1 As origens desses escravos muçulmanos podem estar relacionadas ao contexto próprio das áreas interioranas da Baía de Benin e à jihad do Xeque Usman dan Fodio (morto em 1817), fundador do Califado de Sokoto. Deste modo, este estudo examina o material biográfico disponível, em uma tentativa de oferecer subsídios adicionais acerca da comunidade muçulmana para, assim, estabelecer mais claramente as ligações entre os padrões de resistência à escravidão na Bahia, que culminaram na insurreição Malê de 1835, e o movimento da jihad no interior da Baía de Benin.
Em um estudo anterior examinei 108 indivíduos cuja escravização no interior daquela zona foi seguida de sua migração para a Bahia ou, pelo menos, tinha-se tal destino em pauta.2 A ele foram acrescentadas outras biografias, do que derivou uma amostragem agora redefinida para 117 indivíduos originários do Sudão Central (veja-se o apêndice), região interiorana em relação à Baía de Benin que compreendia zonas de savana e parte do sahel, e que caiu sob dominação do Califado de Sokoto no século XIX.
Por certo, nem todas estas pessoas desembarcaram na Bahia, e algumas acabaram em Serra Leoa, por exemplo.3 Contudo, o grau de concentração da população escrava islamizada da Bahia permite-me supor que as características dos cativos libertados em Serra Leoa, e de outros que não alcançaram o Brasil, são representativas dos padrões históricos mais amplos, transferidos para solo baiano através da jihad; embora, é claro, reinterpretados pelas condições locais.

A associação entre a jihad e a população muçulmana deslocada para o Brasil constitui-se em um tema complexo, do qual nos aproximamos aqui, como já se disse, por meio do exame das histórias de vida de indivíduos escravizados no Sudão Central. Conforme discutido em outro trabalho, a eclosão da Guerra Santa muçulmana, em 1804, sucedeu a um período de turbulências políticas que eram, em parte, caudatárias de reações à escravização de muçulmanos que alegavam ser livres, e sua exportação para as Américas.4 Contudo, longe de pôr termo à escravização e à exportação de islâmicos, aparentemente a jihad teve por efeito a disseminação do câncer do cativeiro, com freqüência vitimando pessoas que imaginavam que a submissão ao Islã poderia protegê-las da deportação para além-mar. Por outro lado, até mesmo muitos opositores da Guerra Santa que se encontravam escravizados voltaram-se para o Islã militante no Brasil, promovendo a causa revolucionária da jihad como forma de obter maior autonomia ou a liberdade. A grande extensão do Islã militante na Bahia derivava do fato de que os muçulmanos enviados para as Américas encontravam-se ali fortemente concentrados. É possível que de 100 a 150 mil escravos do Sudão Central (excluídos os Iorubas setentrionais) tenham cruzado o Atlântico entre meados do Setecentos e a primeira metade do século XIX. Tal estimativa inclui os cativos identificados como Hauçás, Nupes, Bornos, Borgus e outras designações que indicam uma origem ao norte da Iorubalândia.
De 75 a 124 mil destes escravos partiram entre 1800 e 1850, com a grande maioria dirigindo-se, sem dúvida, para o Brasil, especialmente para a Bahia.5
Os identificados como “Iorubas do norte” (i.e., Oyo, Ekiti, Yagba e Okun Ioruba) também estavam bem representados na população exportada6 e, embora ainda não seja possível calcular o número de Iorubas setentrionais, estes eram certamente numerosos. Por conseguinte, nossa análise vai além do foco mais antigo representado pelas populações Hauçá, Nupe e Borno, ainda que as estimativas da escala da migração forçada de áreas afetadas pela jihad de Sokoto não incluam os Iorubas. Com esta perspectiva mais ampla, tenta-se capturar as áreas nas quais a jihad estava sendo levada a cabo até meados do Oitocentos.
Apesar dos dados não serem conclusivos, pode-se dizer, em uma estimativa conservadora, que os escravos do Sudão Central constituíam de 10 a 15% dos escravos exportados pela Baía de Benin nas décadas de 1770 e 1780, proporção que subiu nos anos 90 e ao longo da primeira década do século XIX, com a concomitante queda do número de escravos originários de áreas costeiras.
Em termos globais, é possível que 40 ou 50 mil escravos centro-sudaneses tivessem sido exportados pelo Atlântico no século XVIII. Após este período, a proporção de cativos originários daquela região, em relação ao total de exportados através da Baía de Benin, conheceu acentuadas flutuações.
No início da década de 1810, na primeira metade dos anos 20 e durante a primeira parte da década de 30 do século XIX, quando as exportações globais da Baía de Benin foram relativamente baixas, os escravos do Sudão Central talvez representassem de 25 a 40% do total vendido. Em anos-pico de fins das décadas de 1810, 1820 e 1830, a proporção de centro-sudaneses provavelmente caiu para 15% do total das exportações daBaía de Benin.7 Nestas ocasiões, a quantidade de Iorubas era grande, em especial a de Iorubas meridionais.
As origens étnicas dos escravos do Sudão Central

A maioria dos escravos que vieram do Sudão Central, no século XVIII, chegou à Baía de Benin através de Oyo. Comerciantes muçulmanos da região sudânica eram muito ativos naquela área já na primeira década do Setecentos, quando traziam escravos, panos e marfim à costa em troca de álcool, cauris e outros bens.8 Por volta de meados do século, escravos Hauçás eram comuns em Oyo, tanto para uso doméstico quanto militar.9 Nas décadas de 1780 e 1790, à margem deste mercado doméstico, as reexportações de cativos centro-sudaneses para as Américas através de Oyo (por
meio de seus portos ao longo da “Costa dos Escravos”) parecem ter crescido, em resposta à demanda americana por fontes adicionais de cativos. De fato, Porto Novo emergiu como o principal porto de Oyo, e seu comerciante mais importante nos anos 80 e 90, Pierre Tamata, um antigo escravo de origem Hauçá que fora educado na França, chegou a viajar para o Brasil.10 Neste período, poucos cativos, se é que os havia, foram exportados do Sudão Central através da Baía de Biafra ou da Costa de Ouro.11

Matéria completa no endereço
http://www.revistatopoi.org/numeros_anteriores/Topoi01/01_artigo01.pdf

Revista Topoi - UFRJ

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