UMA CLASSE INCLASSIFICÁVEL
Só quem trabalhava era a gentinha; as pessoas de bem exerciam em todas as coisas uma atividade de direção, chamada cura ou epimeleia, que poderíamos traduzir por "governo" no sentido em que Olivier de Serres falava do governo doméstico de um domínio. Era a única atividade digna de um homem livre, pois constituía o exercício de um comando. Dizia-se isso sobre a gestão do patrimônio pelo pai de família, sobre uma missão pública confiada a um delegado e até sobre o governo imperial — pelo menos o diziam os pensadores que gostavam de imaginar o imperador como um soberano patriarcal. Pouco importava que, governando suas terras, Cipião, o Africano, tivesse manobrado pessoalmente a charrua, como Cincinato no passado: nem por isso deixava de ser o senhor. Em tal condição, constituía um mérito ser "trabalhador" enérgico; esse [pág. 130]
qualificativo, porém, indicava uma qualidade moral, não uma identidade. Quando Virgílio escreve que o trabalho triunfa sobre tudo, não diz que é a santa lei do mundo, mas que um zelo intenso rompe todos os obstáculos. Não ser preguiçoso era uma virtude nascida das necessidades; de todas as necessidades: nunca se ativar, negligenciar os amigos, os cuidados com a própria glória e com os negócios públicos é viver como uma ostra, diz Plutarco. Um alto funcionário é um homem enérgico que, da manhã à noite, passa seu ano de trabalho examinando linha por linha as contas do fisco. Não se deixar enferrujar: uma máxima de Catão, esse verdadeiro grande homem. Como vemos, é impossível encontrar um equivalente medieval ou moderno para essa classe que, na falta de termo melhor, chamamos de notáveis, nobres, middle class ou gentry; altivos como nossos nobres, universalistas como os burgueses, negocistas como eles, proprietários de terras como nossa nobreza, trabalhadores, mas considerando-se classe ociosa. E há mais. No mundo romano não encontramos a equivalência que nos é familiar entre classes sociais e atividades econômicas; não existiu burguesia romana porque a classe que possuía o solo também realizava, sem se vangloriar, atividades mais burguesas; se procurarmos em Roma uma classe de negociantes, fabricantes, especuladores, usurários, agricultores em geral, nós a encontraremos em toda parte: entre os libertos, entre os cavaleiros e também entre os notáveis municipais e entre os senadores. Para saber se Catão, o Velho, participava do comércio marítimo ou se tal família de grandes notáveis municipais fazia negócios até nas fronteiras do Danúbio, precisamos investigar não a classe social a que pertencem, mas seus caprichos individuais e também a geografia, pois as heterogeneidades pessoais e regionais eram consideráveis; o senador Catão, por seu turno, "investiu capitais em negócios sólidos e seguros: comprou lagos piscosos, fontes de água termal, terrenos para instalar estabelecimentos de pisoeiros, fábricas de resina, terras com prados naturais e florestas; também praticou o empréstimo marítimo, que é a mais execrada forma de usura: consistia em formar uma [pág. 131]
companhia de cerca de cinquenta pessoas e tomar uma parte de capital por intermédio de seu liberto Quintio". A essas iniciativas pessoais devemos acrescentar as tradições locais; tal cidade vive encerrada em si mesma e não passa de um amontoado de camponeses, como vemos hoje no sul da Itália ou na Hungria; mas, a vinte quilômetros, a cidade de Aquileia é uma Veneza ou uma Gênova da Antiguidade, tem como notáveis negociantes marítimos e mantém relações com o extremo do mundo.
Posse de terra, investimentos individuais, empresas familiares: nesse povo tão ávido de ganho, precisamos levar em conta ainda a empresa ocasional, praticada pelos mais ricos e não pelos pequenos comerciantes; se um nobre romano é informado pelos amigos de que há um modo de ganhar muito dinheiro, imediatamente se põe a agir, mesmo que deva improvisar em tal negócio e nunca tenha praticado esse gênero de tráfico: agarrará a oportunidade que uma informação confidencial lhe fornece ou encarregará disso um de seus escravos. A falta de mercado geral multiplicava as oportunidades de realizar tais negócios, assim como a circulação sofrível de informação e a importância dos apoios políticos: havia, na classe dirigente e proprietária, uma cumplicidade de especuladores que tinham por privilégios a informação e a influência, mais poderosas que as leis do mercado. A economia patrimonial não era precisamente patriarcal e muito menos liberal.
A natureza das atividades econômicas depende evidentemente da riqueza, mas, em lugar de se especializar em classes sociais, varia de acordo com os indivíduos, os lugares e os momentos. Por fim, como saber de que se compunha a fortuna de um romano? Duas hipóteses. Suponhamos que Juvenal fale satiricamente de um boiadeiro, que o jovem Virgílio zombe de um muleteiro; não devemos concluir disso que o primeiro tocasse os bois com a própria mão e o segundo puxasse uma mula pela rédea: a sequência do texto prova que um dirigia uma empresa de serviços de transporte feito com mulas pelos caminhos lamacentos da planície do Pó e o outro era proprietário de vastos rebanhos. Assim também, M. de Charlus, desdenhoso da [pág. 132] burguesa América, falava da sra. Singer como de uma mulher que com as próprias mãos fabricava máquinas de costura. Se o boiadeiro em questão tivesse apenas um boi ou dois, os textos nem falariam dele, pelo menos não para caçoar.
Só quem trabalhava era a gentinha; as pessoas de bem exerciam em todas as coisas uma atividade de direção, chamada cura ou epimeleia, que poderíamos traduzir por "governo" no sentido em que Olivier de Serres falava do governo doméstico de um domínio. Era a única atividade digna de um homem livre, pois constituía o exercício de um comando. Dizia-se isso sobre a gestão do patrimônio pelo pai de família, sobre uma missão pública confiada a um delegado e até sobre o governo imperial — pelo menos o diziam os pensadores que gostavam de imaginar o imperador como um soberano patriarcal. Pouco importava que, governando suas terras, Cipião, o Africano, tivesse manobrado pessoalmente a charrua, como Cincinato no passado: nem por isso deixava de ser o senhor. Em tal condição, constituía um mérito ser "trabalhador" enérgico; esse [pág. 130]
qualificativo, porém, indicava uma qualidade moral, não uma identidade. Quando Virgílio escreve que o trabalho triunfa sobre tudo, não diz que é a santa lei do mundo, mas que um zelo intenso rompe todos os obstáculos. Não ser preguiçoso era uma virtude nascida das necessidades; de todas as necessidades: nunca se ativar, negligenciar os amigos, os cuidados com a própria glória e com os negócios públicos é viver como uma ostra, diz Plutarco. Um alto funcionário é um homem enérgico que, da manhã à noite, passa seu ano de trabalho examinando linha por linha as contas do fisco. Não se deixar enferrujar: uma máxima de Catão, esse verdadeiro grande homem. Como vemos, é impossível encontrar um equivalente medieval ou moderno para essa classe que, na falta de termo melhor, chamamos de notáveis, nobres, middle class ou gentry; altivos como nossos nobres, universalistas como os burgueses, negocistas como eles, proprietários de terras como nossa nobreza, trabalhadores, mas considerando-se classe ociosa. E há mais. No mundo romano não encontramos a equivalência que nos é familiar entre classes sociais e atividades econômicas; não existiu burguesia romana porque a classe que possuía o solo também realizava, sem se vangloriar, atividades mais burguesas; se procurarmos em Roma uma classe de negociantes, fabricantes, especuladores, usurários, agricultores em geral, nós a encontraremos em toda parte: entre os libertos, entre os cavaleiros e também entre os notáveis municipais e entre os senadores. Para saber se Catão, o Velho, participava do comércio marítimo ou se tal família de grandes notáveis municipais fazia negócios até nas fronteiras do Danúbio, precisamos investigar não a classe social a que pertencem, mas seus caprichos individuais e também a geografia, pois as heterogeneidades pessoais e regionais eram consideráveis; o senador Catão, por seu turno, "investiu capitais em negócios sólidos e seguros: comprou lagos piscosos, fontes de água termal, terrenos para instalar estabelecimentos de pisoeiros, fábricas de resina, terras com prados naturais e florestas; também praticou o empréstimo marítimo, que é a mais execrada forma de usura: consistia em formar uma [pág. 131]
companhia de cerca de cinquenta pessoas e tomar uma parte de capital por intermédio de seu liberto Quintio". A essas iniciativas pessoais devemos acrescentar as tradições locais; tal cidade vive encerrada em si mesma e não passa de um amontoado de camponeses, como vemos hoje no sul da Itália ou na Hungria; mas, a vinte quilômetros, a cidade de Aquileia é uma Veneza ou uma Gênova da Antiguidade, tem como notáveis negociantes marítimos e mantém relações com o extremo do mundo.
Posse de terra, investimentos individuais, empresas familiares: nesse povo tão ávido de ganho, precisamos levar em conta ainda a empresa ocasional, praticada pelos mais ricos e não pelos pequenos comerciantes; se um nobre romano é informado pelos amigos de que há um modo de ganhar muito dinheiro, imediatamente se põe a agir, mesmo que deva improvisar em tal negócio e nunca tenha praticado esse gênero de tráfico: agarrará a oportunidade que uma informação confidencial lhe fornece ou encarregará disso um de seus escravos. A falta de mercado geral multiplicava as oportunidades de realizar tais negócios, assim como a circulação sofrível de informação e a importância dos apoios políticos: havia, na classe dirigente e proprietária, uma cumplicidade de especuladores que tinham por privilégios a informação e a influência, mais poderosas que as leis do mercado. A economia patrimonial não era precisamente patriarcal e muito menos liberal.
A natureza das atividades econômicas depende evidentemente da riqueza, mas, em lugar de se especializar em classes sociais, varia de acordo com os indivíduos, os lugares e os momentos. Por fim, como saber de que se compunha a fortuna de um romano? Duas hipóteses. Suponhamos que Juvenal fale satiricamente de um boiadeiro, que o jovem Virgílio zombe de um muleteiro; não devemos concluir disso que o primeiro tocasse os bois com a própria mão e o segundo puxasse uma mula pela rédea: a sequência do texto prova que um dirigia uma empresa de serviços de transporte feito com mulas pelos caminhos lamacentos da planície do Pó e o outro era proprietário de vastos rebanhos. Assim também, M. de Charlus, desdenhoso da [pág. 132] burguesa América, falava da sra. Singer como de uma mulher que com as próprias mãos fabricava máquinas de costura. Se o boiadeiro em questão tivesse apenas um boi ou dois, os textos nem falariam dele, pelo menos não para caçoar.
História da vida privada, 1: do Império Romano ao ano mil / organização Paul Veyne ; tradução Hildegard Feist; consultoria editorial Jonatas Batista Neto. — São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
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