segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Conquista às avessas


Conquista às avessas
O abade francês Jean Paulmier se declarou descendente do primeiro índio a morar na França
Jean Leblond

Como troféus, muitos índios foram levados da América do Sul para a Europa ao longo do século XVI. Mas nem todos retornaram às suas terras de origem. Alguns não sobreviveram às intempéries da viagem ou à agitação da estadia. Outros permaneceram no Velho Continente, como Essomericq, que pode ter sido o primeiro índio brasileiro a viajar para a França, em 1505. A veracidade de sua história permanece em aberto desde o século XVII.

O nativo é mencionado pela primeira vez na segunda edição póstuma do livro História da Grande Ilha de Madagascar (1661), do administrador colonial Etienne de Flacourt (1607-1660). O autor descreve a viagem de Binot Paulmier, capitão de Gonneville, que partiu de Honfleur em maio de 1503 em direção às Índias Orientais. Devido a uma tempestade nas proximidades do Cabo da Boa Esperança, chegou a uma terra austral (ou seja, no hemisfério sul) desconhecida pelos franceses e habitada por indígenas, onde passou cerca de seis meses.

No ano seguinte, o capitão retornou à França levando Essomericq, filho de um chefe indígena, com a promessa de devolvê-lo após “vinte luas”, mas o índio nunca voltou. Foi batizado com o nome Binot I Paulmier e casado com uma parenta do capitão. Flacourt menciona informações sobre os descendentes do índio, entre eles um bisneto, o abade Jean Paulmier (1627-1673), cônego da Catedral de Lisieux.

Em 1663, o padre publicou um livro sobre Essomericq com as mesmas informações narradas por Flacourt. No volume, dirigido ao papa Alexandre VII (1599-1667), Paulmier foi além da descrição do índio: reivindicava a criação de uma missão de evangelização nas terras descobertas por Gonneville. Ele justificava seu direito de representá-la não só por ser um sacerdote, mas por descender de um nativo daquele lugar.

De 1664 a 1669, o projeto da missão foi analisado tanto em Roma, pelo papa e pela Sagrada Congregação para a Propagação da Fé, como na França, por Jean-Baptiste Colbert (1619-1683), controlador geral das finanças de Luís XIV. A partir de 1670, não há mais notícias da proposta.

Após a morte do cônego, em 1673, várias expedições tentaram descobrir a terra de Gonneville. Mas como faltava precisão às informações fornecidas por Flacourt e Paulmier, nunca foi possível definir com clareza o local onde o capitão passara seis meses.

Em 1847, foram descobertas, no Ministério da Marinha, em Paris, cinco cartas de um certo barão de Gonneville dirigidas ao ministro. Na primeira, de 1783, ele propunha fornecer informações sobre a rota seguida pelo parente capitão de Gonneville em 1503, a partir de documentos de família. Na segunda carta, a rota foi descrita.

O achado foi comunicado ao geógrafo Armand d’Avezac (1798-1875), que supôs que a terra descrita fosse o Brasil, talvez a área que corresponde hoje ao estado do Espírito Santo. A hipótese indicava a terra natal de Essomericq, que foi então considerado o primeiro índio brasileiro a conhecer e fixar moradia na França.

Poucos anos depois, foi descoberta na Biblioteca do Arsenal de Paris uma cópia manuscrita de uma cópia autenticada do relatório de viagem de Gonneville, depositado por ele próprio no almirantado de Rouen ao retornar à França em 1505. Embora o documento não faça referência à costa brasileira, d’Avezac continuou a apontar o Brasil como a terra encontrada por Gonneville, alterando apenas o local: em vez do Espírito Santo, Gonneville teria estado em São Francisco do Sul, em Santa Catarina.

A localização foi aceita pela maioria dos historiadores até 1993, quando um pesquisador francês, Jacques Lévêque de Pontharouart, mudou o foco da controvérsia. Ele publicou um artigo, seguido de um livro, afirmando que o abade Paulmier teria inventado a viagem do capitão e fabricado o relatório. Em meados do século XVII, geógrafos e navegadores acreditavam na existência de um continente das terras austrais que ainda não havia sido descoberto. Seria do interesse do cônego assegurar o domínio francês sobre esse território e provar sua ascendência indígena para justificar o projeto de evangelização.

Um dos argumentos de Lévêque é o fato de todas as informações sobre a viagem de Gonneville provirem, direta ou indiretamente, do abade Paulmier. Mesmo os dados encontrados no livro de Flacourt teriam sido fruto do diálogo entre os dois, que se frequentavam em 1658. Para Lévêque, o relatório de viagem não passava de uma simples cópia e não poderia ter sido escrito em 1505, pois data de 1582 a obrigação imposta aos capitães de escrever sobre cada expedição após o retorno. O texto também faz menção a elementos como os mosquetes, armas presentes nas embarcações somente após 1525.

Lévêque observou ainda que o relatório apresenta palavras que não existiam ou que tinham uma grafia diferente no início do século XVI. Ele também apontou a semelhança entre algumas passagens do documento e trechos de obras publicadas posteriormente – como História de uma viagem feita à terra do Brasil, de Jean de Léry, de 1578, ou Hidrografia, de Georges Fournier, de 1643.

Mas a argumentação de Lévêque pode ser refutada, considerando que a ortografia era muito instável naquela época e o vocabulário dos relatos de viagens diverge de uma região para outra e de um tabelião para outro. Em relação à semelhança entre o relatório de Gonneville e os textos de outros autores, viajantes diferentes às vezes descrevem suas experiências com o mesmo vocabulário ou usam comparações idênticas.

É possível que a família do abade seja realmente descendente de um indígena, porque as informações genealógicas que puderam ser verificadas confirmam o que foi dito por Paulmier. Vários documentos do período de 1543 a 1622 permitem identificar os filhos do bisavô do abade. Embora os descendentes atuais de Essomericq, ou Binot I Paulmier, não tenham encontrado registro oficial que prove de onde veio o índio e como chegou à França, há indícios de que ele existiu.

Já a descendência indígena é fácil de ser comprovada hoje em dia. Como o cromossomo Y dos ameríndios possui um marcador específico, seria interessante propor um teste de DNA aos descendentes do abade e aos franceses que têm o sobrenome Brasil.

Jean Leblond é estatístico e membro da Société Historique de Lisieux.

Saiba Mais - Bibliografia:

PERONNE-MOYSÉS, Leyla. Vinte Luas: viagem de Paulmier de Gonneville ao Brasil 1503-1505. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

PAULMIER, abbé Jean. Mémoires touchant l’établissement d’une mission chrestienne dans le troisième monde (1664). Edition critique, établie, présentée et annotée par Margaret Sankey. Paris: Honoré Champion, 2006.

LÉVÊQUE DE PONTHAROUART, Jacques. Paulmier de Gonneville: son voyage imaginaire. Cahors: Imprimerie France-Quercy, 2000.

Revista de História da Biblioteca Nacional

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