O DIREITO ROMANO EXISTE?
Esqueçamos tais tempestades. Em época normal, os costumes romanos são traduzidos com bastante exatidão pelo direito civil, cujo cordão umbilical com a moral vigente nunca foi realmente cortado; a técnica desse direito, mais verbal que conceituai e ainda menos dedutiva, permitia a seus profissionais entregar-se a exercícios de virtuosismo. Tal direito realmente permitia obter justiça? Fazia respeitar as regras do jogo quando os indivíduos as violavam para oprimir o próximo? Numa sociedade tão desigual, desigualitária e atravessada por redes de [pág. 152]
clientelas, não é necessário dizer que os direitos mais formais não eram reais e que um fraco pouco tinha a ganhar processando os poderosos. E mais: mesmo quando não era violada, a justiça abria vias legais eficazes para obter o cumprimento do direito? Bastará um exemplo, no qual veremos que o poder público organiza a vendeta privada e não faz nada para impedi-la. Suponhamos que um devedor não quer pagar o dinheiro que tomou emprestado; ou ainda que temos como única fortuna um pequeno sítio, ao qual nos apegamos porque nossos ancestrais ali viveram ou porque a região é agradável. Um poderoso vizinho cobiça nosso bem; à frente de seus escravos armados, invade a propriedade, mata nossos escravos que tentavam nos defender, nos mói de pancadas, nos expulsa e se apodera do sítio como se lhe pertencesse. O que fazer? Um moderno diria: apresentar queixa ao juiz (litis denuntiatio), obter justiça e recuperar nosso bem através da autoridade pública (manu militari). Sim, as coisas serão mais ou menos assim no final da Antiguidade, quando os governantes de província terão finalmente feito triunfar em todas as coisas seu ideal de coerção pública. Mas, na Itália dos dois ou três primeiros séculos de nossa era, a situação era diferente.
A agressão de nosso poderoso vizinho constitui um delito puramente civil e não implica coerção penal; cabe-nos, pois, garantir o comparecimento do adversário perante a justiça; para isso precisamos agarrar esse indivíduo no meio de seus homens, arrastá-lo e acorrentá-lo em nossa prisão privada até o dia do julgamento. Se não pudermos levá-lo à presença do juiz, não haverá processo (litis contestatio). Mas conseguimos e, graças à intervenção de um homem poderoso que nos aceitou Domo cliente, obtivemos justiça: a sentença diz que o direito está a nosso favor; nada mais nos resta senão executar pessoalmente a sentença, desde que tenhamos os meios. Trata-se aparentemente de lutar para reaver a terra de nossos ancestrais? Não. Por uma bizarrice inexplicável, um juiz não pode condenar um acusado a simplesmente restituir a coisa roubada. Abandonando nosso sítio à própria sorte, ele nos autorizará a [pág. 153]
tomar posse de todos os bens e domínios de nosso adversário, que venderemos em leilão; guardaremos uma soma de dinheiro igual ao valor que o juiz atribuiu ao sítio (aestimatio) e entregaremos o restante a nosso adversário.
Quem, pois, podia se dar ao trabalho de recorrer a uma justiça que se parecia tão pouco com um árbitro encarregado de sancionar as faltas cometidas na luta social? Provavelmente duas categorias de pessoas. Poderosos personagens obstinados que disputam uma terra querem ter razão e levar sua querela ao público, numeroso, que acompanha o processo com a paixão dos romanos pela trapaça ou o gosto literário da eloquência judiciária; esvaziarão sua disputa perante o tribunal, assim como em outras épocas a esvaziariam no campo fechado de um duelo diante de suas testemunhas. Ou ainda um credor processará um devedor faltoso que não oferece resistência; apoderar-se-á dele após um jogo de esconde-esconde: o jurista Ulpiano nos fala do devedor que evita aparecer na praça do mercado para não encontrar seu credor; se o vê, logo se esconde atrás das colunas do pátio que rodeia a praça ou atrás de uma das barracas que o recobrem. O direito não era, portanto, senão um dos golpes possíveis na luta social, e algumas pessoas podiam até suplicar que não o descarregassem contra elas. "Nunca um jurisconsulto nesse caso" (Júris consultus abesto).
O direito é uma estratégia, mas também uma das matérias da velha cultura romana; recorrer à via judiciária e seguir o direito civil em seus meandros mais doutos constitui uma conduta refinada. Um exemplo. Em teoria uma romana não pode comparecer perante a justiça sem um representante masculino (porém essa obrigação caiu em desuso); uma habitante não-romana do Império — grega ou egípcia — pode ainda menos. E no entanto verificamos nos papiros que frequentemente ela comparece perante a justiça sem um representante masculino. Então, qual é a regra? É forçoso reconhecer que não existe regra. Verificamos também que algumas romanas inutilmente tomam um representante que poderiam muito bem dispensar: se não existe regra, há elegâncias judiciárias, até pedantismos. [pág. 154]
Esse direito secretamente desconcertante apresenta também alguns remanescentes de justiça popular e privada. Ainda sob o Império, não era raro o espetáculo dessa justiça de rua. O meio mais simples de obrigar um devedor a pagar consistia em surpreendê-lo fora de sua casa e "fazer uma gritaria" (convicium): o credor seguia-o cobrindo-o de insultos ou cantando-lhe uma canção zombeteira em cujo refrão reclamava a dívida; os juristas só exigiam que não se despisse totalmente o devedor e que as palavras da canção não fossem obscenas: devia-se respeitar a coletividade tomada como testemunha. Por seu turno, o devedor tentava comover a opinião; vestia-se de luto e não cortava mais os belos em sinal de total desolação.
O medo da opinião pública desempenhava um grande papel na vida privada, da qual o povo se considerava legítimo juiz. Nas cidades pequenas, a algazarra o provava ao recalcitrante: a multidão apoderava-se dele, empoleirava-o num carro fúnebre e, chorando e rindo, acompanhava o cortejo do falso morto antes de deixá-lo fugir. Também insultava os verdadeiros mortos se seu testamento não fosse aprovado pela consciência pública. Fazia a mesma coisa com os herdeiros que por avareza não lhe ofereciam, em memória do defunto, as lutas de gladiadores às quais ela julgava ter direito ao morrer um notável: num vilarejo da Ligúria a plebe deteve em praça pública o cortejo de um ex-oficial que a família só pôde levar à pira depois de prometer um espetáculo fúnebre
PUBLICIDADE DA TUMBA
Pois existe um direito de todos sobre a conduta de cada um. Notável, plebeu e até senador, um romano não pode ter intimidade pessoal; todos podem se dirigir a todos e julgar a todos; todo mundo se conhece, ou tal presume. O menor particular pode, portanto, dirigir-se ao "público", que, afinal, não passa de determinado número de particulares como ele. Pode, por exemplo, fazer graça para divertir a plateia: todos são cúm- [pág. 155]
plices. Hoje em dia conhecemos o humor dos célebres grafites de Nova York, através dos quais qualquer indivíduo revela aos transeuntes e aos passageiros do metrô suas ideias, seus amores ou simplesmente seu nome e sua existência, escrevendo nas paredes tudo que lhe passa pela cabeça. Fazia-se a mesma coisa em Pompeia: as paredes dessa cidadezinha entre outras estão cobertas de grafites traçados pelos transeuntes que queriam divertir outros transeuntes dando-lhes algo para ler.
Curiosamente, idêntica publicidade triunfava também no que é o equivalente antigo de nossos cemitérios: a beira de estrada, que não pertencia a ninguém, e era ali, na saída das cidades, que se erguiam os túmulos. Tão logo cruzava a porta da cidade, o viajante passava entre duas fileiras de sepulturas que procuravam chamar-lhe a atenção. A tumba não se dirige à família, ou aos próximos, mas a todos. Pois a cova, embaixo da terra, era uma coisa, objeto de homenagens fúnebres que a família anualmente prestava ao defunto; a tumba com epitáfio era outra coisa: destinava-se aos passantes. Não vamos raciocinar sobre a enganosa analogia dos epitáfios modernos, essas celebrações sem destinatário que falam diante do céu. Os epitáfios romanos diziam: "Lê, transeunte, qual foi meu papel neste mundo. […] E agora que me leste, boa viagem. — Salve, tu também." (pois a resposta do transeunte está gravada na pedra). Testemunhos comprovam que quando um antigo queria ler um pouco, bastava-lhe caminhar até uma das saídas da cidade; era menos difícil ler um epitáfio que a escrita cursiva de um livro. Deixo de lado um fato mais tardio, as necrópoles e também as catacumbas pagãs.
As vias de saída das cidades, com sua dupla fileira de cartazes funerários, se assim ousamos dizer, fazem vagamente pensar numa exposição de publicidade funerária de alguma Broadway do além; certos epitáfios procuram atrair a atenção do transeunte entre seus vizinhos; oferecem-lhe um campo de esporte e repouso, a sua disposição no recinto fúnebre. E todos falam não da dor dos íntimos, mas do papel social do defunto e de sua fidelidade aos deveres para com os seus, que os epitáfios [pág. 156]
atestam para o passante, a quem compete julgar. Conversar com alguém durante um jantar sobre seu futuro sepulcro não significava, pois, passar-lhe ideias fúnebres; tratava-se, antes, de garantir que sua dignidade e suas virtudes ficariam publicamente asseguradas; depois de beber, o interessado nem sempre hesitava em ler seu epitáfio, elaborado por ele mesmo e com tanto cuidado como se fosse seu testamento. Uma cidade não podia agradecer melhor a um benfeitor público do que especificando as honras oficiais que enalteceriam seus funerais; uma dama teve assim a alegria de saber que seus concidadãos dariam açafrão (então um perfume muito apreciado) para perfumar a pira funerária por ocasião da cremação.
Os arqueólogos encontraram uma centena de milhares de epitáfios, e MacMullen notou que sua multiplicação fora moda, alcançando o auge a partir do século I para extinguir-se pouco a pouco a partir do século III. Como se surpreender? Eles não derivam de uma ideia elementar da morte, mas de um reinado da palavra pública e do controle público e não se restringem aos grandes: os simples particulares, se não eram personagens públicos, pelo menos viveram em público, aos olhos de seus semelhantes. Por isso mesmo ocorre-lhes deixar ao público alguma mensagem tanto no epitáfio como no testamento: "Vivi avaramente o tanto que me foi dado viver, por isso vos aconselho a gozar os prazeres mais do que eu. Assim é a vida: chegamos aqui, e não mais longe. Amar, beber, ir aos banhos, essa é a verdadeira vida: depois não há mais nada. Nunca segui os conselhos de um filósofo. Desconfiai dos médicos, foram eles que me mataram". O morto tira a lição de sua vida para os vivos e as raras menções a um além — que receberam muita atenção dos historiadores influenciados pelo cristianismo — desconhecem a função pública da tumba antiga. Pois o epitáfio exerce, quando é o caso, um papel de censura; o defunto expõe à execração pública aqueles que lhe deram motivos de queixa. Um patrono amaldiçoa, como se fazia nos testamentos, um liberto ingrato, trata-o de salteador de estrada; um pai informa a todos que deserdou uma filha indigna; uma mãe atribui a morte de seu bebê aos malefícios de uma [pág. 157]
envenenadora. Para nós, gravar esse tipo de coisa num túmulo equivaleria a macular a majestade da morte. Mas os romanos não lavavam roupa suja em casa: faziam limpeza pública. Em Pompeia, na estrada de Nocera, um epitáfio entrega um amigo ingrato à ira dos deuses do céu e dos infernos.
História da vida privada, 1: do Império Romano ao ano mil / organização Paul Veyne ; tradução Hildegard Feist; consultoria editorial Jonatas Batista Neto. — São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
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