segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

CIDADES MORTAS

CIDADES MORTAS
Monteiro Lobato
12/01/2007

Crônica escrita em 1906 e publicada pela primeira vez, em 1919, na Revista do Brasil, de propriedade do autor, com o subtítulo 'Contos e Impressões'. Republicada, em livro, na coletânea Cidades Mortas¹. Disponível online, em 8 de dezembro de 2006, no endereço www.ige.unicamp.br/~lrdg/exploracao/cidadesmortas. Reproduzido com a grafia original².

Monteiro Lobato (1882-1948).
Imagem:
www.lusofonas.pt

A quem em nossa terra percorre tais e tais zonas, vivas outróra, hoje mortas, ou em via disso, tolhidas de insanavel caqueixa, uma verdade, que é um desconsolo, ressurte de tantas ruinas: nosso progresso é nomade e sujeito a paralisias subitas. Radica-se mal. Conjugado a um grupo de fatores sempre os mesmos, reflue com eles duma região para outra. Não emite peão. Progresso de cigano, vive acampado. Emigra, deixando atrás de si um rastilho de taperas.

Capa da primeira edição.
Imagem: Internet

A uberdade nativa do solo é o fator que o condiciona. Mal a uberdade se esvai, pela reiterada sucção de uma seiva não recomposta, como no velho mundo, pelo adubo, o desenvolvimento da zona esmorece, foge dela o capital – e com ele os homens fortes, aptos para o trabalho. E lentamente cai a tapera nas almas e nas coisas.

Em S. Paulo temos perfeito exemplo disso na depressão profunda que entorpece boa parte do chamado Norte.

Ali tudo foi, nada é. Não se conjugam verbos no presente. Tudo é pretérito.

Zé Brasil, por Percy Deane.
Imagem: lobato.globo.com

Umas tantas cidades moribundas arrastam um viver decrepito, gasto em chorar na mesquinhez de hoje as saudosas grandezas de dantes.

Pelas ruas ermas, onde o transeunte é raro, não matracoleja sequer uma carroça; de ha muito, em materia de rodas se voltou aos rodizios desse rechinante simbolo do viver colonial – o carro de boi. Erguem-se por ali soberbos casarões apalaçados, de dois e três andares, solidos como fortalezas, tudo pedra, cal e cabiuna; casarões que lembram ossaturas de megateiros donde as carnes, o sangue, a vida, para sempre refugiram.

Vivem dentro, mesquinhamente, vergonteas mortiças de familias fidalgas, de boa prosapia entroncada na nobiliarquia lusitana. Pelos salões vazios, cujos frisos dourados se recobrem de patina dos anos e cujo estuque, lagarteado de fendas, esboroa à força de goteiras, paira o bafio da morte. Ha sobre os aparadores Luis XV bronzeos candelabros de dezoito velas, esverdecidos de azinhavre. Mas nem se acendem as velas, nem se guardam os nomes dos enquadrados – e por tudo se agruma o bolor rancido da velhice.

São os palacios mortos da cidade morta.

Sr. Joaquim dos Santos e família, últimos moradores de Corredeira-SP.
Expedição aos rios Feio e Aguapehy, 1905.
Imagem:
www.ige.unicamp.br

Avultam em numero, nas ruas centrais, casas sem janelas, só portas, tres e quatro: antigos armazens hoje fechados, porque o comércio desertou também. Em certa praça vazia, vestígios vagos de "monumento" de vulto: o antigo teatro – um teatro onde já ressoou a voz da Rosina Stolze, da Candiani...

Não ha na cidade exangue em pedreiros, nem carapinas; fizeram-se estes remendões; aqueles, meros demolidores – tanto vai da ultima construção. A tarefa se lhes resume em esperar muros que deitam ventres, escorar paredes rachadas e remenda-las mal e mal. Um dia metem abaixo as telhas: sempre vale trinta mil réis o milheiro – e fica à inclemencia do tempo o encargo de aluir o resto.

Os ricos são dois ou tres forretas, coroneis da Briosa, com cem apolices a render no Rio; e os sinecuristas acarrapatados ao orçamento: juiz, coletor, delegado. O resto é a "mob": velhos mestiços de miseravel descendencia, roidos de opilação e alcool; familias decaidas, a viverem misteriosamente umas, outras à custa do parco auxilio enviado de fora por um filho mais audacioso que emigrou. "Bôa gente", que vive de aparas.

Jeca Tatuzinho, por Belmonte.
Imagem: lobato.globo.com

Da geração nova, os rapazes debandam cedo, quase meninos ainda; só ficam as moças – sempre fincadas de cotovelos à janela, negaceando um marido que é um mito em terra assim, donde os casadouros fogem. Pescam, às vezes, as mais jeitosas, o seu promotorzinho, o seu delegadozinho de carreira – e o caso vira prodigioso acontecimento historico, criador de lendas.

Toda a ligação com o mundo se resume no cordão umbilical do correio – magro estafeta bifurcado em ponteagudas eguas pisadas, em eterno ir e vir com duas malas postais à garupa, murchas como figos secos.

Até o ar é proprio; não vibram nele fonfons de auto, nem cornetas de bicicletas, nem campainhas de carroça, nem pregões de italianos, nem ten-tens de sorveteiros, nem plás-plás de mascates sirios. Só os velhos sons coloniais – o sino, o chilreio das andorinhas na torre da igreja, o rechino dos carros de boi, o cincerro de tropas raras, o taralhas das baitacas que em bando rumorosos cruzam e recruzam o céu.

Jeca Tatu, por Belmonte.
Imagem: lobato.globo.com

Isso, nas cidades. No campo não é menor a desolação. Leguas a fio se sucedem de morraria aspera, onde reinam soberanos a sauva e seus aliados, o sapé e a samambaia. Por ela passou o Café, como um Atila. Toda a seiva foi bebida e, sob forma de grão, ensacada e mandada para fóra. Mas do ouro que veiu em troca nem uma onça permaneceu ali, empregada em restaurar o torrão. Transfigurou-se para o Oeste, na avidez de novos assaltos à virgindade da terra nova; ou se transfez nos palacetes em ruina; ou reentrou na circulação europeia por mão de herdeiros dissipados.

Á mãe fecunda que o produziu nada coube; por isso, ressentida, vinga-se agora, enclausurando-se numa esterelidade feroz. E o deserto lentamente retoma as posições perdidas.

Raro é o casebre de palha que fumega e entremostra em redor o quartelzinho de cana, a rocinha de mandioca. Na mór parte os escassissimos existentes, descolmados pelas ventanias, esburaquentos, afestoam-se do melão de São Caetano – a hera rustica das nossas ruinas.

Jeca Tatu, por Kurt Wiese.
Imagem: lobato.globo.com

As fazendas são Escoriais de soberbo aspecto vistas de longe, entristecidas quando se lhes chega ao pé. Ladeando a Casa Grande, senzalas vazias e terreiros de pedra com viçosas guanxumas nos intersticios. O dono está ausente. Mora no Rio, em São Paulo, na Europa. Cafezais extintos. Agregados dispersos. Subsistem unicamente, como lagartixas na pedra, um pugilo de caboclos opilados, de esclerotica biliosa, inermes, incapazes de fecundar a terra, incapazes de abandonar a querencia, verdadeiros vegetais de carne que não florescem nem frutificam – a fauna cadaverica de ultima fase a roer os derradeiros capões de café escondidos nos gortões.

– Aqui foi o Breves. Colhia oitena mil arrobas !...

A gente olha assombrada na direção que o dedo cicerone aponta. Nada mais !... A mesma morraria nua, a mesma sauva, o mesmo sapé de sempre. De banda a banda, o deserto – o tremendo deserto que o Atila Café criou.

Outras vezes o viajante lobriga ao longe, rente ao caminha, uma ave branca pousada no topo dum espeque. Aproxima-se de vagar ao chouto ritmico do cavalo; a ave esquisita não dá sinais de vida; permanece imovel. Chega-se inda mais, franze a testa, apura a vista. Não é ave, é um objeto de louça... O progresso cigano, quando um dia levantou acampamento dali, rumo Oeste, esqueceu de levar consigo aquele isolador de fios telegráficos... E lá ficará ele, atestando mudamente uma grandeza morta, até que decorram os muitos decenios necessarios para que a ruina consuma o rijo posto de "candeia" ao qual o amarraram um dia – no tempo feliz em que Ribeirão Preto era ali...

Zé Brasil, por Portinari.
Imagem: lobato.globo.com

NOTAS DO EDITOR

1. Para uma análise do livro Cidades Mortas, ver o artigo "Um Diálogo com Monteiro Lobato", de Margareth Yayo Gimbo Melero e Maria Alice Oliva de Oliveira, disponível online no portal Imaginário: www.imaginario.com.br/artigo/a0031_a0060/a0058-03.

2. Para uma ligeira nota sobre a ortografia de Monteiro Lobato, ver www.ige.unicamp.br/~lrdg/exploracao/notaortografica, onde se lê: "Monteiro Lobato pensa em tudo por si próprio. Muito antes de oficializada a atual ortografia, já ele tinha reagido contra a etimológica – e agora reage contra os acentos. Em tudo quanto escreve, e nas traduções, não usa acentos, afora os antigos. Qual a razão dessa ojeriza ? Interpelamo-lo e a sua resposta merece menção. (...)"

Revista Vivercidades

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