sábado, 27 de fevereiro de 2010

Pesquisadores descobrem o cocô humano mais antigo das Américas


Pesquisadores descobrem o cocô humano mais antigo das Américas
Excremento ancestral tem 14 mil anos e foi encontrado em caverna do Oregon (EUA).
Achado prova que tribos chegaram ao continente antes da chamada cultura Clovis.

Reinaldo José Lopes
Do G1, em São Paulo

Não é exatamente o legado que todo mundo gostaria de deixar para a posteridade, mas pelo menos é uma prova indiscutível de que seres humanos o produziram. Estamos falando de fezes com cerca de 14 mil anos de idade, produzidas -- sabe-se lá em que circunstâncias -- por alguns dos primeiros caçadores-coletores a colonizar o continente americano. O achado prova, além de qualquer sombra de dúvida, que os mais antigos moradores das Américas chegaram aqui antes da chamada cultura Clovis, por muito tempo considerada a mais antiga do continente.


Fezes de 14 mil anos têm consistência de biscoito, dizem cientistas (Foto: Divulgação)

A descoberta -- escatológica, mas um bocado importante -- será publicada numa edição futura da revista "Science", mais importante publicação científica dos Estados Unidos. Os pesquisadores, liderados por Tom Gilbert, da Universidade de Copenhague (Dinamarca), não só conseguiram estabelecer a data dos excrementos como extraíram DNA deles. O resultado do teste genético revelou a presença de DNA típico dos indígenas modernos -- aparentemente, seus ancestrais já andavam naquela época pelo Oregon, no noroeste dos EUA.


Caverna especial
A pesquisa de Gilbert e companhia se beneficiou das condições extremamente favoráveis nas cavernas onde os coprólitos -- nome dado às fezes fósseis -- foram encontrados. Por serem extremamente secos, os sedimentos dessas cavernas ajudam na preservação de quaisquer restos antigos. Daí a sorte de conterem 14 coprólitos os quais, pelo tamanho, forma, cor e composição química, pareciam ser de origem humana.


"Na verdade, eles são bem diferentes de fezes frescas -- lembram mais fezes muito ressecadas. Têm o mesmo formato, mas são muito quebradiças, quase com uma textura de biscoito. Mas não estão fossilizadas como acontece com dinossauros -- a parte orgânica não foi substituída por minerais", conta Gilbert, que é britânico, embora trabalhe na Dinamarca. As datas obtidas com o método do carbono-14, o mais usado em material orgânico relativamente recente, ficaram em torno de 14 mil anos do nosso calendário.


O problema é que a escavação da caverna não foi feita usando técnicas estéreis -- ou seja, as fezes poderiam muito bem ser contaminadas com DNA dos pesquisadores. Para contornar o problema, todo mundo que chegou perto do sítio arqueológico foi testado. E o resultado é que ninguém poderia ter sido a fonte do DNA indígena -- ao que tudo indica, ele pertence mesmo aos "donos" originais dos cocôs.

Mais antigo
Brincadeiras à parte, os testes fazem das evacuações a mais antiga evidência direta da presença humana na América. O sítio de Oregon só não é mais velho do que o de Monte Verde, no Chile, com uns 14.500 anos -- as datas lá são consideradas válidas pela maioria dos especialistas, diz Gilbert, mas são indiretas, vindo de material orgânico modificado por humanos, como o carvão de fogueiras.

Espera-se que os cocôs ancestrais sejam o último prego no caixão do chamado modelo Clovis. Batizado em homenagem ao sítio de mesmo nome no Novo México, trata-se da idéia de que os humanos teriam chegado à América apenas uns 13 mil anos atrás. A descoberta de Monte Verde já tinha feito essa idéia balançar um bocado, mas alguns arqueólogos dos EUA ainda se agarram a ela.

"Acho que a principal razão para esse conservadorismo é que as evidências contra o modelo Clovis não são tão sólidas quanto muita gente acha. E também vale lembrar que muitas evidências acabam dando apoio a Clovis -- por exemplo, quando a cultura Clovis surge, aparecem sítios arqueológicos na América do Norte toda, enquanto antes quase não há nada. E, finalmente, se alguém passou a carreira tentando provar Clovis, não vai querer mudar de opinião muito rápido", conclui Gilbert.

Portal G1

Biscoitos que contam história


Biscoitos que contam história
Em pequenas aldeias européias, receitas de pão milenares são usadas em rituais religiosos e abençoam casamentos, nascimentos e mortes
por Monica Schmidt

Calendário comestível

Muito antes de o relógio ser inventado, o tempo era marcado pelas estrelas, pelas estações do ano ou por... biscoitos! Esta boneca conta os 40 dias da Quaresma: a cada fim de semana uma perna é comida. Feitas de uma massa muito resistente e perfumadas com flor-de-laranjeira, ainda são produzidas por algumas mães nas aldeias do sul da Itália e da Grécia

Boneca casamenteira

As formas deste biscoito da Bulgária representam a vida de uma mulher. Nele estão simbolizados o cabelo solto e cacheado da menina, as tranças da jovem mulher e, no meio, o cabelo preso das avós. Ele é feito em todas as primaveras para participar de um ritual casamenteiro. As moças solteiras e esperançosas jogam um pedaço do pão no rio e a que arremessar mais longe será a primeira a se casar…

Ovos de Páscoa

Estes biscoitos rústicos são a pré-história dos ovos de chocolate. Aldeias do sul da Europa celebram há milênios o fim do inverno e a chegada da primavera com ovos que simbolizam a fecundidade, a volta do verde e da vida. Eles eram envoltos por biscoitos com formas de pássaros, peixes ou pessoas. Séculos depois, o ritual passou a comemorar a Páscoa e os ovos viraram chocolate

Biscoito bíblico

Parece apenas um bebê descansando em seu berço, mas este biscoito, feito no sul da Itália na época da Páscoa, é uma peça de arte sacra. As avós o utilizam para contar aos netos o episódio bíblico em que o leproso Lázaro é abençoado e ressuscitado por Cristo em recompensa pela sua vida de homem bondoso. O corpo é todo recoberto por migalhas, que representam os vermes de Lázaro – um detalhe que nunca tirou o apetite de ninguém

Peças de museu

Estes biscoitos de formas espiraladas são tão raros que fazem parte do acervo do Museu de São Petersburgo. Eles eram fabricados por freiras russas para serem pendurados em árvores de Natal, mas a receita desapareceu, no início do século XX, com a morte da última velhinha que sabia fazê-los. Os cervos – os principais símbolos de fecundidade das antigas religiões eslavas – misturam-se a árvores, associadas à fertilidade do gado, da terra e das mulheres

Biscoito de noiva

Estas peças são feitas pelas velhas senhoras da Sardenha para decorar os bolos de casamento. A brancura dos animais à esquerda representa as almas dos futuros fetos do casal. Já os pássaros que compõem a borda do sol à direita são um símbolo relacionado ao casamento em quase todos os países europeus. Depois da festa, os biscoitos são pendurados no leito nupcial e, se continuarem inteiros por muitos anos, é sinal de que o casal viverá junto por bastante tempo

Revista Superinteressante

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

“Fazer o santo”: dom, iniciação e historicidade nas religiões afro-brasileiras**


“Fazer o santo”: dom, iniciação e historicidade nas religiões afro-brasileiras**

Roger Sansi*
* Goldsmiths College, Department of Anthropology, University of London, New Cross
London SE14 6NW, UK. e-mail: ans01rsr@gold.ac.uk

** Este artigo é o resultado de uma circunstância interessante: inicialmente, o argumento pode ser encontrado no segundo capítulo da minha dissertação de doutoramento (Sansi, 2003) — e agora faz parte do primeiro capítulo do meu novo livro (Sansi, 2007). No contexto deste número temático, fiquei a saber que o artigo vai ser publicado juntamente com um texto de Márcio Goldman, que teve a gentileza de me enviar uma cópia. Tive uma grande (boa) surpresa quando vi que o argumento de Goldman era muito parecido com o meu e que partilhamos muitas referências. Acho que essa coincidência não é sintoma da monotonia académica de dois autores que repetem o mesmo argumento, mas o resultado de uma nova forma de olhar o campo e os novos interesses em jogo. Porém, é interessante observar as diferenças na aproximação a essas questões: elas são importantes, como esclareço nas conclusões.
O diálogo com Goldman obrigou-me a esclarecer posições e a ser mais reflexivo sobre o meu trabalho. Por isso, gostaria de lhe dedicar este artigo.

INTRODUÇÃO
Bruno Latour fez várias vezes referência (1996, pp. 103-104, e 2001, p. 291) à expressão do candomblé “fazer o santo”, como exemplo da naturalidade com que outras culturas constroem os seus agentes sociais. Diz ele que esta expressão o ajudou a repensar a forma como a ciência também “faz” os seus agentes e como essas construções não são meros artifícios ou fetiches, tornando-se realidades autónomas. O argumento é dirigido contra os limites de um construtivismo que, como diz Taussig (1993), começa e acaba na afirmação de que a realidade é uma construção social — mas não reconhece que as construções sociais podem tornar-se seres autónomos.
Contra o imobilismo deste construtivismo — para o qual, em última instância, tudo é ideologia, ficção, discurso —, Latour propõe que se olhe para a historicidade de determinados eventos, que geram novos valores que não podem ser reduzidos à lista de elementos que os constituíram: no evento, estes elementos gagnent en definition (Latour, 2001, p. 131), modificam-se e ficam mais definidos na sua relação: por exemplo, eventos como a revelação que ele teve quando ouviu falar sobre “fazer o santo”.
Latour não sabia muito sobre candomblé, mas a observação que ele fez sobre “fazer o santo” é interessante. De facto, no candomblé os “santos” são construídos como agentes autónomos, enquanto os filhos-de-santo se constroem a si mesmos como pessoas. “Fazer o santo” é um processo de construção da pessoa em relação com os espíritos que incorpora, como mostrou Goldman (1985), e o “outro corpo” destes espíritos, os altares (assentos) (Sansi, 2005).
Ainda assim, esta narrativa da “feitura do santo” não corresponde exactamente àquilo que Latour procurava. O discurso da feitura do santo é um discurso das origens — de um processo iniciático e ritualizado que volta sempre ao mesmo ponto, mas não dá conta da capacidade transformativa dos eventos: a sua historicidade.
De facto, não é só ao falar da “feitura do santo” que podemos entender a relação entre espíritos e pessoas no candomblé, ou a construção de pessoas no candomblé em geral. Isto porque existe sempre uma série de elementos nessas relações e processos que escapam ao discurso cíclico da iniciação: elementos imprevistos, novos, com uma historicidade particular.
Na tradição da antropologia afro-brasilianista, as descrições etnográficas da iniciação no candomblé são centrais para o argumento da autenticidade da tradição religiosa africana no Brasil1. Os críticos dessa literatura afro-brasilianista questionaram essa “tradição inventada” e o discurso das origens2.
Porém, poucos tentaram ir mais longe nessa crítica e na afirmação de que as tradições afro-brasileiras não são fixas, mas dinâmicas3. Mas como dar conta desse dinamismo?
Os críticos da tradição afro-brasilianista raramente confrontaram a questão do sincretismo de forma directa: eles só atacaram a procura da “autenticidade” ou a “invenção da tradição”. Mas será esta crítica realmente suficiente?
Será suficiente dizer simplesmente que a autenticidade ou a tradição são instrumentos do poder, uma construção? Mas por que toma a construção essa forma? E como é possível que essa construção adquira autonomia, nos termos de Latour, isto é, uma historicidade própria?
Se, por um lado, o discurso da iniciação nega a relação das religiões afro-brasileiras com a história, sugerindo que elas vivem de costas viradas para a mesma [o famoso principe de coupure de Bastide (1978)], os críticos do discurso afro-brasilianista tentam situar as religiões afro-brasileiras num contexto histórico. Mas até agora eles não tiveram muito interesse em analisar como é que essas religiões se relacionam com a história, isto é, como é que elas incorporam os factos históricos dentro de um discurso ritual próprio.
O fantasma do “sincretismo” está, provavelmente, por detrás dessa negação. O problema fundamental, no fundo, é que a questão do sincretismo (e do anti-sincretismo) e a questão da história são a mesma questão. Neste artigo propomos dar uma resposta em relação à forma como as religiões afro-brasileiras lidam com a história. A nossa proposta tenta sintetizar as duas posições — o discurso afro-brasilianista sobre a iniciação com a crítica do afro-brasilianismo, que se propõe descrever essas religiões no seu contexto social. Para atingir este objectivo é necessário manter uma perspectiva mais abrangente, entendendo primeiro que a iniciação não é a única forma através da qual se produz e reproduz o povo-de-santo. Existem outras possibilidades: por exemplo, o “dom” de certas pessoas para fazer “santos”.
Há duas formas de fazer “santos”, como Boyer já referiu (1996). Uma seria a capacidade inata, o “dom” para encontrar e incorporar espíritos — a mediunidade dos espíritas. A outra seria a “iniciação”, o processo ritual através do qual a mãe-de-santo, como iniciadora, “põe a mão na cabeça”, mostra os segredos do culto e dá os elementos necessários para que a pessoa “assente” os santos. O “dom” dos médiuns, por outro lado, permite produzir inovações rituais, produzir novos espíritos e novos elementos nos altares.
Estas inovações, interpretadas como “sincretismo”, têm sido objecto da suspeita de muitos antropólogos da tradição afro-brasilianista, que sempre valorizaram as “tradições” baseadas na iniciação, essencialmente a tradição ketu, das grandes casas de candomblé de Salvador da Bahia. Como descreveu Boyer (1996), nas últimas décadas o prestígio destas casas e a sua ortodoxia têm vindo a impor-se à diversidade das práticas baseadas no “dom” dos médiuns. De facto, este movimento anti-sincretismo está a gerar transformações históricas na prática das religiões afro-brasileiras. Liderado pela mãe-de-santo do Ilé Axé Opô Afonja, Mãe Stella, este movimento promoveu uma reforma nas práticas do culto baseada na renúncia ao culto
dos espíritos não considerados africanos (como os caboclos) nas casas de candomblé ketu, além da restrição do culto católico nos terreiros e da retirada das imagens católicas das casas dos santos (Bacelar e Caroso, 1999; Santos, M. S., 1995; Santos, 1987). Noutro lugar (Sansi, 2007) tento explicar como esse anti-sincretismo é outra estratégia de lidar com a história.
Tal como o chamado “sincretismo”, o anti-sincretismo é um processo de reinvenção do culto baseado no “dom” que algumas mães-de-santo possuem para definir as inovações rituais como um retorno às origens.
No entanto, não é objectivo deste artigo discutir o anti-sincretismo. Aqui iremos focar-nos na problemática mais tradicional do sincretismo para podermos definir de forma mais clara os termos da questão. Começamos por propor ir mais longe na distinção estabelecida por Boyer: não podemos simplesmente dizer que a iniciação se impõe ao dom, mas o facto é que eles estão mutuamente implicados. O “dom” pode ser tão imprescindível nas religiões afro-brasileiras como a iniciação. O conhecimento que a iniciação perde por esquecimento, desistência e conflitos interpessoais é substituído pela inspiração dos médiuns, que estabelecem através do seu “dom” um
contacto directo com os espíritos. Nesses termos, o dom e a iniciação geram
uma dialéctica histórica da produção de conhecimento, no qual novos espíritos,
objectos e valores são incorporados.
Esta dialéctica histórica transcende as oposições estáticas entre a tradição e o sincretismo que dominaram o estudo das religiões afro-brasileiras. O objectivo
deste artigo é mostrar como as práticas, objectos e espíritos supostamente “sincréticos” são transposições de histórias pessoais e colectivas incorporadas nas práticas do candomblé. O sincretismo não é outra coisa
senão história.
Nas páginas seguintes começarei por apresentar uma narração “tradicional” da iniciação, seguindo o modelo ketu, para me concentrar depois num caso específico que não se ajusta a este modelo tradicional. É o caso de Madalena, uma mãe-de-santo que trabalha muito a partir do próprio “dom”.

CORPOS E ALTARES
Muitas filhas-de-santo afirmam que não se iniciaram por vontade própria, mas porque um orixá, caboclo ou entidade as obrigou a oferecer a sua devoção (a noção de “obrigação” é central no candomblé, muito mais do que a ideia abstracta de “fé”). Essas entidades podem causar aflições físicas, mentais e sociais se as pessoas que eles querem “para si” não cumprirem as suas obrigações para com eles. Quando alguém vai a uma casa de candomblé e se queixa de uma aflição, seguindo o modelo oficial do ketu, aquilo que uma mãe-de-santo faz em primeiro lugar é jogar os búzios. Este oráculo dirá ao paciente quem são os seus orixás e quais as causas dos seus males.
Para os acalmar pode oferecer-se inicialmente um bori, um ritual de “dar de comer a cabeça”4. A cabeça é um receptor de poder e “dar de comer a cabeça” é, de facto, “fechar o corpo”, protegendo-o dos feitiços. Este ritual supõe a celebração de uma aliança com o orixá porque é em cima da cabeça, no ori, que os orixás se apoderam do seu devoto. No bori, a mãe-de-santo faz ofertas à cabeça da pessoa e ao orixá “dono” da cabeça. Distribuem-se diversos tipos de comidas, depositadas e esculpidas na cabeça da paciente e no altar do “santo”, chamado assento. Sacrifica-se um galo no bori e a paciente deve beber o sangue, que é também derramado no assento. Depois disso, a paciente tem de ficar a dormir na casa do santo, e inclusive ficar aí mais alguns dias, para que o seu ori tenha tempo de comer.
O bori cria uma relação entre a casa de candomblé e a paciente: a mãe-de-santo impõe a “mão na cabeça” da nova iniciada e alimenta-a; a vasilha onde ficam depositados os restos do ritual ficará no altar do orixá, transformada em assento; o santo fica assentado na vasilha. Depois disso, a paciente pertence à casa, tem uma “obrigação” para com o orixá e com a casa: ela fica na base de uma hierarquia que culmina na mãe-de-santo. Agora ela tem de acudir com periodicidade à lavagem ritual (ossé) do assento (Binnon-Crossard, 1970, p. 123).
Além dos restos dos rituais, os assentos contêm os fundamentos dos orixás, os elementos onde eles moram: pedras, ferramentas de metal ou madeira, ou conchas, dependendo do “santo”. O altar de candomblé é composto essencialmente por um assento central, o assento da casa, no qual estão enterrados os fundamentos com o axé, ou força vital da casa, rodeados das vasilhas das iniciadas. Assim, os assentos reproduzem materialmente a hierarquia dos membros da casa. Os altares de assentos ficam ocultos nos quartos do santo, envoltos em tecidos, fechados em quartos escuros, onde são fixados, assentados permanentemente, idealmente para toda a vida da
iniciada. Ninguém, excepto a mãe-de-santo, pode vê-los. O assento é um mistério latente. A sua invisibilidade tem como consequência multiplicar os poderes da sua presença, tornando-a perceptível apenas indirectamente. Estes poderes revelar-se-ão publicamente no corpo humano apenas nos rituais de possessão. Só as iniciadas “caem no santo” — são possuídas. Estas iniciadas chamam-se filhas-de-santo. A maioria das pessoas com santo assentado nunca se inicia porque não tem o dom da mediunidade.
Nos rituais de possessão, o santo é chamado em primeiro lugar nos assentos, com sacrifícios e/ ou oferendas. As oferendas, juntamente com a música dos atabaques, “abrem o caminho” do axé, a força vital do santo, do assento à cabeça (ori), efectuando uma transferência do objecto para o corpo possuído.
O corpo e o assento são os dois estados através dos quais o “santo” se faz presente. O assento é fixo, enquanto o corpo humano dança. No assento, o “santo” é alimentado; nas festas, o “santo” incorporado é o anfitrião. No assento, o “santo” fica escondido e, no corpo da iniciada, ele torna-se público, vibrante, triunfante.
Poderíamos dizer que o objectivo principal da iniciação é “domesticar” o corpo, preparando-o para incorporar o orixá. Nas suas primeiras manifestações, o “santo” pode entrar no corpo do seu “cavalo” com muita violência.
Com a iniciação, o corpo fica preparado para incorporar e aprende a controlar e a focalizar o “santo”. Depois de uma longa reclusão na intimidade dos assentos no quarto do santo para aprender os segredos do culto, as cantigas, o uso das folhas, os sacrifícios, a iniciada sai do quarto no abá baxé. A cabeça da iniciada é rapada pela mãe-de-santo, que faz um pequeno corte no cimo da cabeça, onde é derramado o sangue dos sacrifícios e outros elementos do axé. Depois disso, a cabeça da iniciada é pintada com os motivos do orixá e ela sai para o ritual público (saída de santo). Cai possuída e o “santo” grita o seu nome. O “santo” está feito. “Fazer o santo” é um processo muito concreto e material: não é só uma educação sobre mitos, cantigas e rezas, é também um habitus corporal do santo. Para tal, a iniciada deve aprender as técnicas do corpo essenciais para a iniciação, fazer oferendas e construir altares. É um processo dialéctico de objectivação e apropriação, no qual o “santo” é construído, concretizado no altar e no corpo. Neste sentido, o santo não é simplesmente o orixá, mas o orixá daquela pessoa — com umas características particulares.
Poder-se-á dizer que, através da iniciação, também se constrói a pessoa da filha-de-santo. A iniciação dura muitos anos, num intercâmbio em que a “pessoa” e o “santo” se constroem mutuamente, porque fazer o santo é, de facto, fazer-se a si mesmo. Quando a iniciada tem sete anos de iniciação e cumpriu com as suas obrigações rituais, já pode abrir a sua casa de candomblé (se a sua mãe-de-santo o permitir), no ritual da deca, ou “dar a navalha”, com o qual se pode “raspar cabeça”, iniciar. Porém o axé, a força vital da nova casa, vai permanecer sempre ligado ao axé da casa original onde a nova mãe-de-santo foi feita; na realidade, é o mesmo axé.

Matéria completa no endereço
http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1236787502X4rFI6fj3Zm36GE2.pdf
Revista Análise Social

Oito de dezembro


Oito de dezembro
Ao receber a notícia da Independência, o governo de Pernambuco decidiu comemorá-la no dia da padroeira de Portugal para conquistar o apoio da população
Flavio José Gomes Cabral

Naquele tempo, as notícias custavam a circular. Mesmo as mais importantes. Um mês já tinha se passado desde a proclamação oficial da Independência do Brasil e Pernambuco ainda desconhecia esta informação. Em 12 de outubro de 1822, o Rio de Janeiro assistia à aclamação de D. Pedro I como primeiro imperador constitucional do país. Enquanto isso, no Recife, a data era comemorada apenas por ser aniversário do herdeiro do trono português. Ao qual continuávamos, acreditavam os pernambucanos, firmemente ligados.

No fim do desfile das tropas, uma multidão aglomerou-se em torno da Câmara da cidade para ver a cerimônia em honra ao príncipe regente, cujo retrato foi pendurado ao lado da imagem de seu pai, o rei D. João VI. Se no Rio de Janeiro celebrava-se a separação de Brasil e Portugal, em Pernambuco exaltava-se justamente o contrário: a união dos dois reinos. Após a cerimônia na Câmara, ouviram-se tiros dos canhões de artilharia localizados no Largo da Cadeia. O povo saudou D. Pedro efusivamente. Sem saber que, àquela altura, ele era o imperador de um país independente.

Cinco dias depois, ainda como parte das comemorações pelo aniversário do regente, as autoridades recifenses prestaram juramento de fidelidade ao príncipe. A Junta de Governo, presidida por Afonso de Albuquerque Maranhão (?-1836), fez questão de reafirmar tal compromisso por temer focos de resistência à autoridade de D. Pedro – que havia assumido o governo do país após o regresso de D. João VI a Portugal, em 1821.

Composto, em sua maioria, por senhores de engenho (“pessoas do mato”), o órgão sob o comando de Albuquerque Maranhão era conhecido como “junta dos matutos”. A Junta anterior, presidida pelo comerciante Gervásio Pires Ferreira (1765-1836), havia sido substituída, acusada por seus opositores de ser “independente” e “contra o príncipe”. Os gervasistas sonhavam com o federalismo, uma das bandeiras de luta da Revolução Pernambucana de 1817, tentativa derrotada de emancipação. Questionavam as diretrizes políticas traçadas pelo ministro José Bonifácio (1763-1838), que defendia a concentração de poderes no governo do Rio de Janeiro. Preocupado com os focos de resistência a D. Pedro, foi o próprio Bonifácio quem orquestrou planos para derrubar Gervásio, enviando a Pernambuco amigos para tecer intrigas que culminaram com a queda da Junta.

Uma vez no poder, a “junta dos matutos” redigiu um documento endereçado às Câmaras provinciais exigindo que convocassem as autoridades locais para prestar juramento de fidelidade ao regente. Aqueles que se recusassem a fazê-lo seriam considerados inimigos do Brasil. As elites partidárias do príncipe procuravam transmitir uma imagem positiva de D. Pedro para a população, em sua maioria formada pela raia miúda (canoeiros, tanoeiros, mascates). Além de servir de elo entre o Brasil e Portugal, ele era apresentado como uma espécie de “salvador”, interessado em preservar os direitos dos nascidos nos trópicos. As medidas para assegurar a autoridade de D. Pedro mostram que, à época da Independência e da formalização do rompimento do Brasil com Portugal, o imperador ainda não havia conquistado a simpatia de todos os pernambucanos.

A escolha do aniversário do imperador como data para a aclamação não se deu por acaso. Era comum, na época, fazer coincidir eventos políticos com dias comemorativos. Tanto que, depois de 9 de novembro de 1822, quando as notícias da Corte enfim chegaram ao Norte do país, as celebrações em torno do imperador e da Independência também ganharam uma referência especial. Como não foi possível comemorar esses eventos no calor da hora, os governantes resolveram agendar a homenagem para o dia 8 de dezembro. A data era tradicionalmente dedicada a Nossa Senhora da Conceição, a padroeira de Portugal, muito festejada no Recife e no interior.

A “junta dos matutos” decretou feriado e a celebração da Independência estendeu-se até o dia 10. Houve desfile de tropas, das bandas dos regimentos militares, repique de sinos e salvas de canhão detonadas das fortificações centenárias. Prisioneiros foram soltos na tentativa de mostrar à população a real clemência do homenageado. A população assistia às solenidades entoando canções cívicas, como a do poeta Manuel Rodrigues de Azevedo, que celebrava o fato de D. Pedro ter desafiado as Cortes de Lisboa e permanecido no Brasil: “Viva o Defensor Perpétuo/ Enquanto o tempo correr, / Que protestou à Europa; / Independência ou morrer”. A cidade ficou iluminada por três dias, um costume antigo para exaltar a majestade e expressar a adesão do povo ao seu governo.

O ponto alto das comemorações aconteceria na Matriz do Corpo Santo. Em discurso público na ocasião, frei Caneca (1779-1825), grande orador e um dos principais envolvidos na Revolução de 1817, elogiou a suntuosa festa promovida pela Câmara e exaltou a coincidência das datas. “Unir o temporal com o eterno”, explicou ele, “é mostrar-se ao mesmo tempo cristão mais devoto e pio e cidadão mais patriota e justo”. Da tribuna, o religioso pediu que Nossa Senhora abençoasse os responsáveis pela administração e a família imperial. Ao chegar ao ápice de sua fala, enumerou as virtudes dos dois homenageados: a santa e o imperador. Em Maria se via o dom de graça “livre de todas as manhas” e “a glória da humanidade”. Em D. Pedro, fundador do “império constitucional do Brasil”, se reconhecia “um dom particular de justiça e prudência” e “a glória da sociedade”.

Apesar do entusiasmo da festa, frei Caneca achou por bem fazer uma ressalva: havia uma distinção entre o papel da Virgem e o significado do evento político. Sustentou que estavam em questão o “feminino” e o “masculino”, ou os seres celestes e os terrenos. Por isso devia-se evitar confundir a pureza e a perfeição de Maria, virgem imaculada, com a imperfeição humana de um governante.

A Câmara do Recife e a “junta dos matutos” já vinham investindo na imagem do novo chefe do Estado desde novembro. Como D. Pedro havia conquistado a posição de monarca sem que D. João tivesse morrido, corriam boatos de que ele teria sido desleal com o pai. Para desfazer essa versão, os partidários do imperador espalharam pelas ruas um impresso anônimo intitulado Uma conversa política. O texto tratava D. Pedro como a “cabeça e o coração do império”, e destacava a importância “de que todo corpo político (...) soubesse dessa mudança e se reconhecesse como parte desse mesmo corpo”.

Assim como a celebração da Independência seria estrategicamente agendada em função do dia da padroeira de Portugal, uma série de símbolos nacionais serviu para transmitir à população a imagem de um imperador competente. Alegorias, poemas e músicas se tornaram peças importantes para a construção de uma imagem positiva de D. Pedro. Canções com rimas fáceis, de poetas desconhecidos, eram divulgadas nas esquinas das ruas e nas praças movimentadas. O “Hino do Senhor D. Pedro I”, que dizem ter sido composto pelo próprio imperador no dia 7 de setembro – e hoje conhecido como Hino da Independência do Brasil –, passou a ser cantado em quase todos os eventos patrocinados pelas autoridades recifenses. O coro emocionava os mais entusiastas: “Brava gente brasileira / Longe vá temor servil / Ou ficar a pátria livre / Ou morrer pelo Brasil!”.

Ainda havia quem discordasse da separação de Brasil e Portugal. Especialmente os comerciantes portugueses e alguns proprietários de terra que na época de D. João VI conquistaram benefícios, como títulos e cargos públicos. Estes também compuseram canções, mas com o propósito de ironizar a Independência. Em vez dos conhecidos versos do “Hino do Senhor D. Pedro I”, cantavam: “Cabra gente brasileira / Do gentio de Guiné / Que deixou as cinco chagas / Pelos ramos de café”. Assim zombavam da nação mestiça recém-formada e das novas armas imperiais, que traziam símbolos nacionais ladeados pelos ramos de tabaco e café, no lugar das tradicionais quinas do pavilhão português, representativas das cinco chagas de Cristo.

Apesar dessa crítica, a campanha em favor da Independência e do novo imperador não adotava um discurso de ruptura radical. Nem poderia. Ao associar D. Pedro à padroeira de Portugal, as celebrações lembravam sua ascendência: rompia-se com a velha metrópole, mas não com o passado. Podia-se até morrer pelo Brasil, mas quem se sentava no trono do novo país independente era um ramo da família real lusitana.

Flavio José Gomes Cabral é professor de História das Faculdades Integradas de Vitória de Santo Antão, da rede estadual de Pernambuco e autor da tese “Conversas reservadas: ‘vozes públicas’, conflitos e rebeliões em Pernambuco no tempo da Independência do Brasil” (UFPE, 2008).

Saiba Mais - Bibliografia:

BERNARDES, Denis Mendonça. O patriotismo constitucional: Pernambuco, 1820-1822. São Paulo: Hucitec, 2006.

COSTA, F. A. Pereira da. Anais Pernambucanos. 2ª ed. Recife: Fundarpe, 1984, v.8.

MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo: Ed.34, 2004.

MOREL, Marco. Frei Caneca: entre Marília e a pátria. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000.

SOUZA, Iara Lis Franco Schiavinatto Carvalho. Pátria coroada: o Brasil como corpo político autônomo, 1780-1831. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1999. (Prismas).


Revista de História da Biblioteca Nacional

Longas orelhas, prósperos negócios


Longas orelhas, prósperos negócios
No lombo de mulas, a Colônia e o Império brasileiros sustentaram seu desenvolvimento econômico durante mais de um século
Carlos Eduardo Suprinyak

Governar é abrir estradas... para as mulas passarem. Desde que os portugueses descobriram ouro no Brasil, tanto o escoamento da produção colonial quanto o abastecimento das regiões produtoras foram feitos no lombo dos animais de carga. Porém, mais do que apenas viabilizar o transporte das riquezas no interior da Colônia, os animais que circulavam pelos caminhos das tropas significavam, eles próprios, intensa atividade econômica. Entre os séculos XVIII e XIX, o comércio de animais de carga gerou imensa prosperidade, foi alvo de pesados impostos e fortaleceu a economia das regiões Sul e Centro-Sul do Brasil.

Entre as diferentes espécies de animais de carga, as mulas levavam ampla vantagem sobre os cavalos, realizando em grande número a travessia que partia do extremo Sul, onde eram criados, na região do Rio da Prata, rumo a São Paulo e Minas Gerais. No auge do negócio, em 1856, foram transportados mais de 70 mil animais. Destes, 61 mil eram mulas.

Antes do surto minerador, a criação de bestas de carga no extremo Sul direcionava-se às minas de prata de Potosí, na América espanhola (atual Bolívia). No século XVIII, a intensificação da extração aurífera nas áreas centrais do Brasil trouxe aumento da demanda por transporte de carga. As mulas eram necessárias tanto para escoar o produto das minas quanto para abastecer a crescente população da região com gêneros trazidos de outras localidades. E as bestas de carga platinas mostraram-se especialmente aptas a realizar estas tarefas em meio à geografia acidentada de Minas Gerais.

Nada disso seria possível se não existissem estradas ligando o Sul ao Centro-Sul. E em 1727, elas de fato não existiam. Naquele ano, a Coroa encarregou o sargento-mor Francisco de Souza Faria de chefiar uma missão com o objetivo de abrir aquele que ficaria conhecido como Caminho das Tropas, ou Caminho do Viamão. Por dois anos Francisco liderou a difícil empreitada, contando depois com a decisiva intervenção de Cristóvão Pereira de Abreu (1680-1755), considerado “o primeiro tropeiro por excelência”. Fidalgo português, Cristóvão fazia fortuna desde 1690, quando ainda atuava no Rio de Janeiro. Ele foi arrematante do contrato de arrecadação dos quintos sobre o couro – muito lucrativo – desde 1702. Em 1731, os dois inauguravam o caminho ligando Viamão (na atual Grande Porto Alegre) a Sorocaba, passando por Lages (atual Santa Catarina) e pelos campos de Curitiba. Como retribuição pelos serviços prestados, Cristóvão Pereira de Abreu foi agraciado pela Coroa portuguesa com nova concessão: durante doze anos, teve direito à metade do valor obtido pela cobrança de impostos sobre os animais que transitavam no Caminho das Tropas. (...)

Revista de História da Biblioteca Nacional

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Diabo: o mal em pessoa


Diabo: o mal em pessoa
Satanás, Belzebu, Belial, Espírito Imundo, o Tentador. O diabo teve muitos nomes e faces e já inspirou de obras-primas literárias a canções de rock. Conhecer sua história ajuda a responder a pergunta: por que a humanidade precisa dele?
por Álvaro Oppermann

Avenida do Inferno, 666

Para o médico parisiense Jacques de Gheyn, que viveu no século 16, ele era um monstro de chifres e olhos vermelhos faiscantes, que o obrigava a cozinhar cadáveres. De acordo com a jovem francesa Chrétienne, de 23 anos, tratava-se de um cavalheiro de trajes e chapéu negros, que a desvirginara em 1624. Do ponto de vista do filósofo Voltaire, não passava de uma simples superstição, e segundo o pai da psicanálise, Sigmund Freud, não era outra coisa além de impulsos negativos longamente reprimidos. Como é possível que existam tantas imagens do diabo? O que ele é, e por que está tão presente na história da humanidade e nas principais civilizações de todos os tempos e lugares?

Uma coisa é certa: o capeta é uma figura importante. Por causa dele, hereges foram queimados nas fogueiras da Inquisição. Grandes escritores o transformaram em clássicos da literatura - caso do drama Fausto, de Goethe, ou do conto São Marcos, de João Guimarães Rosa. Isso para não falar nas referências da cultura pop: nos quadrinhos, Hellboy e Motoqueiro Fantasma; na música, Sympathy for the Devil, dos Rolling Stones, e Rock do Diabo, de Raul Seixas e Paulo Coelho. Sua história, contudo, é tortuosa, e sua figura, esquiva. Afinal, o que esperar do demônio? Como já dizia o poeta francês do século 19 Charles Baudelaire sobre o personagem: "O maior truque do diabo foi convencer-nos de que não existia". Fato ou ficção, esta é uma história e tanto.

Para o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, o diabo é a representação concentrada do mal. Mas ele não está restrito ao Oriente. O demônio existe nas mais diversas civilizações, ocidentais ou orientais. "É uma figura universal. Está presente, de formas variadas, no catolicismo, no judaísmo, no islamismo, no hinduísmo, no budismo e no taoísmo", afirma Mateus Soares de Azevedo, mestre em História das Religiões pela Universidade de São Paulo. Mas por que seres humanos de lugares tão diferentes acreditam em algum tipo de diabo? O historiador das religiões Henry A. Kelly, professor da Universidade da Califórnia, tem uma explicação. Para ele, essa crença nasceu da percepção de que vivemos sob um dualismo irreversível: bem ou mal, belo ou feio, luz ou sombra. O mundo, então, ficava mais simples de entender: se existe o bem e o mal nitidamente separados, é possível criar uma ética, elaborar regras claras de comportamento que definam as atitudes que são aceitáveis. É por isso que, como diz o professor Kelly, o principal papel do diabo foi o de perdedor. "O ser humano precisa reafirmar que pode vencer obstáculos temíveis. Tais dificuldades foram representadas por Satã."

Em quase todas as grandes religiões existe uma história que explica a origem do mal. Essas narrativas têm vários pontos em comum. De acordo com a tradição semita ocidental, ela começa quando um ser maléfico cai em desgraça com Deus e se torna inimigo do homem. Na Bíblia, ele atende pelo nome de Lúcifer. No Alcorão, Iblis. Nas escrituras védicas do hinduísmo, são os asuras (demônios). Segundo a Bíblia, Lúcifer fazia parte da corte celeste, onde gozava de grande prestígio. Porém, quando chegou a hora de eleger o representante de Deus entre as criaturas, o escolhido não foi ele, mas Adão, um simples mortal. De acordo com o Alcorão, Deus teria ordenado que todos se prostrassem diante do primeiro homem. Lúcifer, acompanhado de uma legião de outros demônios, negou-se a fazê-lo. Ele e seu séquito foram banidos da corte depois de uma briga feia, citada pelo Livro do Apocalipse. A história coincide com uma narrativa védica, que conta a batalha cósmica travada entre devas (que podem ser traduzidos como "anjos") e os asuras expulsos ("demônios"). Assim se inaugurava o drama da criação.

Nome e rosto

Os hebreus o chamavam de satan; os árabes, de shaitan. Era a mesma palavra e significava "adversário" ou "acusador". Definições com palavras bem mais "diabólicas" ou "demoníacas" tiveram de ser importadas do grego a partir do século 2. Diabolos carregava uma conotação bem negativa, podendo ser traduzida como "o difamador" ou "o separador". Outra palavra, daimon, originou "demônio". O daimon, "gênio" ou "espírito" na religião grega, correspondia a potencialidades da alma, tanto as boas quanto as más. Inserida na Bíblia, passou a se referir a seres exclusivamente maus.

Várias outras palavras também foram utilizadas para designá-lo. Belzebu, ou "senhor das moscas" em hebraico, era um deus de uma religião antiga da Palestina. Idem para Belial, "o príncipe das trevas" - provavelmente derivado de Belili, uma deusa mesopotâmica. O diabo também é chamado de Serpente (no Gênesis), Grande Dragão Vermelho (no Apocalipse), Espírito Imundo (no Evangelho de São Marcos) e Espírito da Mentira (segundo São Paulo).

Já para representar sua imagem, a principal inspiração veio da demonologia assírio-babilônica. De acordo com a historiadora americana Elaine Pagels, uma das entidades preferidas pelos artistas da Antiguidade foi o sinistro Pazuzu, filho de Anu, rei dos espíritos malignos da antiga religião babilônica. É ele quem aparece no início do filme O Exorcista (1973). O diabo também foi representado por cabras, cobras e crocodilos (veja quadro na próxima página). Por fim, no século 4, durante um concílio da Igreja na cidade de Toledo, ele foi descrito pela primeira vez com seu visual clássico: chifres, rabo, tridente em punho, cor avermelhada ou negra.

Enquanto se expandia, o cristianismo estimulava histórias de contatos pessoais com demônios. Os fiéis ficavam assombrados com casos como o do egípcio Santo Antão, nascido por volta de 250, que passou parte da vida trancado em tumbas de cemitérios. Segundo a tradição, ele foi torturado por demônios durante 17 anos.

Identidade

Na Idade Média, o problema do mal (e do diabo) foi discutido pelas mentes mais brilhantes da escolástica, como Santo Anselmo da Cantuária, São Tomás de Aquino e John Duns Scott. Um consenso oficial da Igreja sobre o tema foi obtido no quarto Concílio de Latrão, realizado em 1215. Segundo os teólogos então reunidos na cidade italiana, "o diabo e os outros demônios tinham sido criados bons em sua natureza por Deus, mas que, por sua própria vontade, haviam optado pelo mal".

A essas alturas, o diabo do cristianismo, descrito com tamanho cuidado, já se diferenciava bastante dos seres malignos de outras religiões. Para islâmicos, hindus e budistas, o mal e as criaturas malignas continuavam sendo o elemento de imperfeição da criação. Para os cristãos, ao contrário, ele passou a ter identidade e personalidade bem mais claras. Era questão de tempo para que, na Europa medieval, o Tinhoso repaginado ganhasse simpatizantes.

De acordo com o historiador americano Nesta Webster, em Secret Societies and Subversive Movements ("Sociedades secretas e movimentos subversivos", inédito em português), as seitas de adoradores do diabo conheceram o auge a partir do século 14. Na Alemanha, na Itália e na França, existiu a ordem dos Luciferinos, que pregava que o filho dileto de Deus não era Jesus, mas sim Lúcifer (que seria "o portador da luz"). Na Itália, adeptos do mesmo movimento fundaram uma seita chamada La Vecchia Religione ("a velha religião"). No decorrer de suas missas negras, o pão consagrado na tradicional eucaristia católica era dado a ratos e porcos.

Nessa época, o mais infame satanista foi um grande herói da França, o barão Gilles de Rais. Nascido em 1404, ele havia sido companheiro de Joana D’Arc nas campanhas militares de expulsão dos ingleses, mas enlouqueceu depois da morte da mártir. Passou a andar na companhia de um italiano de má fama, conhecido apenas como Prelati, com quem se iniciou nas chamadas, na época, "artes negras", como quiromancia e previsões astrológicas. Pouco tempo depois, diversas crianças, filhas de camponeses, começaram a desaparecer na região. Descobriu-se que eram capturadas por capangas do barão e mortas com requintes de crueldade em rituais para o diabo. De Rais acabou enforcado e queimado em 1440.

Reação católica

A Igreja não tardou a lançar um contra-ataque contra os seguidores do coisa-ruim. No fim do século 15, apareceram os manuais da Inquisição, como De Pythonicis Mulieribus, de 1489, e Malleus Maleficarum ("O martelo das feiticeiras"), de 1486. Eles explicavam os ritos de feitiçaria e o pacto com o diabo, além de oferecer instruções de como atacar Satanás. Em 1580, num opúsculo sobre feitiçaria, De la Démonomanie des Sorciers, o jurista francês Jean Bodin detalhou o sabá negro, assembleia noturna reunindo feiticeiros e feiticeiras, no qual ocorrem ritos em homenagem ao demo. Além dos seguidores do capeta, os alvos eram os íncubos e súcubos, como eram conhecidos os diabretes que supostamente mantinham relações sexuais com seres humanos, e as pessoas que sofriam de possessão demoníaca.

Casos em que o capeta ocupava o corpo do fiel eram considerados comuns e ocorriam nos lugares mais insuspeitos. Foi o que aconteceu no convento de Loudun, no século 17. As freiras tomadas apareciam ao público gritando palavras sacrílegas, principalmente contra a Virgem Maria. As sessões de exorcismo reuniram, no exterior do convento, mais de 2 mil pessoas, que podiam apenas ouvir os gritos e gemidos das freiras possuídas dentro do recinto monástico. Um abade que presenciou os exorcismos narrou em carta que um dos demônios possessores, chamado Asmodeus, se contorceu tanto dentro do corpo de uma pobre freira, durante uma das sessões, que "o seu rosto inchou três vezes o tamanho normal".

As ações do capeta e de seus asseclas só sossegaram a partir do século 18, com o Iluminismo. "Foi quando todas as crenças perderam força", diz Maria Cristina Longinotti, estudiosa de religiosidade popular na Universidade de Córdoba, na Argentina. O cientista que mais contribuiu para desmistificar o diabo foi Sigmund Freud (1856-1938), o pai da psicanálise. Ele escreveu um estudo sobre o tema, Uma Neurose da Possessão Demoníaca no Século 17, no qual analisava o caso do pintor Christoph Haitzmann, que supostamente fizera um pacto com o demo. "Aquilo que, nas eras passadas, pensava-se ser espíritos demoníacos, hoje sabemos ser impulsos negativos que foram rejeitados e reprimidos", afirmou o doutor Sigmund Freud.

O tinhoso é pop

Apesar dessas explicações todas, que limitaram a crença em Satanás como um ser real, foi no século 20 que ele alcançou a maior popularidade em sua controversa carreira. Por exemplo: em 1966, na Califórnia, Anton Szandor LaVey fundou a Igreja de Satã. Em 1969, escreveu a Bíblia Satânica, que se transformou em best seller alternativo entre alunos universitários americanos. Hoje a celebridade mais famosa, entre os seguidores da Igreja, é o cantor de rock Marilyn Manson. No passado, o ator Sammy Davis Jr., membro da inseparável turma de Frank Sinatra, era bastante chegado a Michael Aquino, especialista em guerra psicológica do Exército americano e fundador do Templo de Set, dissidência light da Igreja de Satã.

De acordo com uma biografia publicada recentemente, o cantor e compositor John Lennon teria feito um pacto com o diabo em 1960, para que os Beatles obtivessem "mais fama do que Elvis", nas palavras do roqueiro. Anos depois, o cineasta britânico Kenneth Anger seduziu os Rolling Stones. Mick Jagger e Keith Richards chegaram a compor uma música para um de seus filmes, Lucifer Rising ("Ascensão de Lúcifer"). A canção se chamou Invocation to my Demon Brother ("Invocação ao meu Demônio Irmão"). Uma visita da banda ao Brasil inspirou a outra faixa satânica, bem mais famosa, em que o demo se apresenta em primeira pessoa: Sympathy for the Devil.

Entre cidadãos médios, o assunto também está presente em pleno século 21, sobretudo nos Estados Unidos. A TV local tem dado amplo espaço ao tema, do programa jornalístico 60 Minutes até a apresentadora Oprah Winfrey. E os adeptos de formas de satanismo no país são mais de 10 milhões. "O problema do diabo é, em última análise, o problema do mal", diz a autora Elaine Pagels, que escreveu o livro As Origens de Satanás depois de perder o marido num acidente de montanhismo, em 1988. "Esse problema está sempre conosco", diz ela. O diabo é uma de suas caras. Assustadora, sinistra, incômoda, mas que não quer nos abandonar.


Faces malignas
As diferentes imagens do diabo nas mais diversas civilizações

Trolls

De acordo com a mitologia escandinava, podem ser gigantes ou anões, mas são sempre figuras demoníacas, dotadas de poderes mágicos que ficam mais fortes durante as horas de escuridão.

Satã ou Satanás

Na versão mais famosa, citada na Bíblia, era um destacado anjo na corte celeste de Deus até se rebelar. Derrotado, refugiou-se com seus seguidores e hoje segue confrontando o Criador.

Lidith

Demônio feminino recorrente em diversas crenças e culturas. Já foi imaginada como um fantasma sugador de sangue. Em alguns relatos, teria sido a primeira mulher de Adão, depois substituída por Eva.

Gog e Magog

Demônios de feições caninas das religiões semitas são citados no Antigo Testamento. Segundo uma crença muito popular entre os muçulmanos, eles foram aprisionados pelo profeta Abraão e, depois, por Alexandre, o Grande.

Belial

Príncipe das trevas segundo o Alcorão, pode ser chamado de Beliel ou Baal. Também é citado na Bíblia: pessoas más são chamadas pelo profeta Samuel de "homens de Belial".

Asuras

Seres diabólicos do hinduísmo e do budismo. Foram expulsos do céu por anjos (devas) quando se rebelaram contra ordens divinas. São o equivalente aos "anjos caídos" da tradição semita.

Harit

Demônio feminino, tinha muitos filhos, que alimentava com os corpos de outras crianças. Por interferência de Buda, mudou de lado e passou a proteger todos os pequenos.

Ahri Man

O princípio do mal segundo o mazdeísmo, religião da antiga Pérsia. De acordo com essa crença, no princípio de tudo existiam dois espíritos opostos. Ahura Mazda reunia o bem e a luz e Ahriman, o mal e a escuridão.

Mefisto'Jeles

O nome do diabo na literatura da necromancia do fim da Idade Média. Deriva do hebraico mephir, "destruidor", e tophel, "mentiroso". É o demônio com quem Fausto, o personagem de Goethe, faz um pacto.

Kaukas

Crença popular lituana e finlandesa. Duende muitas vezes travesso, mas em outras ocasiões maligno. Incita os homens à cobiça e os induz a cometer assassinatos.

Zoológico infernal
Os principais disfarces animais do coisa-ruim

Dragão

Para autores dos primórdios do cristianismo, era uma espécie de serpente que vivia submersa em água pútrida. Outra referência eram os monstros marinhos fenícios, como Behemoth e Leviatã.

Serpente

A ligação surgiu no famoso episódio da expulsão de Adão e Eva do Paraíso, narrado no livro do Gênesis. Sob a forma do réptil, o diabo engana Eva e faz com que ela coma o fruto proibido.

Cabra

Eleita o animal-símbolo do diabo na Idade Média. A identificação é mais antiga: vem da Antiguidade e, no século 5, o pensador cristão Cesário de Arles (470-543) dizia que a aparência caprina lembrava a de muitos demônios.

Gato preto

A relação com Satã começou na Europa, no século 11, por causa de relatos insistentes de aparições de gatos pretos malignos em locais povoados por bruxas.

Saiba mais

LIVROS

La Historia del Diablo - Siglos 12 a 20, Robert Muchembled, Fondo de Cultura Económica, 2002

Uma abordagem sociológica e muito moderna das várias imagens do diabo.

As Origens de Satanás, Elaine Pagels, Ediouro, 1996

Aborda o tema do ponto de vista das diversas civilizações e não exclusivamente o europeu.

Revista Aventuras na História

Rumo a uma nova conceituação histórica da classe trabalhadora mundial


Rumo a uma nova conceituação histórica da classe trabalhadora mundial

Marcel van der Linden*
* Research Diretor do International Institute of Social History – Amsterdam University, CEP 1019 AT, Holanda. e-mail: mvl@iisg.nl



O conceito de "classe trabalhadora", que se originou na Europa do século XIX, tem sido questionado mais e mais nas últimas décadas. Estas críticas vêm, em parte, de acadêmicos interessados em Ásia, África e América Latina. Eles apontam que as fronteiras entre trabalho "livre" assalariado, trabalho por conta própria e trabalho compulsório não são tão claramente demarcadas, e que a oposição entre trabalho urbano e rural não deve ser tomada como absoluta.1 Jan Breman defende essa visão desde a década de 1970 nos seus estudos sobre o Gujarat contemporâneo. Em acréscimo, Nandini Gooptu demonstrou na sua pesquisa sobre os pobres urbanos em Uttar Pradesh que é plausível que essa visão seja também verdadeira para o início do século XX.2 A crítica também tem sido expressa em parte por historiadores da região do Atlântico no início da Era Moderna. Peter Linebaugh e Marcus Rediker traçaram um quadro fragmentário de como um proletariado multiforme de "derrubadores de matas e viajantes das águas" se desenvolveu, com vários espaços de luta: "os campos comuns, a plantation, o navio e a fábrica". Eles fizeram parecer provável que escravos e fugitivos da África, trabalhadores endividados da Europa, americanos nativos, assalariados "livres" e artesãos constituíam uma multidão complexa, mas também social e culturalmente interconectada, que também era vista como um todo (uma "hidra de várias cabeças") pelos donos do poder. Linebaugh e Rediker se referem à rebelião de 1791 dos escravos haitianos como a "primeira revolta bem-sucedida de trabalhadores na história moderna". Eles sugeriram que esta revolução contribuiu posteriormente para a segmentação da "multidão" rebelde: "O que ficou para trás foi nacional e parcial: a classe trabalhadora inglesa, os negros haitianos, a diáspora irlandesa."3 O conceito restrito de proletariado que encontramos em Marx e outros foi um resultado dessa segmentação.

A questão a ser enfocada nas páginas seguintes é como podemos visualizar um novo conceito da classe trabalhadora levando em conta as contribuições oferecidas por Breman, Gooptu, Linebaugh e outros. A fim de encontrar uma resposta a essa questão, iniciamos com uma crítica construtiva do conceito de classe trabalhadora em Marx. Usamos Marx como um ponto de partida por duas razões: ele ainda é uma importante fonte de inspiração para acadêmicos de todo o mundo e, apesar de várias limitações, sua análise ainda é o que nós temos de melhor.



A COMPLEXIDADE DA MERCANTILIZAÇÃO DA FORÇA DE TRABALHO

A sentença de abertura de Marx em O Capital é famosa: "A riqueza das sociedades nas quais o modo de produção capitalista predomina aparece como uma 'imensa coleção de mercadorias'; a mercadoria individual aparece como a sua forma elementar. Nossa, portanto, começa com a análise da mercadoria."4 Marx via o modo de produção capitalista como conseqüência da mercantilização (i) da força de trabalho, (ii) dos meios de produção e da matéria-prima, e (iii) dos produtos do trabalho. O primeiro elemento é crucial nesse contexto. Marx supôs que a força de trabalho pode ser mercantilizada em apenas uma forma que seria "verdadeiramente" capitalista, ou seja, via trabalho livre assalariado, no qual o trabalhador, como "um indivíduo livre pode dispor da sua força de trabalho como sua própria mercadoria" e "não tem outra mercadoria para vender".5 Ele enfatizou que "a força de trabalho só pode aparecer no mercado como uma mercadoria apenas se e na medida em que seu possuidor, o indivíduo de quem essa força de trabalho é, a oferece para venda ou a vende como uma mercadoria".6

O conceito restrito de classe trabalhadora baseia-se nessa idéia. Se apenas a força de trabalho dos trabalhadores livres assalariados é mercantilizada, a classe trabalhadora "real" no capitalismo consiste nesses trabalhadores. A hipótese de Marx, até onde sabemos, nunca foi sustentada por uma elaboração adequada. Ela provavelmente pareceu auto-evidente por muito tempo, porque parecia corresponder ao processo pelo qual o proletariado se formou na Região do Atlântico Norte. Todavia, a hipótese de Marx se baseia em dois pressupostos dúbios, ou seja, que a força de trabalho, deve ser oferecida para venda pela pessoa que é o portador e o possuidor dessa força de trabalho, e que a pessoa que vende a força de trabalho o faz exclusivamente.7 Por que deveria ser assim? Por que a força de trabalho não pode ser vendida por outro que não o portador? Por que a pessoa que oferece a força de trabalho (a sua própria ou a de outrem) à venda não a vende condicionalmente, junto com meios de produção? E por que um escravo não pode executar um trabalho contratado por uma terceira parte em benefício de seu proprietário? Se nós só nos detemos na distinção entre um "portador" e um "possuidor" de força de trabalho enquanto tal, podemos já distinguir os quatro tipos de mercantilização da força de trabalho, a saber, mercantilização autônoma, na qual o portador da força de trabalho é também o possuidor, e mercantilização heterônoma, na qual o portador da força de trabalho não é o possuidor; em ambos os casos, a força de trabalhado do portador pode ser oferecida pelo próprio portador ou por outra pessoa (Tabela 1).



Parece ser razoável postular que a mercantilização tenha muitas formas, das quais o trabalho livre assalariado seja apenas um exemplo.8 Exploraremos essas múltiplas formas abaixo, tanto apontando formas transitórias entre as classes subalternas de Marx quanto trazendo à luz alguns de seus postulados implícitos falsos. Esperamos que essa desconstrução prepare o terreno para uma nova conceituação.



TRANSIÇÕES GRADUAIS

Além de capitalistas e senhores de terras, a tradição marxiana distingue cinco classes ou semiclasses subalternas no capitalismo: os trabalhadores assalariados livres, que apenas possuem a sua força de trabalho e a vendem; a pequena burguesia, consistindo em pequenos produtores e distribuidores de mercadoria; os trabalhadores por conta própria, que possuem sua força de trabalho e meios de produção e vendem os produtos do seu trabalho ou serviços ("o trabalhador por conta própria é o seu próprio trabalhador assalariado, seus meios de produção próprios aparecem para ele como capital. Como seu próprio capitalista ele emprega a si mesmo como seu próprio trabalhador assalariado"9; os escravos, que nem possuem sua própria força de trabalho nem suas ferramentas e são vendidos (na escravidão "o trabalhador não é nada mais do que uma máquina de trabalho viva, que portanto tem um valor para os outros, ou antes é um valor".10); e o lumpem-proletariado, que não é vendido e não vende nada. O último grupo usualmente permanece fora da análise e é usado principalmente como uma categoria residual.

A luta de classes é travada principalmente entre capitalistas, senhores de terras e assalariados. As outras classes são historicamente menos importantes; elas "decaem e finalmente desaparecem em face da moderna indústria".11

•A escravidão é "uma anomalia oposta ao próprio sistema burguês", que é "possível em pontos individuais do sistema burguês de produção", mas "apenas porque ela não existe em outros pontos".12

•Trabalhadores por conta própria são anomalias que existem na pequena agricultura de base familiar (em conexão com a indústria doméstica).13

•A pequena burguesia, os pequenos vendedores, lojistas e rentiers, os artesãos e camponeses, todos afundam gradualmente no proletariado.14

•O lumpem-proletariado é "a classe perigosa, o lixo social, aquela massa passivamente apodrecida que se desprende das camadas mais baixas da velha sociedade",15 o que inclui "vagabundos, criminosos e prostitutas".16

De acordo com esse esquema marxiano, há uma lacuna entre os trabalhadores assalariados livres e os outros grupos subalternos. Mas esse esquema em alguma medida coincide com a realidade histórica? Os trabalhadores assalariados livres de Marx realmente existem? Argumentaríamos que há uma quase infindável variedade de produtores no capitalismo e que as formas intermediárias entre as diferentes categorias são vagas e fluidas.



Talvez seja útil olhar mais de perto algumas dessas formas intermediárias; entre o trabalho assalariado e escravidão; entre trabalho assalariado e por conta própria; entre escravidão e trabalho por conta própria; e entre trabalho assalariado, escravidão e trabalho por conta própria, de um lado, e o lumpem-proletariado de outro.

Formas intermediárias entre trabalho assalariado e escravidão. Há várias relações de trabalho nas quais o(a) assalariado(a) é forçado(a) fisicamente a fazer o seu trabalho, seja quando o seu salário é pago ou quando é entregue para uma terceira pessoa. Trabalho infantil, no qual os pais ou guardiões recebem os salários, é um bom exemplo. Jovens garotas japonesas que são empregadas como gueishas em troca por uma quantia em dinheiro são um exemplo disso.17 São conhecidos muitos casos de escravos que desempenham trabalho assalariado para os seus senhores. Em Buenos Aires, no fim do século XVIII, por exemplo, esse fenômeno era tão comum que muitos proprietários de escravos eram completamente dependentes dos salários dos seus escravos. Os registros cartoriais da época sugerem que "em contratos de trabalho mais longos, os salários, menos os custos da sua manutenção, eram pagos diretamente aos proprietários de escravos pelos empregadores do trabalho escravo contratado".18 Talvez seja útil distinguir três variedades:

•O proprietário do escravo compele o escravo a prestar trabalho assalariado para outro empregador e recolhe todo ou parte dos salários. Freqüentemente, "os proprietários de escravos e os empregadores dos escravos combinam a taxa de emprego por cabeça de escravo", mas "a situação de um escravo buscando ativamente e negociando o seu emprego ocorria do mesmo modo".19

•O proprietário de escravos paga aos seus escravos, ou às suas escravas, em dinheiro por um esforço extra, seja por meio de "bônus, seja com presentes ou então como um incentivo", seja "um pagamento feito por trabalho extra num sistema de tarefas ou por trabalhar além do tempo usual".20

•O escravo trabalha voluntariamente por seus salários, para um empregador ou para um colega escravo. A fazenda Blue Mountain, na Jamaica, no final do século XVIII, é um exemplo do último caso: "os escravos pagavam salários uns aos outros. Trabalho dominical nas culturas de subsistência, por exemplo, poderia render 1s.8d (um xelim e oito dimes) por dia mais o café da manhã".21 É claro que esta última variedade em particular torna consideravelmente difusa a distinção entre um assalariado e um escravo.

Inversamente, os trabalhadores assalariados são freqüentemente menos livres do que a visão clássica sugere. Os empregadores freqüentemente restringem a liberdade dos seus trabalhadores de partirem em caso de escassez de mão-de-obra. Um empregado pode ser amarrado a um empregador de muitas maneiras:

•A escravidão por dívidas é um método que ocorre em todos os continentes, das minas de carvão escocesas no século XVIII à agricultura contemporânea na América Latina e no Sul da Ásia.22

•O trabalho endividado é certamente intimamente relacionado à escravidão por dívida. Os coolies indianos, javaneses e chineses, que eram empregados na África do Sul, na América Latina e nas outras partes da Ásia ,são um exemplo bem conhecido disso.23

•A mobilidade dos trabalhadores também pode ser limitada pela exigência de certificados de liberação. Sem esses meios de identificação, os trabalhadores não podem ser empregados por nenhum empregador. Era uma característica típica dessa prática que o empregador tomasse posse do certificado ao empregar o trabalhador e o devolvesse apenas quando ele ou ela tivesse, na visão do empregador, satisfeito todas as suas obrigações.24

•A compulsão física era uma outra opção para os empregadores. Algumas vezes os empregadores chegavam a ponto de trancar os seus empregados assalariados, prevenindo-os de serem "tentados" por seus rivais nos negócios. Na indústria têxtil japonesa da década de 1920, as trabalhadoras eram trancadas em dormitórios por essa razão. Às vezes, elas não tinham permissão de deixar as instalações por mais de quatro meses.25

•Programas de seguridade social e outros oferecem uma forma menos agressiva de reter os empregados. Em torno de 1900, as companhias argentinas, por exemplo, criavam sociedades fraternais e de ajuda mútua que eram dirigidas pela companhia e concebidas para tornar o trabalhador dependente da firma.26 Hortas providenciadas pela companhia poderiam ter o mesmo efeito, porque elas tornavam possível uma suplementação salarial, seja porque as verduras, frangos e outros produtos domésticos reduziam o custo de vida, ou porque a produção dessas hortas era comprada pelo empregador.27

•Finalmente, as conexões entre um empregador e um empregado fora da relação imediata de emprego poderiam ter um efeito vinculante. (Desenvolveremos isso abaixo.)

Formas intermediárias entre trabalho assalariado e por conta própria.Na visão clássica, os trabalhadores só dispõem da sua força de trabalho, mas não de meios de produção. Há muitas exceções a esta regra.

•Um exemplo é o trabalhador que leva suas próprias ferramentas à oficina, como era e ainda é comum em muitos lugares. Já na década de 1880, o economista alemão August Sartorius von Waltershausen observou nos Estados Unidos que "ao contrário das suas contrapartes européias, os trabalhadores fabris americanos usualmente possuem suas próprias ferramentas. [...] As ferramentas freqüentemente constituem uma proporção considerável da riqueza de um trabalhador".28

•Uma segunda possibilidade é que os trabalhadores tenham que tomar emprestados os seus meios de produção do empregador. Neste caso, eles pagam uma caução e são formalmente independentes. Os puxadores de carruagem em Changsha, província de Hunan, China, em torno de 1918 são um exemplo disso. Suas carruagens eram propriedades de "garagens" (che-zhan) e tinham que ser alugadas a cada dia. O dono da garagem pagava os impostos da carruagem e o puxador tinha que fazer um depósito de dez dólares mexicanos (de prata). "Cada carrinho tinha um número e era atribuído a um determinado puxador, que era sempre responsável por ele." Se a carruagem se quebrasse e fosse retirada para reparos, o aluguel diário ainda tinha que ser pago."29 A renda do puxador consistia na diferença entre o que ele recebia e os seus pagamentos ao proprietário da garagem.

•Também ocorria que fosse permitido a um empregado ficar com parte do produto do seu trabalho e vendê-lo independentemente. Os mineiros da prata em Pachuca (México), em meados do século XVIII, recebiam uma soma em dinheiro (salários) por uma quantia básica do veio de prata, e tudo o que eles produzissem em excesso era dividido em duas partes: "dessa metade, o apanhador dava uma certa proporção aos carregadores, carpinteiros e outros trabalhadores da mina que o tinham ajudado".30 Sabemos que arranjos similares existiram na agricultura em Java e em muitas outras partes.31

Formas intermediárias entre escravidão e trabalhado por conta própria. O caso de Simon Gray, um escravo do Sul dos Estados Unidos, que serviu como o barqueiro-chefe da companhia madeireira Natchez de 1845 até 1862, demonstra quão complicada a realidade capitalista pode ser. A tripulação de Gray normalmente contava com dez a vinte homens e se constituía tanto de escravos afro-americanos quanto de brancos ribeirinhos. "Alguns dos escravos eram de propriedade da companhia, enquanto outros, como o próprio Gray, eram contratados de outros proprietários pela firma. Os tripulantes brancos, por outro lado, eram empregados pelo negro, que mantinha os seus registros, pagava suas despesas, lhes emprestava dinheiro, e às vezes lhes pagava salários. Conseqüentemente, eles viam Gray como seu empregador." Gray e os seus homens com freqüência ficavam longe de casa por duas ou três semanas. Durante estas viagens, Gray desempenhava uma grande quantidade de tarefas gerenciais. "Além de fazer entregas ele também pegava encomendas para a fábrica, cotava preços, concedia crédito aos consumidores e cobrava o dinheiro devido à companhia madeireira."32 Assim, esse caso mostra um escravo que funcionava como gerente, trabalhadores livres que eram empregados por um escravo, e outros escravos que tinham que obedecer a esse empregador. Nem todos os escravos eram propriedade da companhia Natchez, mas alguns, incluindo Gray, eram empregados de outros proprietários de escravos. Essa situação é, sem dúvida, incomum de um ponto de vista histórico. Em outra situação, escravos trabalhavam como parceiros. Na Jamaica, no final do século XVIII, às vezes ocorria a situação em que "os escravos 'bem de vida' estabeleciam terras de cultivo e usavam os 'mais pobres' para trabalhar para eles em troca de uma parcela da produção".33

Formas intermediárias entre trabalho assalariado, escravidão no trabalho por contra própria e o lumpem-proletariado. A transição das três formas principais (escravidão, etc.) para a "não-classe" do lumpem-proletariado também é gradual. V. L. Allen defendeu que "em sociedades nas quais a luta pela sobrevivência é a norma para uma alta proporção de toda a classe trabalhadora, e nas quais homens, mulheres e crianças são compelidos a buscar meios alternativos de subsistência, distintos dos seus tradicionais, o lumpem-proletariado mal se distingue da maior parte do restante da classe trabalhadora".34

•Trabalhadores "respeitáveis" destituídos também se sentem compelidos a roubar. Saques de comida organizados por trabalhadores eram um "fenômeno de escala nacional" nos Estados Unidos em 1932.35 Tais saques reapareceram na Itália no começo dos anos 1970.36

•Catar no lixo também ocorre com freqüência em tempos difíceis e pode até mesmo se tornar lei costumeira. Louis Adamic registrou em 1935 que "desde quando qualquer um nos campos antracitos da Pensilvânia se recorda, era costumeiro que os mineiros e suas famílias fossem com sacos ou barris aos depósitos de resíduos que cercavam suas vilas insalubres apanhar carvão entre as rochas e lascas descartadas nos processos de quebra e limpeza das grandes carvoarias. Os catadores eram usualmente das famílias mais pobres".37

•O roubo, o desvio de dinheiro e o furto são atividades "normais" para certos grupos de trabalhadores. É comum entre doqueiros em muitos países roubar uma parte de um carregamento, mas em fábricas e escritórios tais roubos por empregados dos escalões inferiores também ocorrem freqüentemente.38



POSTULADOS IMPLÍCITOS

A visão clássica, além de fazer distinções drásticas entre fenômenos que na realidade não são entidades fixas, também assume postulados implícitos que têm que ser examinados. Um grande número desses postulados se origina na idéia de que os trabalhadores trocam a sua força de trabalho por dinheiro e então compram alimentos com esse dinheiro. Ao consumir esses bens, eles reproduzem sua força de trabalho, que podem então vender novamente ao empregador. Assim, no nível da circulação, há um processo cíclico, que é demonstrado pelo seguinte diagrama:



Esse conceito de circulação é uma abstração de muitos elementos e sugere um processo complexo e isolado. Em primeiro lugar, ele sugere que o consumo dos salários recebidos pelo empregado não requer trabalho. A compra de bens de consumo e o esforço para torná-los aptos a serem consumidos (por exemplo, vender e preparar comida, ou alugar e manter limpo um lugar para viver) não são levados em conta. As feministas, todavia, têm apontado por décadas que o trabalho assalariado não pode existir sem o trabalho de subsistência.39 Esporadicamente, há empregados que reproduzem a sua força de trabalho sem trabalho de subsistência, mas estas são pessoas com um renda muito alta: "o proletário real que reproduz sua força de trabalho completamente por meio do seu salário pago por seu trabalho é, no máximo, o Yuppie (corruptela para a expressão Young Urban Professional, ou seja, "jovem profissional urbano" em inglês), que como um executivo de mobilidade ascendente de uma firma multinacional compra um sanduíche para o almoço e encontra sua esposa Yuppie (quem sabe, uma corretora do mercado de ações ou uma professora universitária) à noite em um restaurante para jantar, enquanto uma empregada doméstica limpa o seu apartamento alugado. O trabalhador assalariado normal, todavia, se reproduz como uma dona-de-casa ou participa ativamente da produção da subsistência.40 Na maioria dos casos, o trabalho de subsistência é feito por uma ou mais mulheres no núcleo doméstico, a esposa ou as esposas, e às vezes as filhas do paterfamilias. Também é possível que o próprio assalariado empregue um ou mais assalariados que façam o trabalho doméstico. Muitas famílias brancas da classe trabalhadora na África do Sul do começo do século XX, por exemplo, tinham uma empregada doméstica negra, que, entre outras coisas, era responsável por "fazer o fogo, limpar o fogão, varrer, lavar pratos, preparar o chá da manhã e da noite, manter o quintal limpo, e fazer o trabalho de rotina na horta, tal como capinar e regar".41

Em segundo lugar, o diagrama parece sugerir que a relação entre empregador e empregado se limita à troca de dinheiro por força de trabalho. Laços possíveis entre ambas as partes fora do processo de circulação não são levados em consideração. Mas, com certeza, esses laços podem existir. O empregador pode prender o empregado economicamente, por exemplo, ao proporcionar alojamento de propriedade da companhia ou ao tornar obrigatório ao empregado comprar bens de consumo que o empregador oferece para venda com a renda recebida como salário (o chamado "sistema de barracão", ou truck system).42 Mas a relação entre o empregador e o empregado não é necessariamente econômica; por exemplo, se há laços familiares entre ambos, ou se eles pertencem à mesma comunidade religiosa. Casos de habitação da companhia e outras formas de vínculo material podem ser encontrados especialmente, mas por certo não exclusivamente em grandes companhias, como por exemplo a United Fruit Company, que abrigava os seus campesinos na América Central nas plantations, ou a siderúrgica Krupp na Alemanha.43 É provável que vínculos não-econômicos sejam relativamente mais comuns em pequenas companhias.

Em terceiro lugar, o diagrama cíclico sugere que um empregado ou uma empregada tem apenas um empregador e que ele ou ela apenas se envolve em uma relação de trabalho de cada vez. Este fenômeno de fato ocorre freqüentemente e é comum entre artesãos e trabalhadores qualificados, mas este não é o caso para uma grande parte da população mundial dependente de salários, nem no passado, nem no presente. Pessoas com vários empregos são muito comuns na Ásia, África e América Latina. O mesmo era verdade para a Europa nas décadas anteriores à ascensão do Estado de bem-estar. É verdade novamente para a Rússia contemporânea, onde ao menos cerca de 15 a 20% da população empregada tinha um emprego suplementar em meados da década de 1990.44 Por certo, também é perfeitamente possível que o empregado tenha diferentes tipos de renda. André Gunder Frank falou corretamente da "fluidez na relação trabalhador-proprietário". Ele dá o exemplo de "um único trabalhador que é simultaneamente: (i) proprietário das suas próprias terra e casa, (ii) parceiro na terra de outro (às vezes pela metade, às vezes por um terço da colheita), (iii) arrendatário na terra de uma terceira pessoa, (iv) trabalhador assalariado durante a época da colheita numa dessas terras, e (v) vendedor independente das suas próprias mercadorias domésticas".45 A importância relativa de diferentes fontes de renda pode mudar repetidamente ao longo do tempo, como Adam Smith já sabia.46

Em quarto lugar, o modelo da circulação enfoca a relação entre um empregador e o seu empregado ou a sua empregada. Mas é perfeitamente possível que os trabalhadores sejam empregados como um grupo por um empregador. Às vezes isto é feito por meio de um intermediário que recruta trabalhadores na área circundante e subseqüentemente os coloca à disposição do empregador. Na indústria têxtil de Xangai, no começo do século XX, por exemplo, havia o sistema pao-kung no qual o intermediário "contratava" meninas nas vilas vizinhas por três anos, dos seus pais, e então "as empregava" nos cotonifícios britânicos e japoneses na cidade durante aquele período.47 Em outro arranjo, o intermediário supervisionava os trabalhadores por ele recrutados, e deste modo trabalhava ele próprio para o seu cliente. Este era, por exemplo, o caso em muitas minas de carvão indianas e chinesas.48 Poderia também ocorrer que um grupo de trabalhadores se oferecia para a contratação por um empregador sem a mediação de um intermediário, como no caso dos trabalhadores nas colheitas operando na parte européia da Rússia no século XIX, que se organizavam em artels ("cooperativas").49

Em quinto lugar e finalmente, de acordo com o modelo, o ciclo se quebra quando o trabalhador não mais oferece sua força de trabalho para venda e pára de trabalhar. Isto sugere que as greves são uma forma de ação coletiva especialmente associada aos trabalhadores assalariados livres, e também que esta é a única forma possível de ação. Mas se verificarmos os modos nos quais o protesto é expresso e a pressão é exercida pelos diferentes grupos de trabalhadores subalternos (ou seja, os escravos, os trabalhadores por conta-própria, o lumpem-proletariado e os trabalhadores assalariados "livres"), parece haver uma considerável interseção. No passado, todos os tipos de trabalhadores foram à greve. Os mineiros de prata parceiros em Chihuahua, por exemplo, protestavam já na década de 1730 contra o encerramento dos seus contratos de trabalho pelos proprietários da mina, entrincheirando-se nas serras circundantes. "Lá eles construíram uma barricada improvisada de pedra, desfraldaram uma bandeira proclamando seu desafio e juraram atormentar a vila de San Felipe, matar o proprietário da mina, San Juan y Santa Cruz, e queimar sua casa até o chão. Nas várias semanas seguintes eles se recusaram a abandonar seu reduto nas montanhas, onde passavam o tempo compondo e cantando canções de protesto."50 Os mineiros retornaram apenas após a mediação de um padre enviado pelo bispo. Escravos também iam à greve regularmente. Nas plantations do início do século XIX no Caribe britânico, por exemplo, havia movimentos paredistas unilaterais. "As rebeliões de Demerara em 1829 e em 1831, ambas começaram como versões de greves modernas, acompanhadas por atos de desafio, mas não por assassinatos. Apenas quando a milícia real retaliou com força, assumindo que se tratava de um outro levante armado, foi que tal ocorrência realmente se deu."51 No sentido oposto, trabalhadores livres assalariados usaram métodos de ação que são usualmente associados com outros grupos de trabalhadores subalternos, tais como linchamentos, motins, ataques incendiários e com explosivos.52



RUMO A NOVOS CONCEITOS

As reflexões acima demonstram como as fronteiras entre os trabalhadores assalariados "livres" e outros tipos de trabalhadores subalternos na sociedade capitalista são vagas e graduais. Em primeiro lugar, há áreas cinza extensas e complicadas de posicionamentos transitórios entre os trabalhadores assalariados "livres" e os escravos, os trabalhadores por conta própria e os lumpem-proletários. Em segundo lugar, quase todos os trabalhadores pertencem a núcleos domésticos que combinam vários modos de trabalho.53 Em terceiro lugar, trabalhadores subalternos individuais podem também combinar diferentes modos de trabalho tanto sincrônica quanto diacronicamente. E, finalmente, a distinção entre os diferentes tipos de trabalhadores subalternos não é tão precisamente delimitada. As implicações são de longo alcance. Aparentemente, há uma grande classe de pessoas dentro do capitalismo cujo trabalho é mercantilizado de muitas formas. Nesse contexto, referimo-nos a essa classe como trabalhadores subalternos. Eles constituem um grupo muito variado, que inclui escravos de plantel, parceiros, pequenos artesãos e assalariados. É a dinâmica histórica dessa "multidão" que gostaríamos de entender.

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Revista de História - Unesp

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Controle e exploração dos escravos rurais na República Romana


Controle e exploração dos escravos rurais na República Romana1
Mestrando José Ernesto Moura Knust (PPGH-UFF/NIEP-MARX/CEIA-UFF)


Entre os séculos II e I a.C., a Itália romana testemunhou importantes transformações na economia rural. Uma complexa interação de processos históricos levou ao desenvolvimento de novas relações de produção no campo. O império romano havia se estendido por todo o Mediterrâneo através de uma mobilização militar cada vez mais longa de uma parcela da população de cidadãos cada vez maior, numa proporção nunca superada por qualquer outra sociedade pré-capitalista. Repetidos sucessos militares permitiram que os romanos trouxessem para a Itália enormes quantidades de riquezas, nas formas de moedas, tesouros saqueados e escravos2.
A elite romana investiu parte desta nova riqueza em gastos ostentatórios e políticos em Roma e outras cidades italianas. Esses gastos permitiram novas oportunidades de sustento nas cidades tanto para homens livres como escravos nas mais diversas atividades, atraindo população para estes centros urbanos. Isto fez crescer o mercado consumidor de alimentos, especialmente na capital. Roma foi uma metrópole grandiosa, com uma população excepcional para uma cidade pré-industrial. A existência de tal mercado consumidor inevitavelmente influenciaria as áreas produtoras que tivessem disponibilidade de acesso a ele. O crescimento da demanda de alimentos gerado pelo crescimento do mercado urbano romano foi atendido em parte pela importação de alimentos sob formas de taxas das províncias, mas também estimulou intensificação, expansão e mudança de estratégias na produção agrícola em diversas áreas, especialmente na Itália3.
Os ganhos da expansão imperial estimularam uma concentração de riqueza exorbitante e inédita4. Ao ficarem mais ricos, os membros da elite romana investiram parte considerável de suas riquezas em terras agricultáveis na Itália, pois as possibilidades de adquirir e preservar riqueza através da produção manufatureira ou do comércio eram limitadas e, principalmente, arriscadas, dado o nível de desenvolvimento das forças produtivas5. Essa elite concentrou a propriedade da terra muitas vezes desalojando camponeses cidadãos. Muitos destes camponeses expulsos de suas terras migraram para a cidade de Roma, para aproveitar as oportunidades que lá surgiam ou para aderir ao exército, ou, ainda, migraram para a recém aberta planície do norte da Itália, estabelecendo um novo campesinato romano nas áreas conquistadas na Itália pela expansão imperial6. Este processo não significou a extinção do campesinato tradicional italiano, como algumas interpretações foram acusadas de afirmar. Os camponeses permaneceram um setor fundamental da economia romana, mesmo em áreas onde predominavam as grandes propriedades escravistas da elite. Estes camponeses eram, inclusive, importantes para tais propriedades escravistas, por fornecerem mão-de-obra sazonal nos períodos de maior exigência de trabalhadores7.
Porém, a expansão de um novo padrão de exploração da terra e da mão-deobra, baseada no trabalho escravo e na venda de uma parte importante da produção tanto para os crescentes mercados das tropas e das cidades, em especial Roma, como para o recém aberto mercado das elites provinciais é o grande dínamo das transformações sociais no campo romano. A arqueologia rural atesta um amplo adensamento da ocupação do meio rural iniciado no século II a.C. ligado ao surgimento de edifícios rurais de médio e grande porte8, e data deste período, o início do século II a.C., o mais antigo tratado de que temos conhecimento sobre a agricultura escrito em latim – e provavelmente mesmo o primeiro a ser escrito, já que não existem quaisquer referências a textos latinos deste gênero anteriores. É o De Agri Cultura, escrito por Marco Pórcio Catão, eminente homem público de seu tempo9. Este texto foi amplamente utilizado por historiadores como fonte para o estudo da realidade rural italiana. Recentemente, uma matização importante desta utilização vem sendo apregoada, pois não podemos pensar em tal tratado como um retrato fiel da realidade rural de sua época10. De qualquer maneira, tomando-se os devidos cuidados, o texto de Catão continua a ser uma fonte importantíssima para o estudo das relações de produção
escravistas na Itália romana.
O fato mais marcante no texto de Catão é a caracterização deste novo tipo de exploração da terra e da mão-de-obra em torno do conceito de uilla rustica. Trata-se de uma propriedade de porte médio, que não excedesse as possibilidades de investimentos do proprietário (Catão, De Agri Cultura I.3). A produção estava voltada para produzir o máximo daquilo que fosse necessário internamente sem recorrer a compras e também daquilo pudesse ser vendido: para Catão o proprietário deveria ser sempre um vendedor, nunca um comprador (Agr.II.7). A mão-de-obra fixa da propriedade era escrava, mas, como dissemos, o campesinato vizinho era uma importante fonte de mão-de-obra em momentos de maior necessidade de trabalho, como a colheita (Agr.I.2)11.
A uilla rustica descrita por Catão não é administrada pessoalmente por seu proprietário, pois este, além de possuir mais de uma propriedade, precisa viver na cidade para dar conta de seus interesses políticos12. Esta administração se dá através da chefia de um escravo de confiança, o uilicus. Catão praticamente não aborda o tema da mão-de-obra fora do âmbito das obrigações deste uilicus, isto é, este escravo é a figura central na organização do trabalho rural, sendo o elo hierárquico entre as ordens senhoriais e a execução desta pelos trabalhadores. Através das listas de obrigações que este uilicus deve seguir presentes no texto de Catão, podemos refletir sobre as
preocupações na relação com os trabalhadores rurais, especialmente os escravos, que norteiam a reflexão da classe proprietária romana acerca das relações de produção agrárias.


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IFCH - UNICAMP

ROMA - UMA CLASSE INCLASSIFICÁVEL


UMA CLASSE INCLASSIFICÁVEL
Só quem trabalhava era a gentinha; as pessoas de bem exerciam em todas as coisas uma atividade de direção, chamada cura ou epimeleia, que poderíamos traduzir por "governo" no sentido em que Olivier de Serres falava do governo doméstico de um domínio. Era a única atividade digna de um homem livre, pois constituía o exercício de um comando. Dizia-se isso sobre a gestão do patrimônio pelo pai de família, sobre uma missão pública confiada a um delegado e até sobre o governo imperial — pelo menos o diziam os pensadores que gostavam de imaginar o imperador como um soberano patriarcal. Pouco importava que, governando suas terras, Cipião, o Africano, tivesse manobrado pessoalmente a charrua, como Cincinato no passado: nem por isso deixava de ser o senhor. Em tal condição, constituía um mérito ser "trabalhador" enérgico; esse [pág. 130]
qualificativo, porém, indicava uma qualidade moral, não uma identidade. Quando Virgílio escreve que o trabalho triunfa sobre tudo, não diz que é a santa lei do mundo, mas que um zelo intenso rompe todos os obstáculos. Não ser preguiçoso era uma virtude nascida das necessidades; de todas as necessidades: nunca se ativar, negligenciar os amigos, os cuidados com a própria glória e com os negócios públicos é viver como uma ostra, diz Plutarco. Um alto funcionário é um homem enérgico que, da manhã à noite, passa seu ano de trabalho examinando linha por linha as contas do fisco. Não se deixar enferrujar: uma máxima de Catão, esse verdadeiro grande homem. Como vemos, é impossível encontrar um equivalente medieval ou moderno para essa classe que, na falta de termo melhor, chamamos de notáveis, nobres, middle class ou gentry; altivos como nossos nobres, universalistas como os burgueses, negocistas como eles, proprietários de terras como nossa nobreza, trabalhadores, mas considerando-se classe ociosa. E há mais. No mundo romano não encontramos a equivalência que nos é familiar entre classes sociais e atividades econômicas; não existiu burguesia romana porque a classe que possuía o solo também realizava, sem se vangloriar, atividades mais burguesas; se procurarmos em Roma uma classe de negociantes, fabricantes, especuladores, usurários, agricultores em geral, nós a encontraremos em toda parte: entre os libertos, entre os cavaleiros e também entre os notáveis municipais e entre os senadores. Para saber se Catão, o Velho, participava do comércio marítimo ou se tal família de grandes notáveis municipais fazia negócios até nas fronteiras do Danúbio, precisamos investigar não a classe social a que pertencem, mas seus caprichos individuais e também a geografia, pois as heterogeneidades pessoais e regionais eram consideráveis; o senador Catão, por seu turno, "investiu capitais em negócios sólidos e seguros: comprou lagos piscosos, fontes de água termal, terrenos para instalar estabelecimentos de pisoeiros, fábricas de resina, terras com prados naturais e florestas; também praticou o empréstimo marítimo, que é a mais execrada forma de usura: consistia em formar uma [pág. 131]
companhia de cerca de cinquenta pessoas e tomar uma parte de capital por intermédio de seu liberto Quintio". A essas iniciativas pessoais devemos acrescentar as tradições locais; tal cidade vive encerrada em si mesma e não passa de um amontoado de camponeses, como vemos hoje no sul da Itália ou na Hungria; mas, a vinte quilômetros, a cidade de Aquileia é uma Veneza ou uma Gênova da Antiguidade, tem como notáveis negociantes marítimos e mantém relações com o extremo do mundo.
Posse de terra, investimentos individuais, empresas familiares: nesse povo tão ávido de ganho, precisamos levar em conta ainda a empresa ocasional, praticada pelos mais ricos e não pelos pequenos comerciantes; se um nobre romano é informado pelos amigos de que há um modo de ganhar muito dinheiro, imediatamente se põe a agir, mesmo que deva improvisar em tal negócio e nunca tenha praticado esse gênero de tráfico: agarrará a oportunidade que uma informação confidencial lhe fornece ou encarregará disso um de seus escravos. A falta de mercado geral multiplicava as oportunidades de realizar tais negócios, assim como a circulação sofrível de informação e a importância dos apoios políticos: havia, na classe dirigente e proprietária, uma cumplicidade de especuladores que tinham por privilégios a informação e a influência, mais poderosas que as leis do mercado. A economia patrimonial não era precisamente patriarcal e muito menos liberal.
A natureza das atividades econômicas depende evidentemente da riqueza, mas, em lugar de se especializar em classes sociais, varia de acordo com os indivíduos, os lugares e os momentos. Por fim, como saber de que se compunha a fortuna de um romano? Duas hipóteses. Suponhamos que Juvenal fale satiricamente de um boiadeiro, que o jovem Virgílio zombe de um muleteiro; não devemos concluir disso que o primeiro tocasse os bois com a própria mão e o segundo puxasse uma mula pela rédea: a sequência do texto prova que um dirigia uma empresa de serviços de transporte feito com mulas pelos caminhos lamacentos da planície do Pó e o outro era proprietário de vastos rebanhos. Assim também, M. de Charlus, desdenhoso da [pág. 132] burguesa América, falava da sra. Singer como de uma mulher que com as próprias mãos fabricava máquinas de costura. Se o boiadeiro em questão tivesse apenas um boi ou dois, os textos nem falariam dele, pelo menos não para caçoar.


História da vida privada, 1: do Império Romano ao ano mil / organização Paul Veyne ; tradução Hildegard Feist; consultoria editorial Jonatas Batista Neto. — São Paulo: Companhia das Letras, 2009.