tag:blogger.com,1999:blog-53776900509208949072024-03-18T10:16:31.380-03:00HISTÓRIA VIVAO que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons.
Martin Luther KingEduardohttp://www.blogger.com/profile/04436257793497288219noreply@blogger.comBlogger3262125tag:blogger.com,1999:blog-5377690050920894907.post-38831217443599407132023-03-19T00:26:00.007-03:002023-03-19T00:26:47.774-03:00Cinco dias de fúria: Revolta da Vacina envolveu muito mais do que insatisfação com a vacinação<br /><div style="text-align: center;"><img src="https://portal.fiocruz.br/sites/portal.fiocruz.br/files/imagemTopo/93-236-3000-3000-100_foto_dentro.jpg" /></div><br /><br /><div style="text-align: justify;">Luana Dandara (Portal Fiocruz)</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Foram apenas cinco dias, mas marcaram a história da saúde pública no Brasil. No início de novembro de 1904, o Rio de Janeiro, então capital federal, foi palco da maior revolta urbana que já tinha sido vista na cidade. <a href="https://portal.fiocruz.br/noticia/revolta-da-vacina-2">A Revolta da Vacina deixou um saldo de 945 prisões, 110 feridos e 30 mortos, segundo o Centro Cultural do Ministério da Saúde. </a>O estopim da rebelião popular foi uma lei que determinava a obrigatoriedade de vacinação contra a varíola. Mas havia um complexo e polêmico panorama social e político por trás da revolta, e diferentes fatores ajudam a explicar melhor os protestos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Dados do Instituto Oswaldo Cruz mostram que, naquele ano, uma epidemia de varíola atingiu a capital. O Rio de Janeiro, aliás, sofria com várias outras doenças (como peste bubônica, tuberculose e febre amarela) e era conhecido no exterior pelo nada elogioso apelido de “túmulo dos estrangeiros”. Só em 1904, cerca de 3.500 pessoas morreram na cidade vítimas da varíola, e chegava a 1.800 o número de internações pela enfermidade apenas em um dos hospitais cariocas, o Hospital São Sebastião.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Contexto histórico: República, abolição e reforma</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A vacina antivariólica já havia sido desenvolvida em 1796, pelo médico Edward Jenner, na Inglaterra. No Rio de Janeiro, a vacinação da doença era obrigatória para crianças desde 1837 e para adultos desde 1846, conforme o Código de Posturas do Município. No entanto, a regra não era cumprida porque a produção de vacinas era pequena, tendo alcançado escala comercial apenas em 1884. O imunizante também não era bem aceito pelo povo, ainda desacostumado com a própria ideia da vacinação, e diferentes boatos corriam na época, como o de quem se vacinava ganhava feições bovinas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Porém, havia muitos outros fatores que criavam um cenário de tensão na cidade, como explica o historiador e pesquisador Carlos Fidelis da Ponte, do Departamento de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). O país tinha abolido a escravidão e adotado o regime republicano há menos de quinze anos. Havia grupos descontentes com os rumos políticos e sociais do governo. “Entre eles os monarquistas que perderam seus títulos, parte do Exército formado por positivistas que não aprovavam a república oligárquica levada por civis, e ex-escravos que sofriam com a falta de políticas sociais e não conseguiam empregos, vivendo amontoados nos insalubres cortiços da capital”, conta.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Foi nesse contexto que o presidente Rodrigues Alves iniciou um projeto para mudar a imagem no país no exterior – o que significava, principalmente, mudar a imagem da capital federal. Junto com o prefeito do Rio de Janeiro, Pereira Passos, começam uma série de obras visando a remodelação da cidade. Parte do plano incluía uma campanha de saneamento e o combate às doenças, que ficou sob responsabilidade do <a href="https://portal.fiocruz.br/trajetoria-do-medico-dedicado-ciencia">médico Oswaldo Cruz. Nomeado diretor geral de Saúde Pública, formado no Instituto Pasteur, na França, em pouco tempo conseguiu controlar a febre amarela na cidade, por meio da limpeza de focos de mosquitos Aedes aegypiti e o isolamento de pessoas doentes.</a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">“O projeto de urbanização do governo começou a alargar as ruas da cidade, a exemplo do que tinha feito sido em Paris. Boa parte dos cortiços da região Central foram destruídos e a população pobre foi removida de suas moradias, dando início ao projeto de favelização. Além disso, foi lançado um código de posturas municipais que proibiu cães vadios e vacas leiteiras nas ruas, a venda de miúdos e carnes nas bancas da cidade, o costume de andar descalço pelo Centro, assim como passar com porco e gado. Isso tudo foi criando uma insatisfação enorme na população”, detalha o historiador.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A revolta</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="https://portal.fiocruz.br/video/revolta-da-vacina">A gota d’água para a Revolta da Vacina iniciar foi a aprovação da lei nº 1.261 em 31 de outubro de 1904, e a regulamentação em seguida, em 9 de novembro.</a> Sugerida por Oswaldo Cruz, tornava obrigatória a exigência de comprovantes de vacinação contra a varíola para a realização de matrículas nas escolas, obtenção de empregos autorização para viagens e certidões de casamentos. A medida previa também o pagamento de multas para quem resistisse à vacinação.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">"A população não aceitava ter a casa invadida para ser vacinado e havia uma forte discussão sobre o direito de o Estado mandar no corpo dos cidadãos. A mesma questão que voltou à tona recentemente, com vacinação contra a covid-19”, lembra Fidelis da Ponte. “Não foi apenas uma questão de ignorância da população, motivada pelos boatos. Figuras como Ruy Barbosa, um intelectual, fizeram discursos inflamados contra a obrigatoriedade da vacina. É importante entender a novidade que a vacinação representava e os muitos fatores relacionados à revolta”, completa.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Depois de a poeira abaixar</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Embora os protestos tenham começado pela vacinação, logo se dirigiu aos serviços públicos em geral e ao governo. A Revolta da Vacina durou cinco dias, e nas ruas da capital, bondes foram atacados, virados e queimados. Os manifestantes também romperam fiações elétricas, levantaram barricadas, derrubaram árvores e apedrejaram carros.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A lei que determinava a obrigatoriedade da imunização foi revogada em 16 de novembro, quando também foi decretado o estado de sítio no Rio de Janeiro. Por outro lado, de acordo com o historiador da Casa de Oswaldo Cruz, chegaram a ser presas diversas pessoas que não tinham relação com a revolta, como malandros e cafetões, dando seguimento ao projeto de construção da “Paris tropical”.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Para Fidelis da Ponte, a estratégia usada contra a varíola, por meio da vacinação obrigatória, errou, principalmente, no aspecto da comunicação. “Oswaldo Cruz escrevia tratados, artigos de jornal, textos de cunho acadêmico e científico que detalhavam como a vacina funcionava e os seus efeitos positivos. Mas a grande maioria da população era analfabeta ou semianalfabeta. Os críticos do médico se aproveitavam disso e utilizavam charges publicadas nos jornais, <a href="https://www.bio.fiocruz.br/index.php/br/noticias/916-revolta-sonora-oswaldo-cruz-as-vacinas-e-a-ironia-dos-carnavais?showall=1&limitstart">marchinhas</a> e mesmo os boatos para ironizarem a iniciativa. Eram armas poderosíssimas que convenciam o povo”, salienta o historiador.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O resultado foi que no ano de 1908, uma nova e intensa epidemia de varíola voltou a atingir o Rio de Janeiro, com mais de 6.500 casos, segundo dados da Casa de Oswaldo Cruz. Foi só então que a população começou a procurar voluntariamente os postos de saúde para se vacinar. <a href="https://portal.fiocruz.br/noticia/controle-da-variola-aponta-caminhos-para-saude-publica">Muito esforço seria necessário, ainda, para que o Brasil finalmente conseguisse erradicar a varíola em 1971.</a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">“A vacina é, certamente, o melhor instrumento de saúde pública já inventado. Na ausência dos imunizantes, teríamos tido muito mais mortes por um grande número de doenças e teríamos vivido muito mais pandemias. Infelizmente, a vacina voltou a ser questionada recentemente e precisamos defendê-la. A vacina é segura e funciona. A revolta deixa como importante ensinamento que a vacinação não é só uma questão médica, como também sociológica, cultural, antropológica e histórica. Para uma campanha de imunização ser bem-sucedida, é necessário o envolvimento de profissionais de diferentes áreas”, finaliza o historiador Carlos Fidelis da Ponte.</div><div class="blogger-post-footer">História Viva</div>Eduardohttp://www.blogger.com/profile/04436257793497288219noreply@blogger.com7tag:blogger.com,1999:blog-5377690050920894907.post-11747198218938457852023-01-12T20:42:00.003-03:002023-01-12T20:42:37.616-03:00AS PROSTITUTAS NA HISTÓRIA 1<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><iframe allowfullscreen='allowfullscreen' webkitallowfullscreen='webkitallowfullscreen' mozallowfullscreen='mozallowfullscreen' width='320' height='266' src='https://www.blogger.com/video.g?token=AD6v5dxsS8tgpArczDs4LERJlQkPpeziYzcCdYlM78z3w8eKP9EvvduqeJCFN4ETmWav5o17N_k0dQIIbN0ZCPEbrg' class='b-hbp-video b-uploaded' frameborder='0'></iframe></div><br /> <p></p><div class="blogger-post-footer">História Viva</div>Eduardohttp://www.blogger.com/profile/04436257793497288219noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-5377690050920894907.post-13870964817676916052023-01-12T18:13:00.003-03:002023-01-12T18:13:50.327-03:00DIÁRIO DE ANNE FRANK<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><iframe allowfullscreen='allowfullscreen' webkitallowfullscreen='webkitallowfullscreen' mozallowfullscreen='mozallowfullscreen' width='320' height='266' src='https://www.blogger.com/video.g?token=AD6v5dx78lRDuQ_qE8RFDxNgXayRGdbbr9Sdi4jNmrhDeEGqm8YyVZ7gjr6QHNjIIjhKrN0U-xav_fcGVm49y0A2Nw' class='b-hbp-video b-uploaded' frameborder='0'></iframe></div><br /> <p></p><div class="blogger-post-footer">História Viva</div>Eduardohttp://www.blogger.com/profile/04436257793497288219noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5377690050920894907.post-48543750245767953532023-01-10T08:18:00.000-03:002023-01-10T08:18:34.003-03:00Entregadores do século 19 paralisaram Salvador na primeira greve do Brasil<p> <span style="color: #4d4d4d; font-family: Dosis, sans-serif, Arial; font-size: 16px;">Entregadores do século 19 paralisaram Salvador na primeira greve do Brasil </span></p><p><span style="color: #4d4d4d; font-family: Dosis, sans-serif, Arial; font-size: 16px;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEiwpDg3U8jqgf8W3OFa77S02Xa7cvZh8joIKXxWInCkTvlxKdBY8JimzEuug28JyzPFpfeEvjlBldh5cJn5_JEu8NOwYbyx9HTiQxrXm5SkPqX0XzI550sskqN_Tn2g6w-OYsRYeGSI8znrdqkjTV6v3iWFqpvfClncBrcInVsiVZNus6p-0AmfxalsDA" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img alt="" data-original-height="506" data-original-width="900" height="180" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEiwpDg3U8jqgf8W3OFa77S02Xa7cvZh8joIKXxWInCkTvlxKdBY8JimzEuug28JyzPFpfeEvjlBldh5cJn5_JEu8NOwYbyx9HTiQxrXm5SkPqX0XzI550sskqN_Tn2g6w-OYsRYeGSI8znrdqkjTV6v3iWFqpvfClncBrcInVsiVZNus6p-0AmfxalsDA" width="320" /></a></div><br /><p></p><p style="text-align: center;"><span style="color: #4d4d4d; font-family: Dosis, sans-serif, Arial;"><i><span style="font-size: xx-small;">Cadeira de arruar, 1860 Imagem: ...</span></i></span><span style="color: #4d4d4d; font-family: Dosis, sans-serif, Arial;"><i><span style="font-size: xx-small;">Acervo Instituto Moreira Salles Marilia Marasciulo</span></i> </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="color: #4d4d4d; font-family: Dosis, sans-serif, Arial; font-size: 16px;">As ruas de Salvador amanheceram estranhamente calmas no dia primeiro de junho. Entregadores e carregadores, que até então vinham mantendo a cidade funcionando graças aos seus serviços, decidiram cruzar os braços em protesto contra o que consideravam medidas e tarifas abusivas — que oneravam ainda mais o trabalho já árduo. O ano poderia ser 2020 e o episódio em questão poderia ser o "Breque dos Apps", paralisação nacional de entregadores de aplicativos de delivery que pedem melhores.</span></p><div class="blogger-post-footer">História Viva</div>Eduardohttp://www.blogger.com/profile/04436257793497288219noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5377690050920894907.post-50519263743185931052023-01-10T08:10:00.002-03:002023-01-10T08:10:38.907-03:00Revolta da Vacina<p style="text-align: justify;"> <span style="color: #4d4d4d; font-family: Dosis, sans-serif, Arial; font-size: 16px;">O que foi a Revolta da Vacina, e quais suas semelhanças com o mundo de 2020 </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="color: #4d4d4d; font-family: Dosis, sans-serif, Arial; font-size: 16px;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEg7NkK7qAu_F588aInPW2GxfHb0Mbsut2hYuE9GwTdYR5Plj9Gvlh6HwhXfX895YmmSo9EvXWGl-ix-nndaRaGXoTXJ2__Xi2h9vOKPNXdMlAueX4D54JuuXr93PfK6Cb4bpe1b4ckQ99WXQHsdK9dxHLBqAV0ZMuAjsww1WrddazMKSZ3LR6QStDKSVg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img alt="" data-original-height="450" data-original-width="450" height="240" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEg7NkK7qAu_F588aInPW2GxfHb0Mbsut2hYuE9GwTdYR5Plj9Gvlh6HwhXfX895YmmSo9EvXWGl-ix-nndaRaGXoTXJ2__Xi2h9vOKPNXdMlAueX4D54JuuXr93PfK6Cb4bpe1b4ckQ99WXQHsdK9dxHLBqAV0ZMuAjsww1WrddazMKSZ3LR6QStDKSVg" width="240" /></a></div><br /><br /><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="color: #4d4d4d; font-family: Dosis, sans-serif, Arial; font-size: 16px;">Charge contra Oswaldo Cruz Imagem: </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="color: #4d4d4d; font-family: Dosis, sans-serif, Arial; font-size: 16px;">A luta contra uma epidemia, uma sociedade em plena reforma de costumes, guerra entre informação verdadeira e fake news, negacionistas em polvorosa e até rumores de golpe de Estado. Parece 2020, mas é 1904. A Revolta da Vacina, motim popular ocorrido no Rio de Janeiro, guarda evidentes semelhanças com o mundo de hoje. Mas não vale repetir o chavão de que a história sempre se repete: o evento teve causas, efeitos, dimensão e localização diferentes dos que ocorrem atualmente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="color: #4d4d4d; font-family: Dosis, sans-serif, Arial;"><i>https://tab.uol.com.br/</i></span></p><div class="blogger-post-footer">História Viva</div>Eduardohttp://www.blogger.com/profile/04436257793497288219noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5377690050920894907.post-18453095709891117972023-01-10T08:04:00.002-03:002023-01-10T08:04:15.586-03:00Revolta da Vacina<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><iframe allowfullscreen='allowfullscreen' webkitallowfullscreen='webkitallowfullscreen' mozallowfullscreen='mozallowfullscreen' width='320' height='266' src='https://www.blogger.com/video.g?token=AD6v5dztzDEeDLsHNVt-r2S3I0qRWVmmsAceX8-vaUlf4GtKIAHizupJWvUIx8OmD9Bydv43C1-i7jxDFVWlTPtPLA' class='b-hbp-video b-uploaded' frameborder='0'></iframe></div><br /> <p></p><div class="blogger-post-footer">História Viva</div>Eduardohttp://www.blogger.com/profile/04436257793497288219noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5377690050920894907.post-6422507606112864982022-11-23T15:43:00.000-03:002022-11-23T15:43:55.084-03:00SER NEGRO NO BRASIL: A ESCRAVIDÃO COMO ELEMENTO CIVILIZATÓRIO | JAQUELINE CONCEIÇÃO<p> </p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><iframe allowfullscreen='allowfullscreen' webkitallowfullscreen='webkitallowfullscreen' mozallowfullscreen='mozallowfullscreen' width='320' height='266' src='https://www.blogger.com/video.g?token=AD6v5dyjevb46P7P-h1uNUIZNg1Mu9OWNv1uSK0Rdhpbq2Pikck92Cvn1i17GKlfcLpPRn0ttsiDfEO2hiRP-4yr-w' class='b-hbp-video b-uploaded' frameborder='0'></iframe></div><br /><p></p><div class="blogger-post-footer">História Viva</div>Eduardohttp://www.blogger.com/profile/04436257793497288219noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5377690050920894907.post-65935279203016425272022-11-23T15:22:00.002-03:002022-11-23T15:22:05.312-03:00A REFLEXÃO DO ESTADO RACISTA _ SILVIO LUIZ DE ALMEIDA<p> </p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><iframe allowfullscreen='allowfullscreen' webkitallowfullscreen='webkitallowfullscreen' mozallowfullscreen='mozallowfullscreen' width='320' height='266' src='https://www.blogger.com/video.g?token=AD6v5dzCgGCIr_-_py8u2sN9_pTYF_Qn9RJ6xzcGR1p-jdoOkoC-oDqOGsxa16Ux5iGj6G4bOaKr8ovjLwY--i2m8w' class='b-hbp-video b-uploaded' frameborder='0'></iframe></div><br /><p></p><div class="blogger-post-footer">História Viva</div>Eduardohttp://www.blogger.com/profile/04436257793497288219noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5377690050920894907.post-42723055775502728152022-11-22T00:23:00.002-03:002022-11-22T00:23:40.774-03:00Ninguém está acima da cidadania - Lili Schwarcz<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><iframe allowfullscreen='allowfullscreen' webkitallowfullscreen='webkitallowfullscreen' mozallowfullscreen='mozallowfullscreen' width='320' height='266' src='https://www.blogger.com/video.g?token=AD6v5dz93Ijwx_FZ8_Xss7cxCiAB0x46FdxFE-8miQQz_VogObTJvcIhD0soG-ITdVDauzbzSznlsEYM5jLVXD5j0Q' class='b-hbp-video b-uploaded' frameborder='0'></iframe></div><br /> <p></p><div class="blogger-post-footer">História Viva</div>Eduardohttp://www.blogger.com/profile/04436257793497288219noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5377690050920894907.post-22943404666848161182022-11-21T22:33:00.000-03:002022-11-21T22:33:52.210-03:00Aula | O que é Liberdade de Expressão? Lili Schwarcz<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><iframe allowfullscreen='allowfullscreen' webkitallowfullscreen='webkitallowfullscreen' mozallowfullscreen='mozallowfullscreen' width='320' height='266' src='https://www.blogger.com/video.g?token=AD6v5dwWUmz-0RjXkrXJLiM_4dHYD2IaPooxclFjnYb8oxOWng17SSKbFnPbeOz4WnGiXNVzYdRRg878O4P9bwgybg' class='b-hbp-video b-uploaded' frameborder='0'></iframe></div><br /> <p></p><div class="blogger-post-footer">História Viva</div>Eduardohttp://www.blogger.com/profile/04436257793497288219noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5377690050920894907.post-92037871943089120052022-11-21T22:03:00.003-03:002022-11-21T22:03:56.046-03:00Os Vários Sequestros da Independência - Lili Schwarcz<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><iframe allowfullscreen='allowfullscreen' webkitallowfullscreen='webkitallowfullscreen' mozallowfullscreen='mozallowfullscreen' width='320' height='266' src='https://www.blogger.com/video.g?token=AD6v5dxkFJ2gY0xLyLzEkkdF3PpN7Uj0Yq9-hYhqadrb_3-LX94rs8-is_z4YAKRgqYjwhF55R1ZfBTgngR3G_41cg' class='b-hbp-video b-uploaded' frameborder='0'></iframe></div><br /> <p></p><div class="blogger-post-footer">História Viva</div>Eduardohttp://www.blogger.com/profile/04436257793497288219noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5377690050920894907.post-34240101592656758672022-11-21T21:31:00.000-03:002022-11-21T21:31:49.163-03:00Biografia | Euclides da Cunha - Lili Schwarcz<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><iframe allowfullscreen='allowfullscreen' webkitallowfullscreen='webkitallowfullscreen' mozallowfullscreen='mozallowfullscreen' width='320' height='266' src='https://www.blogger.com/video.g?token=AD6v5dzdT-Sy6375GGnAr0_eP-y6GCWj52cOV1AC_YyLSMiEic9yjqSow8MMwqHhMjPrvvmUasqRFUWn_BNqmBXcRw' class='b-hbp-video b-uploaded' frameborder='0'></iframe></div><br /> <p></p><div class="blogger-post-footer">História Viva</div>Eduardohttp://www.blogger.com/profile/04436257793497288219noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5377690050920894907.post-87083865952224111192022-11-20T02:34:00.003-03:002022-11-20T02:34:26.261-03:00RACISMO CIENTÍFICO NA FORMAÇÃO DA SUBJETIVIDADE CRIMINOLÓGICA BRASILEIRA<div style="text-align: justify;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEgNVL7jxvl7a8XLwifVKep5nViJiSZelg9sg-Br4sSgvNlHGucvKURfMlAaLkvOoxo9M8sSG2MaZKoFsOl4iDDcE0KmXvqX4CEaKhwB3DcwKY2oDuSzTjWcYFJFmmqWQLRNDfpSBA8jcvcXwoOzrK0Vs-X1HG0lcdD74zreCNhKmW6a1D-nPqf_ivpurA" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img alt="" data-original-height="347" data-original-width="723" height="154" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEgNVL7jxvl7a8XLwifVKep5nViJiSZelg9sg-Br4sSgvNlHGucvKURfMlAaLkvOoxo9M8sSG2MaZKoFsOl4iDDcE0KmXvqX4CEaKhwB3DcwKY2oDuSzTjWcYFJFmmqWQLRNDfpSBA8jcvcXwoOzrK0Vs-X1HG0lcdD74zreCNhKmW6a1D-nPqf_ivpurA" width="320" /></a></div><br />RACISMO CIENTÍFICO NA FORMAÇÃO DA SUBJETIVIDADE CRIMINOLÓGICA BRASILEIRA</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">As decorrências e desdobramentos do racismo científico no Brasil são peças-chave que estruturam hoje a subjetividade da população brasileira. Observar como o conceito de raça, em seu sentido biológico, foi capaz de moldar ideologias vigentes, especialmente no campo da criminologia, e constantemente aperfeiçoadas para a perpetuação de uma organização social de poder e controle hegemônico é essencial para a compreensão dos problemas sistêmicos raciais que vigoram no Brasil atual. Estes problemas foram forjados ainda no momento pós-escravatura em que se formularam as primeiras justificativas para categorizar e classificar grupos da humanidade.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Dos argumentos que se apoiam no determinismo biológico para sustentar que as diferenças sociais e econômicas são herdadas e refletem a biologia, deve-se elencar algumas das fortes influências advindas deste mesmo determinismo biológico na operação do Poder Judiciário brasileiro e como se articulam as ações por ele articuladas. A concepção determinista é evidente utilidade de grupos detentores do poder, para preservação do status quo e estratificação social e neste caso, o Poder Judiciário se apropria institucionalmente da concepção.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Resultados de um projeto político, científico e religioso, as classificações hierarquizadas muito contribuíram para que hoje, no Brasil, o número de pessoas privadas de liberdade ocupe o terceiro lugar no ranking mundial. Foi através da ciência que se institucionalizou crenças e estratégias de controle pela branquitude, quando, a partir do “irrefutável”, se determinou a separação das raças em superiores e inferiores, que mais tarde configurou as concepções de crime e criminoso.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ao tratarmos da função social da ciência, muito se acredita que a mesma se encontra em estado de neutralidade, não sendo capaz de carregar estigmas racistas, misóginos, entre outras complexidades que são estruturais na construção da nossa sociedade. Podemos considerar o objetivo político na idealização das pesquisas, onde, para a comprovação de uma ideia pré-concebida, muito dificilmente os processos de pesquisa não serão compostos por suposições enviesadas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Sendo assim, pode-se afirmar a possibilidade da interferência dos pressupostos culturais na produção de conhecimento científico, através dos questionamentos que se buscam responder em qualquer pesquisa, que de certa forma possuem a flexibilidade de partir de diferentes premissas que compõem o pesquisador. Estas interferências geram resultados que podem impactar direta e concretamente a organização social.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A teoria do determinismo biológico está relacionada a uma certeza biológica. Pode ser lida enquanto uma crença, uma doutrina ideológica e filosófica, que coloca como comum e hereditária as ações de grupos humanos, suas características físicas, seus intelectos e comportamentos, ao mesmo tempo que classifica e categoriza esses grupos em classes específicas. Ou seja, o comportamento de um indivíduo pode ser justificado por sua composição genética, dependente de uma causalidade, estando eternamente condicionado a seguir mecanismos que não se pode tomar controle. Quando consideramos que a cultura influencia na produção de conhecimento, nota-se que o conceito de determinismo biológico é apropriado, em sua vasta maioria, por aqueles que ocupam os espaços de poder social e econômico.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No que diz respeito aos processos empíricos de comprovação dessa teoria, a craniometria se estabelece como um dos principais apoios. Como consequência dos estudos práticos de uma ciência branca, a coleta de dados ocorrida através manuseio dos crânios de pessoas de diferentes etnias e “raças”, serviu para afirmar o nível de inteligência pelo tamanho do cérebro e detalhes no formato do crânio. Essa inteligência se ordena pela hierarquização intelectual de diferentes povos, sendo o branco europeu localizado no topo da pirâmide, povos indígenas ao meio e a base composta pela população negra.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A partir daí se iniciam os processos empíricos que buscavam comprovar a teoria da inferioridade das raças. Samuel George Morton se empenha nestes processos com a medição da capacidade craniana de mais de mil crânios. Suas pesquisas foram publicadas e constataram a hierarquia da pirâmide composta por brancos ao topo, indígenas ao meio e negros na base. Outros pesquisadores apontam que os estudos de Morton não podem ser interpretados enquanto estudos intencionais, uma vez que se publica todos os processos, abrindo espaço para possíveis contestações, que foi o que aconteceu. A crítica parte da negligência de dados fundamentais para alcançar as corretas proporções do tamanho dos cérebros, como indicadores de idade, sexo, altura, etc. É com base nestas assertivas que se faz possível a visualização dos equívocos cometidos por grandes cientistas que mudam o caminho da história e determinam condições sociais para populações inteiras.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div> <div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Estereótipo do criminoso no Brasil</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Pensando nessas determinações sociais que se difundem, quando voltamos o olhar para as Américas, povos indígenas e africanos escravizados são classificados enquanto espécies sequer humanas, categorizados como animalescos e selvagens, enquanto o branco europeu se coloca neste lugar de lucidez advinda da raça branca, um ser racional, civilizado, cristão.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Das divergências que rondavam o racismo científico brasileiro estavam as discussões sobre a miscigenação das raças e sobre o risco de degeneração que poderiam vir a ocorrer – o mesmo perigo temido pela teoria poligenista que considera a existências de diferentes espécies humanas, o que explica as diferentes ocupações na escala social, e neste caso a miscigenação era encarada como perigo, uma vez que o poderio de uma espécie estava depositada em sua pureza, não abrindo espaço para reversão do quadro degenerativo.. São essas discussões que dão luz à ideia de embranquecimento, como possibilidade de se racionalizar sentimentos de inferioridade, supostamente afirmados pelo determinismo biológico.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Por outro lado, encontravam-se aqueles que acreditavam em uma regeneração racial através do embranquecimento, uma vez que o mesmo se desdobraria no desaparecimento de negros e indígenas. O antropólogo Kabenguele Munanga aponta para a nossa herança europeia que incapacita a construção de uma identidade que considere povos africanos e indígenas, que forjaram o Brasil (MUNANGA, 2004), e pode-se considerar que esta mesma herança é formuladora da nossa subjetividade enquanto povo brasileiro.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No Brasil, até os anos 1930 toda e qualquer reflexão científica feita sobre “raça” estava apoiada nas normas do racismo científico, mesmo que ao final do século XIX já se tinha uma perspectiva de um paraíso racial, onde o mito da democracia se fundava junto das políticas de miscigenação. Este paraíso ainda bebia das teorias de um racismo científico, inclinado para a regeneração como saída. A partir daqui, tem-se a construção de políticas sociais e econômicas que visavam a entrada de imigrantes europeus para iniciar o processo de branqueamento.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Pareada a estas políticas de embranquecimento, se fazia necessária a cooptação social para que a crença se sustentasse. A subjetividade da população brasileira moldada no objetivo de legitimar as ações do estado foi (e se é) fundamental para dar base as violências que atravessam corpos indígenas e corpos negros. Atrelado às heranças do racismo biológico, das políticas de branqueamento e do afastamento a toda e qualquer característica dos ditos degenerados, o Brasil trabalha fortemente na construção de estereótipos no período pós-escravatura.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Referente ao negro, o estereótipo social de jovem delinquente e criminoso é uma das principais construções. A colaboração do racismo científico para a formulação deste estereótipo se dispõe na relação dos estudos cranianos e a antropologia criminal, elaborada em 1876 por Cesare Lombroso, médico e criminólogo, em sua obra “O Homem Delinquente”, que colocava a criminalidade como algo inato ao ser humano, e por meio de análises das ossadas podia-se mensurar o nível dessa criminalidade. Em sua teoria, aqueles dotados de traços anatômicos específicos, tenderiam ao comportamento criminoso, e não diferente de todos os outros teóricos, estes traços eram característicos de povos julgados primitivos como negros, indígenas e ciganos. Ou seja, buscou-se afirmar que a tendência à criminalidade estava diretamente ligada à origem biológica do transgressor.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Para a afirmação de que os criminosos possuíam características físicas, biológicas e psíquicas em comum, foram feitas análises em mais de 25 mil detentos em penitenciárias europeias e mais de 400 autópsias. Destas análises, Lombroso concluiu características como assimetria craniana, crânios menores, face ampla e larga, estatura alta, mãos, entre outros fatores que aparecessem no indivíduo estudado eram os que declaravam a criminalidade nata.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div> <div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Justificativas da anormalidade do criminoso e o controle social</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Nas descrições das características apresentadas por Lombroso, o atavismo se faz necessário para a constituição da anormalidade do criminoso. Mas o que viria a ser um ser atávico? Basicamente, atávico é aquele cuja predisposição ao crime se apresenta de forma inata, uma genética favorável e hereditária que atravessa gerações. Esta colocação serviu de fundamentação para a subjetividade da população brasileira se debruçar nos estigmas racistas que colocam os negros neste lugar de degeneração sem qualquer possibilidade de “cura”, e também de legitimar ações de instituições de controle que traduzem a população negra a um inimigo social.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Para nos depararmos com o cenário nacional de hoje, certamente que os estudos eugênicos de Lombroso foram abraçados para a formulação do pensamento criminológico brasileiro que buscava entender as transgressões e os transgressores.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O grande equívoco aqui colocado, seja ele intencional ou não, é o enfoque que se dá ao estudo da criminologia com base em aspectos físico-biológicos, sem elencar fatores importantíssimos como a desigualdade social e todos os problemas advindos dela. Sendo assim, a cultura criada em volta das discussões que buscavam compreender as ações dos criminosos, eram sustentadas por raízes excepcionalmente eugênicas e, consequentemente, racistas. Os desdobramentos destas raízes são as principais fontes de violências que reverberam nas atualidades com a criação massiva de presídios e políticas de criminalização das práticas da população negra, com o aumento populacional do cárcere, composto por maioria negra, número de morte de pessoas negras e periféricas pela polícia militar, entre outros fatores como condições honestas de existência que lhes são negadas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Para a efetivação destas ações, o Poder Judiciário se faz uma das instituições mais influentes, uma vez que o mesmo “é a instância que possibilita e assegura as condições de exploração que um grupo de indivíduos exerce sobre outro na sociedade”, (RAUTER, 2004, pg. 19). É justamente o Poder Judiciário, juntamente com a medicina social, com as polícias, entre outros, que atua na manutenção dos mecanismos de opressão fazendo jus às teorias que remontam o racismo biológico sem levar em consideração os problemas estruturais que marcam o país que perdurou a escravidão por mais de 400 anos. São estas mesmas teorias que circunscrevem corpos negros, tornando-os passíveis de qualquer tipo de violência vide seu estigma de raça inferior, animalesca e selvagem. Para estes cabem as jaulas dos presídios que não são contestados pela sociedade civil. Cabem as “balas perdidas” nos morros, favelas e vielas de todo o Brasil. Cabem inúmeras possibilidades violentas no simples ato de caminhar na rua.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Dos saberes formulados pelo racismo científico, as práticas judiciárias se tornam instrumentos que validam os processos teorizados. A associação da anormalidade ao criminoso, que forja a subjetividade da população brasileira, obtém sucesso justamente pelos avanços e modificações do racismo biológico que se justifica também pelos hábitos, vícios e comportamentos, segundo o criminologista italiano Enrico Ferri.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Com este discurso de degeneração calcado nos aspectos físico-biológicos, tem-se criada a proposta de eliminação daquele que além de socialmente inferior, é um inimigo a ser combatido, através do aumento de penas, pela repressão das leis. Tudo em nome da supremacia branca, da manutenção do status quo, e da continuidade da aniquilação do povo preto, devidamente legitimado pela subjetividade objetivamente formada da população brasileira.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Por Alice de Carvalho</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Bibliografia</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">ALVAREZ, M. C. A criminologia no Brasil ou como tratar desigualmente os desiguais. Dados, Rio de Janeiro , v. 45</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">GUIMARÃES, A. S. A. Racismo e anti-racismo no Brasil. São Paulo: Editora 34, 1999.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">GOULD, S. J.; SIQUEIRA, Valter Lellis. A falsa medida do homem. São Paulo: Martins Fontes, 1991.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">LOMBROSO, C. O homem delinquente. São Paulo: Ícone, v. 80, 2007.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">MUNANGA, K. O negro na sociedade brasileira:resistência, participação e contribuição. Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2004.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Editora Perspectiva SA, 2016.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">RAUTER, C. Criminologia e subjetividade no Brasil. Instituto Carioca de Criminologia, 2003.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">SCHWARCZ, L. K. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil: 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.</div><div style="text-align: justify;">https://ittc.org.br/</div><div class="blogger-post-footer">História Viva</div>Eduardohttp://www.blogger.com/profile/04436257793497288219noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5377690050920894907.post-32659158099204696182022-08-27T19:53:00.005-03:002022-08-27T19:53:35.474-03:00A coragem da verdade<p><br /></p><div class="post-header" style="background-color: white; color: #999999; font-family: Arial, Tahoma, Helvetica, FreeSans, sans-serif; font-size: 13.5px; line-height: 1.6; margin: 0px 0px 1.5em;"><div class="post-header-line-1"></div></div><div class="post-body entry-content" id="post-body-4150647675644498993" itemprop="description articleBody" style="background-color: white; color: #333333; font-family: Arial, Tahoma, Helvetica, FreeSans, sans-serif; font-size: 14.85px; line-height: 1.4; position: relative; width: 578px;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEicWTCjfSXMJxxW9RyGhIIgUlVanQ1LFOP_SEd1Q_DWxCAlZ1L8Vb9tYaDlqe8mfDAcxwEhMjN8WiksbJjKKk1QyInwMYqNL2yxBRXUKU8abqWaGpvbvnWugYF4orfyZSP437wwN7jLB__T/s1600/A+coragem+da+verdade.JPG" imageanchor="1" style="color: #336699; margin-left: 1em; margin-right: 1em; text-decoration-line: none;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEicWTCjfSXMJxxW9RyGhIIgUlVanQ1LFOP_SEd1Q_DWxCAlZ1L8Vb9tYaDlqe8mfDAcxwEhMjN8WiksbJjKKk1QyInwMYqNL2yxBRXUKU8abqWaGpvbvnWugYF4orfyZSP437wwN7jLB__T/s1600/A+coragem+da+verdade.JPG" style="border: none; position: relative;" /></a></div><br style="font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small; line-height: 12px;" /><span class="textoTimes12Autor"><span style="font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11px; font-style: italic;">Michel Foucault, Ed. Martins Fontes</span><br /><br /><span class="textoTimes12"></span></span><br /><div style="font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px; line-height: 14px; text-align: justify;">A questão da constituição do sujeito perpassa a obra de Michel Foucault, e neste curso – o último antes de sua morte – ele questiona os modos de constituição ética dos sujeitos por meio da coragem de dizer-a-verdade (<em>parresía</em>). A <em>parresía</em> é uma missão de vida filosófica e traduz-se em coragem de mostrar ao outro a “verdadeira vida”.</div><div style="font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px; line-height: 14px; text-align: justify;">Para tanto, Foucault perfaz a história da <em>parresía</em>desde a ironia socrática, que alia o dizer da verdade ao cuidado de si e do outro (<em>epiméleia</em>). A prática de verdade socrática não diz respeito à vida na pólis, mas é atinente ao indivíduo e suas formas de conduzir-se em relação a si mesmo e aos outros.</div><div style="font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px; line-height: 14px; text-align: justify;">Por conseguinte, Foucault conclui que a <em>parresía</em>socrática conduz às duas grandes concepções filosóficas ocidentais: de um lado, a metafísica platônica, pautada nas questões da alma e no cuidado de si mesmo com o fim de alcançar outro mundo – a verdade é, pois, transcendental. De outro lado, a constituição de uma estética da existência, em que a vida mesma manifesta a verdade, na resistência às convenções sociais e na insistência em escandalizar o mundo, mostrando “a vida outra”, que não a imposta socialmente.</div><div style="font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px; line-height: 14px; text-align: justify;">Os cínicos e seu inflexível desafio às normas seriam o exemplo dessa manifestação da verdade em sua concretude. Por fim, Foucault chega à <em>parresía</em> cristã, a qual atravessa a busca platônica pelo “outro mundo” engendrando neste mundo uma “vida outra”, de ascese e obediência à verdade transcendente.</div><div style="font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px; line-height: 14px; text-align: justify;">Enfim, <em>A coragem da verdade</em>demonstra que a constituição de modos de ser (<em>éthos</em>) exige uma relação efetiva do indivíduo consigo mesmo e com o outro. Nesse sentido, se a manifestação da verdade exige alteridade, um posicionamento verdadeiro sobre a própria vida só se mostra pela coragem.</div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px; line-height: 14px;"><br /></span></div><br /><span style="font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px; line-height: 14px;">Katiuska Izaguirry Marçal</span><br /><span style="font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px; line-height: 14px;">Graduada em Filosofia e mestranda em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)</span><br /><span class="textoTimes12Autor" style="font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11px; font-style: italic;"><span class="textoTimes12" style="font-size: 12px; font-style: normal; line-height: 14px;"><span style="background-color: #d6d6d6; color: #6e6e6e; font-size: 11.2px; font-weight: bold; line-height: 10.4px;">Le Monde Diplomatique Brasil </span></span></span></div><div class="blogger-post-footer">História Viva</div>Eduardohttp://www.blogger.com/profile/04436257793497288219noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5377690050920894907.post-51624573740072724902022-07-02T11:03:00.001-03:002022-07-02T11:03:25.155-03:00Medicina tropical nos séculos XIX e XX<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEihl7tu0vz5PplC_vbcqg6oQOcf8_LXwPGLpkQKVY0-VEZhYQPvMWkbAttlidK7m4R06oDHVAcch9kmoS3zA_sDvL4yF6fPRCYpOTnrySOZF6zvVePMBn0sXo16pebQxVXOHCjUcnIrD5Pd8NC4dYPO8qntqigXQ1t7OvcQ82U8Ld9QLlnaoQcc0WW0-g/s278/doen%C3%A7as.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="181" data-original-width="278" height="181" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEihl7tu0vz5PplC_vbcqg6oQOcf8_LXwPGLpkQKVY0-VEZhYQPvMWkbAttlidK7m4R06oDHVAcch9kmoS3zA_sDvL4yF6fPRCYpOTnrySOZF6zvVePMBn0sXo16pebQxVXOHCjUcnIrD5Pd8NC4dYPO8qntqigXQ1t7OvcQ82U8Ld9QLlnaoQcc0WW0-g/s1600/doen%C3%A7as.jpg" width="278" /></a></div><br /><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><br /><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Em abril de 2012, teve lugar em Lisboa, no Instituto de Higiene e Medicina Tropical, o primeiro Encontro Luso-Brasileiro de História da Medicina Tropical, com o subtítulo: “A medicina tropical nos espaços nacionais, coloniais e pós-coloniais (séculos XIX-XX)”. O encontro integrou as comemorações do 110º aniversário de fundação da Escola de Medicina Tropical de Lisboa, antecessora do atual Instituto de Higiene e Medicina Tropical, comemorando-se também, na mesma ocasião, o 60º aniversário do primeiro Congresso Nacional de Medicina Tropical, realizado na capital portuguesa em 1952.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Aquele primeiro encontro de investigadores brasileiros e portugueses dedicados ao estudo da história da medicina tropical, ou de temas correlatos, foi organizado com o decisivo apoio de Paulo Ferrinho e Zulmira Hartz, diretor e vice-diretora do instituto lisboeta, e a importante participação de Isabel Amaral, do Departamento de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Nova de Lisboa.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Nas diversas mesas apresentadas ao longo de quatro dias, foram abordados os temas a seguir. “Trópicos e medicina” debatia os significados atribuídos à medicina tropical como objeto de estudo; as representações construídas em diferentes contextos históricos e formações sociais a respeito da categoria “trópico”; e as reflexões ou controvérsias que a ideia de “tropicalidade” suscitara no pensamento sobre as sociedades e nações luso-afro-ásio-brasileiras. “Saberes e práticas médicas: histórias e tradições plurais” tinha em mira a reflexão sobre as formas como os conhecimentos e as técnicas da medicina tropical foram aplicados no combate a doenças em territórios nacionais e coloniais, em diferentes contextos históricos. Seriam aí também contempladas as relações de domínio, exclusão ou permeabilidade com medicinas nativas e saberes tradicionais, assim como as artes de curar e as estruturas de assistência implementadas no contexto luso-afro-ásio-brasileiro. O terceiro eixo de discussões do primeiro Encontro Luso-Brasileiro de História da Medicina Tropical foi “Tráfico de escravos, fluxos migratórios e circulação de doenças” entre Portugal, Brasil, África e Ásia nos séculos XIX e XX. “Atores, doenças e instituições” enfeixava comunicações sobre trajetórias e inter-relações de instituições e outros atores vinculados às áreas de medicina tropical, microbiologia e saúde pública nos contextos referidos acima. Nas mesas alinhadas a esse tema, foram incluídos trabalhos que diziam respeito a expedições científicas e programas de investigação no âmbito das ciências biológicas e biomédicas visando ao controle de doenças incidentes em suas diferentes zonas geográficas. Por último, o encontro debateu “Políticas internacionais de saúde”, histórias comparativas, trajetórias e inter-relações de instituições e outros atores vinculados a ações globais em medicina tropical, microbiologia e saúde pública nos países lusófonos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Tais temas foram desigualmente cobertos pelos trabalhos apresentados, e menos da metade chegou efetivamente às páginas da atual <a href="http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/volume-21-%E2%80%A2-n-2-%E2%80%A2-abr-jun-2014/">edição de</a><a href="http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/volume-21-%E2%80%A2-n-2-%E2%80%A2-abr-jun-2014/"> História, Ciências, Saúde – Manguinhos</a>, sabendo-se que alguns foram veiculados em outras edições da revista, e que a presente edição traz trabalhos que não fizeram parte do encontro, tendo porém afinidade com a temática do dossiê “Medicina no contexto luso-afro-brasileiro”.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Antes de chegar a ele, os leitores encontrarão seis instigantes artigos submetidos de forma espontânea sobre temas variados: as representações sociais do mundo rural na Europa e em outras regiões; um panorama das antropologias médica, do sofrimento e do biopoder nos EUA e na Europa; relacionados à Argentina, dois trabalhos: modos de pensar o esporte destinado a deficientes físicos nos anos 1950 e 1960, e câncer como objeto científico e problema sanitário no começo do século XX; um artigo discute as extensões possíveis do darwinismo ao âmbito da cultura e outro, disponível no portal Scielo desde janeiro, traz à edição em papel o estudo sobre as redes sociotécnicas subjacentes à Liga de Acupuntura da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Esta <a href="http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/volume-21-%E2%80%A2-n-2-%E2%80%A2-abr-jun-2014/">edição de HCS-Manguinhos</a> traz ainda a coligação de duas resenhas e uma entrevista que têm relação com Ernesto Laclau, teórico argentino recém-falecido que inovou os estudos sobre a teoria do discurso, tendo publicado A razão populista, um dos livros aqui resenhados. A entrevista é com Chantal Mouffe, companheira de Laclau e, como ele, autora de importantes contribuições ao uso da teoria do discurso nas democracias contemporâneas. O segundo livro resenhado é O lugar da diferença no currículo de educação em direitos humanos, de Aura Helena Ramos, educadora que faz uso desse referencial teórico em seu estudo sobre o lugar da diferença na educação em direitos humanos, e que participa da entrevista feita com Mouffe.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Termino esta carta com uma dupla homenagem: a Ruth Barbosa Martins, fundadora e por longo tempo editora desta revista, jornalista competentíssima, amiga do coração, que se aposenta deixando um rastro luminoso de realizações e amizades; e Isnar Francisco de Paula, que secretariou a revista desde as origens, com seu jeito suave e eficiente. Aposentadas, bem longe agora da “ralação” cotidiana, Isnar, Ruth e outra companheira querida, Ângela Pôrto, muito brejeiras, acenam para veteranos, como o autor destas linhas, com a tentadora promessa de gozarmos também do justo e merecido direito à preguiça.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Jaime L. Benchimol</div><div style="text-align: justify;">Editor científico</div><div style="text-align: justify;">http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/</div><div class="blogger-post-footer">História Viva</div>Eduardohttp://www.blogger.com/profile/04436257793497288219noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5377690050920894907.post-2232786823669154442022-06-29T01:14:00.004-03:002022-06-29T01:14:23.109-03:00Denúncias de ‘corrupção governamental’ e conflitos políticos no segundo governo Vargas (1951-1954)<div style="text-align: justify;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgIpOKyXnNTw9cLJCHjMbShcThuw3nBbaAe4gx0159yj8tdL8c8qOieA53B6gHmDrkL0gg3tPDoG68u1wfroq2xuejqmLfvOFpRp2-pWApFcewEovMxz2BiMTC1XpvXfHVTRPeuJQbSMtkvAZbG1Bmif3HbH7Awd_yDxRHeUaxxAO8N4TiS2_uECmyESg/s700/04.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="394" data-original-width="700" height="180" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgIpOKyXnNTw9cLJCHjMbShcThuw3nBbaAe4gx0159yj8tdL8c8qOieA53B6gHmDrkL0gg3tPDoG68u1wfroq2xuejqmLfvOFpRp2-pWApFcewEovMxz2BiMTC1XpvXfHVTRPeuJQbSMtkvAZbG1Bmif3HbH7Awd_yDxRHeUaxxAO8N4TiS2_uECmyESg/s320/04.jpg" width="320" /></a></div><br /><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><br /><br /></div><div style="text-align: justify;">Denunciations of “Government Corruption” and Political Conflicts in the Second Vargas Government (1951-1954)</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Marcos Otavio BezerraGiuliana Monteiro da Silva</div> <div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">RESUMO</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O artigo considera a emergência do fenômeno da corrupção no segundo governo Vargas como resultado e forma de expressão dos conflitos políticos entre “getulistas” e “antigetulistas”. Trata a chamada “corrupção no governo” não como um dado da administração ou da política, mas como um produto político. Com base em matérias dos jornais Correio da Manhã, Tribuna da Imprensa e Última Hora sobre o “Inquérito do Banco do Brasil, o “Escândalo Cacex e o “Caso Última Hora”, identifica as denúncias de “corrupção no governo” como um exemplo histórico de representação da corrupção e de seu uso por partidários de um projeto de transformação política.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Palavras-chave:</div><div style="text-align: justify;">corrupção no Brasil; conflitos políticos; representações da corrupção; governo Vargas (1951-1954); antropologia da política</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">ABSTRACT</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Denunciations of “Government Corruption” and Political Conflicts in the Second Vargas Government (1951-1954) considers the emergence of the phenomenon of corruption during Getúlio Vargas’ second government as a result and a form of expression of the political conflicts between “getulists” and “antigetulists”. It treats the so-called “government corruption” not as a fact of the functioning of the administration or politics, but as a political product. Based on articles published by the three Brazilian newspapers on the “Inquérito do Banco do Brasil”, the “Escândalo Cacex” and the “Caso Última Hora”, it identifies the accusations of “government corruption” as a historical example of the representation of corruption and its use by supporters of a political transformation project.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Keywords:</div><div style="text-align: justify;">corruption in Brazil; political conflicts; representations of corruption; Vargas government (1951-1954); anthropology of politics</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Este texto examina a emergência do fenômeno da corrupção - entendida como o produto de denúncias, de representações e da delimitação de práticas tidas como de corrupção, entre outros aspectos - durante o segundo governo de Getúlio Vargas (1951-1954). O objetivo é demonstrar como o termo “corrupção” ganha relevância em detrimento de outras expressões de julgamento de transgressões políticas e administrativas disponíveis, bem como argumentar que a forma e o significado que a corrupção adquire nesse contexto é, especialmente, um produto dos conflitos políticos da época. O acompanhamento em jornais de notícias e denúncias de corrupção atribuídas a autoridades governamentais permite identificar algumas acepções políticas do termo e a importância que o discurso sobre a corrupção adquire nessa conjuntura política.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Entre os momentos da história política do Brasil em que o tema da corrupção é identificado como um aspecto importante do desenrolar dos acontecimentos políticos, encontra-se o segundo governo do presidente Vargas. É nesse período, por exemplo, que a expressão “mar de lama” é consagrada como sinônimo de corrupção e torna-se parte do repertório de imagens brasileiras a respeito desse conceito. A expressão foi alçada à condição de verbete no Dicionário histórico-biográfico brasileiro: “utilizada pelos opositores do presidente Getúlio Vargas para designar a corrupção que teria caracterizado seu segundo governo” (LAMARÃO, 2001, p. 3545). No mesmo sentido, Motta (2012, pp. 206-207) observa que “cunhou-se, na época, para representar a sensação de que o governo estava tomado pela corrupção, a expressão ‘mar de lama’, que seria usada em contextos semelhantes no futuro, sobretudo durante a gestão do presidente João Goulart”. Esses registros, como muitos outros a respeito da metáfora, apontam para a centralidade que o tema da corrupção assumiu nos acontecimentos políticos da época.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Para investigarmos a questão sobre a emergência da corrupção no citado período, optamos por uma perspectiva analítica, explorada sobretudo em trabalhos que se inscrevem na tradição antropológica (BLUNDO e OLIVIER DE SARDAN, 2001; HALLER e SHORE, 2005; MUIR e GUPTA, 2018), que defende o exame da corrupção em termos das práticas e representações que a constituem como um fenômeno social.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ao privilegiarmos questões relacionadas às representações e ao significado da corrupção, tomamos, portanto, uma via distinta daquela que domina boa parte da literatura recente sobre o tema - preocupada com a explicação das condições e dos estímulos institucionais (econômicos e políticos) que promovem o surgimento da corrupção (ROSE-ACKERMAN, 1999; GEDDES e NETO, 2000). Nos distanciamos também da análise do entrelaçamento entre práticas rotuladas como de corrupção e práticas e valores tidos como legítimos do ponto de vista das relações familiares, de formas de sociabilidade cotidiana, políticas ou estratégias econômicas de sobrevivência (BEZERRA 1999 e 2018; GRANOVETTER, 2006; SMITH, 2007).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A abordagem da corrupção a partir da atenção a sua representação e a seu significado, por um lado nos afasta de sua concepção como fenômeno único e imutável. Por outro, nos conduz a considerar como ela é utilizada, integrada às práticas cotidianas, incorporada às narrativas, representada em imagens, associada a sentimentos e valores. Ou seja, lhe é conferido um sentido (HALL, 2016, p. 21).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Uma das questões centrais da literatura sobre a corrupção diz respeito à sua definição como conceito analítico. Do ponto de vista de sua circulação e de seu uso ordinário, um dos riscos presentes no termo é a ilusão de que ele remete a um mesmo conjunto de fatos facilmente delimitáveis ou de que tem um mesmo significado a despeito dos contextos históricos e culturais nos quais é utilizado. Essa ilusão de seu valor descritivo e de consenso semântico parece ser reforçada pela utilização da palavra como princípio de explicação e recurso acusatório nas disputas políticas. De modo simplificado, um exemplo recorrente desse tipo de apropriação no caso brasileiro é a visão, encontrada mesmo na literatura especializada, da corrupção como uma herança colonial, ou sua inscrição como traço da cultura nacional (BARBA, 2012). Não raramente, essa concepção é empregada como um meio para explicar problemas sociais como a desigualdade, a pobreza, a má qualidade dos serviços públicos ou privilégios. Alinhados com as discussões internacionais, autores brasileiros interessados no tema têm chamado atenção para os riscos de anacronismo, essencialismo, normatização e fluidez, entre outros, presentes nas tentativas de definição conceitual (FIGUEIREDO, 2012; FILGUEIRAS, 2012; ROMEIRO, 2015; BEZERRA, 2018).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Por conseguinte, em consonância com a abordagem analítica acima indicada, consideramos a corrupção não uma categoria de análise, mas uma categoria avaliativa, por meio da qual as pessoas elaboram críticas e julgamentos performativos em termos de legalidade ou ilegalidade, legitimidade ou ilegitimidade, sobre um conjunto variado de práticas (MUIR e GUPTA, 2018). Pensando nesses termos, e nos limites do contexto delimitado, interessa-nos analisar como as denúncias de “corrupção no governo” emergem como uma questão de interesse público e se relacionam com as disputas políticas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No período analisado, como demonstram as informações reunidas a partir da leitura dos jornais Correio da Manhã, Tribuna da Imprensa e Última Hora, as denúncias sobre condutas tidas como “imorais” na política e na administração pública eram feitas por meio de uma lista ampla de termos, como “irregularidade”, da qual fazia parte, sem maior relevância, a ideia de corrupção. Esta, no entanto, vai progressivamente sendo vinculada ao governo de Getúlio Vargas como resultado do trabalho da imprensa e dos opositores políticos. Essa utilização do termo corrupção como meio de tecer críticas ao governo e às autoridades governamentais é algo que a nosso ver merece ser explicado. Nesse sentido, a partir da análise de três episódios que envolvem denúncias de “irregularidades” no Banco do Brasil - o “Inquérito do Banco do Brasil”, o “Escândalo da Cexim [Carteira de Exportação e Importação do Banco do Brasil]” e o “Caso Última Hora” -, procuramos demonstrar a importância dos conflitos políticos na mobilização da ideia de corrupção como meio de acusação política e na constituição do fenômeno da corrupção no contexto tratado. Assim, em vez de pensar a corrupção como um dado da realidade, isto é, um conjunto de práticas que poderiam em si mesmas ser reconhecidas como corruptas a despeito do contexto e do momento, dirigimos a atenção para os processos políticos que produzem a corrupção como um fato político, isto é, estabelecem seus significados, suas fronteiras e seus efeitos (JOHNSTON, 1996).</div><div style="text-align: justify;">Imprensa e denúncias de transgressões políticas e administrativas</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A análise do significado dos conflitos políticos na emergência das denúncias de corrupção no segundo governo Vargas se apoia, particularmente, em notícias, artigos e discursos publicados nos jornais Correio da Manhã, Tribuna da Imprensa e Última Hora entre 1951 e 1954. Ao lado das rádios, a imprensa escrita tinha, nesse período, um papel central na formação da opinião pública e ocupava um lugar importante como ator político. Esses aspectos, entre outros, já foram analisados em trabalhos sobre a atuação da imprensa escrita nesse período e em estudos que a tomam como fonte para a compreensão de questões relacionadas a esse momento da história (SODRÉ, 1966; ABREU e LATMAN-WELTMAN, 1994; FERREIRA, 1994; LEAL, 2001; LOSNACK, 03/01/2012, CARVALHO, 2012; GOLDSTEIN, 2017).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Além de fonte de informações sobre os eventos, inspirados em Gupta (2012) consideramos as matérias dos jornais como textos culturais, documentos sócio-históricos e meios de circulação de narrativas a respeito da corrupção. As histórias de corrupção, sejam elas orais ou escritas, como propõe o autor, participam da construção do Estado ao realizarem um trabalho analítico, quando servem para explicar falhas do serviço público, e ideológico, quando participam da concepção imaginada do Estado.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Tendo em mente os trabalhos acima mencionados sobre a imprensa no segundo governo Vargas, é importante situar nossa preocupação temática e temporal e a escolha dos jornais examinados. A interrogação sobre denúncias de corrupção no período de janeiro de 1951 a agosto de 1954 foi o critério utilizado para a reunião das informações examinadas neste texto. Nesse sentido, cobrimos um período mais amplo do que o delimitado por Abreu e Latman-Weltman (1994), que, preocupados com a análise da imprensa como ator político na “crise de agosto de 1954”, se concentram na atuação da imprensa em julho e agosto desse ano, e por Ferreira (1994), interessado, por sua vez, na análise das revoltas populares urbanas que têm lugar em diferentes estados do país imediatamente após o anúncio do suicídio de Getúlio.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A despeito dos recortes efetuados, tomamos os dois trabalhos como referências centrais para o entendimento da atuação e do posicionamento nos conflitos políticos do momento. Se a questão da corrupção não é abordada por esses autores, ela, no entanto, é um tema central no trabalho de Goldstein (2017). A partir de uma comparação entre o governo Vargas (1951-1954) e o primeiro governo Lula (2003-2006), o autor examina o posicionamento de jornais da época nas chamadas “cruzadas morais”. Interessado mais especificamente na relação da imprensa com a política, o trabalho reúne, no entanto, diversas contribuições para a reflexão sobre a mobilização de denúncias de corrupção no período abordado neste texto. Observamos, no entanto, que, em razão dos “recortes conjunturais” efetuados por Goldstein, o “Caso Cexim” não é por ele abordado.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Tendo em mente os critérios utilizados por cada um desses textos na seleção dos jornais trabalhados, é importante acrescentar ainda alguns esclarecimentos sobre a escolha que fizemos dos três jornais. Ao justificarem suas escolhas, Abreu e Latman-Weltman (1994) informam sobre a exclusão, particularmente, da Tribuna da Imprensa, fundado por Carlos Lacerda, e da Última Hora, fundado por Samuel Wainer. Os autores alegam que os dois jornais tinham circulação restrita e expressavam, respectivamente, os interesses e posicionamentos políticos da oposição e do governo. Apesar dessas possíveis limitações, consideramos, porém, o fato de que são exatamente esses dois jornais que participam e expressam os conflitos políticos entre os “getulistas” e os “antigetulistas”, entendidos aqui como expressão das principais posições políticas que estruturavam o espaço político da época. Ademais, é por meio da Tribuna da Imprensa que Carlos Lacerda propaga as acusações de corrupção no governo de Getúlio Vargas. E, como revela Goldstein (2017), cujo trabalho toma como fonte exclusivamente os editoriais dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo, notícias publicadas na Tribuna eram replicadas pelo Estadão e órgãos de comunicação d’O Globo acolhiam intervenções de Carlos Lacerda. Enfim, nossa escolha pelo Correio da Manhã deve-se à sua ampla circulação, à sua reputação como órgão tradicional e ao fato de ter liderado uma campanha contra a Cexim.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Os conflitos políticos nos quais esses jornais se inscreviam estavam estruturados em torno de dois projetos políticos que opunham as forças identificadas como “getulistas” e “antigetulistas”. O primeiro, “de caráter nacional-estadista, pautava-se no nacionalismo, na industrialização com base no capital nacional, na criação de empresas estatais em setores estratégicos” e na valorização de interesses populares (FERREIRA, 2008, p. 303). O segundo, “de caráter liberal-conservador”, defendia a abertura da economia para empresas e capitais estrangeiros, se opunha à intervenção estatal e às demandas populares, em “especial do sindicalismo” (Idem, ibid., pp. 303-304). A chegada de Getúlio Vargas ao poder por meio de eleição e a adoção de uma postura nacionalista contrariava os interesses conservadores da elite brasileira do período, que se posicionava a favor da redução do papel do Estado na economia e da participação popular na vida política (BENEVIDES, 1981).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Esses projetos tinham expressão no campo partidário por meio, principalmente, da atuação de três partidos criados no fim do Estado Novo: o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e o Partido Social Democrático (PSD), ambos identificados com o projeto “getulista”, e a União Democrática Nacional (UDN), encarnação do “antigetulismo”.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A importância que adquiriu o tema da corrupção no segundo governo Vargas resultou, em grande medida, do modo como foi projetado no cenário público por meio das denúncias efetuadas sobretudo pela UDN (BENEVIDES, 1981). O porta-voz principal das denúncias foi Carlos Lacerda, cuja atuação se notabilizou, primeiro como jornalista e depois como político, pelos posicionamentos e discursos moralistas. Como informa Speck (1996), nas eleições presidenciais de 1945, Carlos Lacerda, jornalista do Correio da Manhã, ganha projeção ao acusar Iedo Daudt Fiuza, candidato do Partido Comunista, de “enriquecimento ilícito”. Denúncias sobre a prática do uso de matérias pagas nos órgãos de imprensa, especialmente por órgãos públicos, como meio de obtenção de apoio a posições políticas é um dos temas explorados por Lacerda na campanha que promove em 1949 para a divulgação de seu novo jornal. A participação do jornalista no “Caso Última Hora” reforça sua imagem como defensor da moralidade pública e acaba por lhe garantir o título de “caça-corruptos” (Ibid., p. 4).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Em busca de informações sobre os usos da palavra “corrupção” no período delimitado, foram consultados cronologicamente 1.920 exemplares dos jornais Correio da Manhã, Tribuna da Imprensa e Última Hora. Ao menos dois pontos merecem ser destacados quando se considera a questão do lugar da corrupção no segundo governo Vargas. Primeiro, é possível identificar no período um número significativo de notícias de práticas tidas como de transgressão na política e na administração pública e um conjunto amplo de palavras utilizadas para nomear essas práticas, como “irregularidades”, “nepotismo”, “favoritismo”, “suborno”, “propina”, “negócios escusos”, “peculato” e “corrupção”. No entanto, o termo mais frequente para descrever as diferentes formas de transgressão denunciadas é “irregularidade”. Segundo, se o termo “corrupção” integra esse vocabulário, ele, no entanto, é menos usual e utilizado, especialmente, para a descrição de práticas policiais.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Quando nos concentramos nas narrativas sobre irregularidades no universo político, observamos a preferência pelo uso de termos como “favoritismo”, “nepotismo” e outros. Isso, no entanto, muda ao longo do segundo mandato, quando a ideia de corrupção passa a designar integrantes do governo, o presidente Vargas e a natureza do funcionamento do próprio governo. Esse é um momento, como informa José Murilo de Carvalho (2012), no qual se pode observar uma mudança semântica do termo. A corrupção deixa de designar uma propriedade do sistema político (seja ele monárquico ou republicano) e passa a qualificar um comportamento individual, de natureza moral (CARVALHO, 2012, p. 201). Explicar como essa visão moralista da corrupção, que tem em Carlos Lacerda um de seus expoentes, tornou-se preponderante é um dos objetivos deste texto, e, nesse sentido, argumentamos que essa mudança resulta sobretudo do lugar que o tema passa a ocupar nas disputas políticas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A incorporação da ideia de corrupção como transgressão de caráter individual e moral no contexto das disputas políticas ocorre, como argumentamos ao longo do texto, em detrimento de outros termos, como os mencionados acima, também utilizados nas disputas políticas. A atenção aos significados atribuídos à palavra “corrupção”, a seus usos sociais e ao campo semântico no qual ela se inscreve constitui em si uma frente importante de estudo sobre a corrupção, como demonstram, entre outras, as análises do significado do conceito de corrupção em textos normativos-legais na época moderna realizada por Romeiro (2015) e de termos populares que designam a corrupção em três países africanos estudados por Blundo e Sardan (2001). Atentos às contribuições desses textos, restringimo-nos aqui a mencionar rapidamente algumas das principais expressões e alguns termos do vocabulário utilizado no início dos anos 1950 para qualificar práticas concebidas como de transgressão na política e administração e a chamar atenção para a porosidade da ideia de corrupção e seus limites para cobrir outras práticas tidas como de transgressão.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O termo “irregularidades”, além se ser o mais recorrente, cobria um leque amplo de situações e práticas percebidas como condenáveis do ponto de vista da moralidade pública, como sugerem, entre outros, os exemplos a seguir: “O presidente Getúlio Vargas nomeia comissão para averiguar possíveis irregularidades havidas no Banco do Brasil durante a gestão do general Dutra (TRIBUNA DA IMPRENSA, 12/02/1951, p. 1)”; “A comissão do Vale do São Francisco vai apurar as denúncias de irregularidades na aplicação de verbas das obras daquele rio” (Idem, 10/07/1951, p. 3); “Irregularidades na exportação do Pinho e votação do orçamento” (CORREIO DA MANHÃ, 10/11/1951, p. 8). Também de uso frequente eram expressões como “negócios escusos”, “negociatas escusas” e “transações escusas”. Em agosto de 1952, a Tribuna da Imprensa publicou matéria sobre o desvio de material de uma obra realizada no Aeroporto do Galeão nos seguintes termos:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Há tempos, notou o coronel Scafa um grande desvio dos materiais destinados à estação do Galeão, desvio que vinha de longe e já era feito quase sem precauções que exigem os negócios escusos. (...) Submetido o inquérito à autoridade competente, ficou esclarecido que as obras eram da sogra de quem havia dado a ordem para o desvio dos materiais (TRIBUNA DA IMPRENSA, 11/08/1952, p. 6).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Apesar de o destino do material e o agente público responsável por ordenar o desvio terem sido identificados, não houve punição do responsável e o inquérito foi arquivado.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Termos como “favores”, “favoritismo” e “favorecimento” eram mobilizados especialmente para a descrição de comportamentos identificados como fundados na lógica da reciprocidade e que envolviam interferências de natureza política. É o que se pode observar na matéria intitulada “Favores e escândalos”, publicada pelo Correio da Manhã em junho de 1952, na qual é questionado o critério utilizado por vereadores da Câmara Municipal do Rio de Janeiro para a nomeação de funcionários:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Anuncia-se nova reestruturação no quadro de funcionários da Câmara Municipal. Em duas legislaturas, assinalou-se a nossa Câmara pelos desatados favores pessoais, numa torrente de escândalos. Pagamos caríssima a nossa meia autonomia, pela qual uns tantos indivíduos se elegem vereadores e podem, no interesse próprio, assaltar impunimente as finanças da cidade, criando para a parentela, afilhados, eleitores, compadres, sócios, sinecuras ilimitadas (CORREIO DA MANHÃ, 01/06/1952, p. 4.).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A matéria denuncia a prática de vereadores criarem, em nome de interesse próprio e à custa de recursos municipais, cargos para parentes, amigos e eleitores, que, no entanto, não são obrigados a exercer efetivamente suas atribuições.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Outra situação na qual a ideia de favorecimento é utilizada é relatada pela Tribuna da Imprensa. O jornal questiona a lisura de uma concorrência para a finalização da obra de uma sede do Banco do Brasil na cidade de São Paulo. Na matéria com o título “Escândalo no Banco do Brasil: Favorecida uma firma amiga na concorrência para a sede de São Paulo”, a firma Maia-Lelo é acusada de receber informações do setor de engenharia do Banco do Brasil e apresentar uma proposta depois do prazo. A firma pertencia a Arnaldo Maia-Lelo, irmão de Arlindo Maia-Lelo, que na gestão do prefeito Ademar de Barros foi presidente do Banco do Estado de São Paulo. Com o término das eleições, Arlindo Maia-Lelo almejava ser nomeado para a Carteira de Redesconto do Banco do Brasil, o que não ocorreu. Preterido na escolha, Arlindo, amigo pessoal de Ricardo Jaffet, presidente do Banco do Brasil, obteve, por meio da firma do irmão, o contrato de 70 milhões de cruzeiros para a execução da obra da sede. As relações pessoais entre os envolvidos são para o jornal o indicador de favorecimento da firma (TRIBUNA DA IMPRENSA, 12/03/1951, pp. 1, 6).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Termos como “propina”, “suborno” e “corrupção” (policial, administrativa e política) integravam igualmente o vocabulário de denúncias. Uma das situações frequentes a que se aplicavam esses termos era a da relação da polícia com o jogo do bicho. Em matéria intitulada “Corrupção policial na repressão”, a Tribuna da Imprensa chamava atenção, em julho de 1951, para o modo como a propina se inscrevia nessa relação e era institucionalizada.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Um dos personagens mais importantes no “underground” do jogo do bicho é o “apanhador”. Apanhador é o recolhedor das propinas, das gratificações, na gíria policial “estia”. (...) Os apanhadores vão pacientemente, de ponto em ponto, onde os donos (pontos têm dono) já esperam os recolhedores. A entrega da propina é mais ou menos às escâncaras e ninguém da polícia ignora o fato. (...) E não precisa fazer força para receber a propina. Recebe-se mesmo que não se peça, que não se exija. Cada um ganha a sua parte, infalivelmente e não precisa que se pertença à delegacia de costumes. Qualquer mau policial pode aproximar-se do ponto e estender a mão ou ficar em posição que indique sua profissão. A gorjeta vem certa e infalível (Idem, 05/07/1951, p. 8).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O termo corrupção se inscrevia nesse universo de palavras e expressões de denúncias de “irregularidades” administrativas e políticas e seu uso não era raro, como sugere o <a href="https://www.scielo.br/j/dilemas/a/rMqHLZsB4mqScVwxBHjd44j/?lang=pt">Quadro 1</a> abaixo, no qual apresentamos a frequência de utilização dos termos nos três jornais, excluídas as referências associadas ao “Inquérito do Banco do Brasil”, ao “Escândalo da Cexim” e ao “Caso Última Hora”.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Thumbnail</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Quadro 1:</div><div style="text-align: justify;">Frequência do uso do termo “corrupção” nos jornais analisados no período de 1951 a 1954*</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Observa-se que o termo é utilizado sobretudo pela Tribuna da Imprensa e sua frequência aumenta entre 1951 e 1954. Como informa Speck (1996), o tema da corrupção teve um lugar central na atuação dos liberais brasileiros nos anos 1950. O intervencionismo estatal, como evidencia a matéria intitulada “Carne e corrupção político-administrativa”, era um dos focos principais das denúncias de corrupção:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">(...) O câmbio [negro] da carne não seria possível sem a cumplicidade direta de funcionários altamente colocados, os quais, por sua vez, não poderiam agir sem a proteção de políticos situacionistas. Em outras palavras há uma estreita relação entre a interferência governamental no mercado de carne e a corrupção administrativa e política (CORREIO DA MANHÃ, 26/10/1951, p. 3).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Apesar do uso frequente da palavra corrupção, constatamos, no entanto, que sua associação ao governo e ao presidente Vargas ocorreu no contexto das denúncias relativas ao “Escândalo da Cexim” e ao “Caso Última Hora”, e como efeito, particularmente, da atuação da UDN e de segmentos da imprensa.</div><div style="text-align: justify;">Denúncias de ‘corrupção no governo’ e conflitos políticos</div><div style="text-align: justify;">O ‘Inquérito do Banco do Brasil’</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No início de seu segundo mandato, Getúlio Vargas determinou a criação de comissões de inquérito em ministérios, autarquias e órgãos subordinados para averiguar as medidas do governo antecessor, entre elas a Comissão de Inquérito do Banco do Brasil. A comissão era um dispositivo administrativo utilizado de forma regular, como demonstra o levantamento realizado por Speck (1996) sobre as comissões parlamentares de inquérito criadas entre 1946 e 1963 (169 abertas no período e 98 concluídas).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Notícias sobre o andamento do trabalho da comissão foram publicadas pelo jornal Última Hora em junho de 1951. Segundo a publicação, o relatório da comissão responsabilizava o ex-presidente do Banco do Brasil, Guilherme da Silveira, pelo uso de verbas do banco para “fins particulares e políticos” e informava que contra ele seria aberto um processo para a devolução das verbas. As práticas condenadas pela comissão, qualificadas como uma “verdadeira orgia de verbas”, diziam respeito às “grandes fortunas” utilizadas para custear a propaganda de desmoralização política e pessoal do presidente Getúlio Vargas em jornais e revistas do país e a promoção de indústrias particulares - dentre elas, uma fábrica do ex-presidente do Banco do Brasil (ÚLTIMA HORA, 14/06/1951, p. 5). O fato de esse relatório oficial condenar o uso de verbas públicas para “fins pessoais e políticos” - ideias, por sua vez, difundidas pela imprensa - chama atenção para o reconhecimento da importância da distinção entre esses usos como princípio de atuação e julgamento da administração pública. A mobilização dessa distinção não está, porém, dissociada das medidas de enfrentamento dos adversários políticos pelo novo governo e pelo órgão de imprensa aliado. As acusações sobre a utilização pessoal ou política de verbas públicas, prevista no Código Penal de 1940, fazem parte, portanto, dos recursos sociais disponíveis para o confronto político. Se não há, sem dúvida, novidade nessa observação, insistimos em seu registro para ressaltar que as práticas condenadas pelo relatório e pelo jornal não são descritas, porém, por meio do termo “corrupção”1.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Com a falta de informações oficiais ao longo do ano sobre o andamento do inquérito e as apurações das irregularidades anunciadas no relatório, órgãos da imprensa e parlamentares da oposição passam a cobrar do governo os resultados do “Inquérito sobre o Banco do Brasil”. No início de 1952, a Tribuna da Imprensa publica na primeira página uma charge com Getúlio Vargas sentado sobre o inquérito com o irônico comentário: “Rigoroso inquérito” (TRIBUNA DA IMPRENSA, 22/01/1952, p. 1). O tema é retomado no dia seguinte pelo Correio da Manhã em matéria intitulada “Inquéritos administrativos”. Nela, o jornal sustenta que havia uma “farsa dos escândalos” e faz menção aos requerimentos apresentados pelo deputado José Bonifácio (UDN) cobrando a divulgação das conclusões do inquérito (CORREIO DA MANHÃ, 23/01/1952, p. 4).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Em seus discursos no parlamento, o deputado José Bonifácio, além de insistir na publicação dos resultados, transforma a ausência de informações sobre o inquérito numa fonte de denúncias do governo ao acusá-lo de “protecionismo político”, e ao acusar o banco de conceder empréstimos em “virtude do eleitorado que eles podiam mobilizar” (TRIBUNA DA IMPRENSA, 10-11/05/1952, p. 3). Em meados do ano, o deputado consegue ter acesso ao inquérito. Sem citar nomes, informa que no relatório constavam importantes nomes da política e da administração “que continuavam a gozar dos favores do Banco do Brasil” (CORREIO DA MANHÃ, 12/07/1952, p. 8). As denúncias em termos de protecionismo político e favores merecem ser destacadas, uma vez que remetem aos termos pelos quais práticas tidas como condenáveis eram nomeadas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A partir das informações veiculadas pela imprensa, políticos do PSD, da base parlamentar do governo, mesmo antes da publicação do relatório defendem publicamente a si mesmos e também ao partido. É o caso do deputado federal Marino Machado (PSD-SP), ex-diretor da Carteira Agrícola e Industrial do Banco do Brasil, que, da Tribuna da Câmara, afirma: “sintoma alarmante da nossa imaturidade política é, sem dúvida, a facilidade com que, neste país, se atassalha a reputação de um homem público. Aqui a dedicação à coisa pública, o ingresso na carreira política (...) é como que um desafio à calúnia” (Idem, 22/08/1952, p. 6). A referência à reputação remete, para além das questões legais, a um dos efeitos das denúncias, que era o de afetar a credibilidade do político, isto é, o capital pessoal do representante (cf. BOURDIEU, 1989). Ao examinar a concepção de representação política vigente na época, Speck destaca que “os líderes populistas dependiam da confiança imediata e inquestionável na sua honestidade, na sua orientação para o bem comum” (SPECK, 1996, p. 6). Acusações de irregularidades e de imoralidade tinham, portanto, o potencial de abalar uma das fontes principais de legitimidade do político.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A defesa do partido em relação às acusações de parlamentares da UDN é realizada pelo deputado Carlos Cirilo Júnior (PSD-SP), citado no inquérito. Em seu discurso no parlamento, ele refuta as denúncias de que teria obtido “favores”. No entanto, o exame do conteúdo de seu argumento permite sugerir que a distribuição de “favores” era prática difundida no âmbito da administração pública.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">(...) Que eu nunca pedi nada ao Banco do Brasil ou dele recebi favores ou cortesanias, que nunca invoquei favores de ministros, ou Ministérios, que nunca cortejei presidentes da República ou deles recebi favores, e servi a vários com lealdade, honra e patriotismo, por certo haveria de estranhar o arrolamento de meu nome na famosa sindicância em foco. (...) O Partido Social Democrático condena a prática reprovável e por seu conselho superior declara à nação ter sido vítima não de uma acusação séria, mas de uma acusação leviana e impertinente apreciação caluniosa. Ante ela não se amordaça, não se humilha e não se sente desmoralizado. O Partido Social Democrático não se teme de inquéritos ou devassas (ÚLTIMA HORA, 23/08/1952, p. 9).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Os debates suscitados sobre o inquérito remetem a duas questões levantadas pela oposição: a continuidade de realização dos “negócios irregulares” pelo Banco do Brasil e a responsabilização do presidente Vargas por omissão, uma vez que “de posse de toda documentação não agiu como devia contra os indicados” (CORREIO DA MANHÃ, 02/08/1952, p. 4).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Com as acusações da oposição centradas no presidente, o inquérito inicialmente dirigido para investigações sobre “irregularidades” no governo anterior torna-se fonte de críticas ao governo Vargas. Assim, a imprensa passa a alimentar a ideia de que a recusa de publicação do inquérito deve-se ao envolvimento de pessoas ligadas ao governo nas supostas irregularidades.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Na Tribuna da Imprensa, Carlos Lacerda se posiciona em relação ao tema. Ao retomar as denúncias do deputado José Bonifácio (UDN), acusa o governo de utilizar o Inquérito do Banco do Brasil como instrumento de “chantagem”, de favorecer o PSD através do sigilo do relatório, de o PSD ter sido financiado com dinheiro público e de integrantes do governo estarem tendo facilidades para adquirir empresas a partir da utilização de informações que comprometiam o governo Dutra. Além disso, menciona os nomes do jornalista Samuel Wainer, dono da Última Hora, e de Lutero Vargas, filho do presidente, como beneficiários do dinheiro do banco. Assim, por meio de acusações de proteção, financiamento partidário e acesso a informações oficiais, Lacerda promove o envolvimento do círculo de aliados políticos e familiares do presidente nas denúncias (TRIBUNA DA IMPRENSA, 01/08/1952, p. 4).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Apesar dos conflitos entre o governo e a oposição acerca da divulgação dos resultados do inquérito, a decisão que prevaleceu foi a da não publicação do relatório no Diário do Congresso. As conclusões do relatório, são, no entanto, publicadas pelo Correio da Manhã nos primeiros meses de 1953. O presidente do Banco do Brasil “é considerado responsável pelos atos e operações irregulares, abusivos, de mera liberalidade, culposos ou dolosos, descritos no relatório” (CORREIO DA MANHÃ, 05/02/1953, p. 12). Os casos analisados no relatório apontavam para a “publicidade estranha aos interesses do Banco; donativos a instituições inexistentes; cessão dos direitos creditórios do Banco contra a Eletroquímica Brasileira S.A”. A comissão de inquérito concluiu ainda que alguns dos casos relatados e apurados demandavam maior investigação policial, e tornou público o volume total das sonegações e dos desvios apurados. As práticas condenadas pela comissão são qualificadas e nomeadas no relatório como “negociatas”, “sonegação”, “desvio”, “corretagem”, “intermediação” e “doações para instituições inexistentes” (Idem).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A questão do “Inquérito do Banco do Brasil” esteve presente na imprensa e nos debates políticos por um período de mais de 18 meses, e a divulgação de suas conclusões ocorreu um pouco antes das eleições municipais de 1953. Com as denúncias da oposição de que integrantes do governo estavam envolvidos nas irregularidades apuradas pela comissão de inquérito, jornais de oposição chegaram a descrever o caso como um “escândalo político”. Entre outras práticas denunciadas encontravam-se a distribuição de favores, o financiamento de campanhas eleitorais, o uso de verbas públicas para fins pessoais, o uso de informações oficiais para a realização de negócios e a concessão por um banco público de empréstimos para aliados do governo e familiares do presidente.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No acompanhamento dos debates públicos sobre o inquérito nota-se, particularmente, que não é dada à ideia de corrupção primazia no rol das acusações feitas pela oposição. Apesar de disponível, como mencionamos antes, no universo de termos utilizados para a descrever transgressões políticas e administrativas, “corrupção” não é o termo mobilizado, como também constatou Goldstein (2017) ao analisar os primeiros anos do segundo governo Vargas para descrever as práticas assim identificadas nessa situação. As considerações iniciais que propomos sobre o “Inquérito do Banco do Brasil” são importantes para nosso argumento na medida em que expõem a dissociação entre a existência de práticas políticas e administrativas tidas como irregulares e sua rotulação, a despeito de possíveis enquadramentos pelo Código Penal, como corrupção. Por conseguinte, cabe, portanto, compreender como a ideia de corrupção, com o significado específico que lhe é atribuído, emerge no período aqui delimitado como recurso acusatório nas lutas políticas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Nos trabalhos sobre o segundo governo Vargas que abordam o tema da corrupção, frequentemente é dado destaque aos debates em torno do “Caso Última Hora”. A mobilização dos agentes políticos, da imprensa e os desdobramentos políticos da polêmica em torno do caso justificam, sem dúvida, a sua importância para o entendimento dos acontecimentos no período. O exame dos três jornais nos quais nos baseamos levou-nos, no entanto, a identificar a emergência da ideia de corrupção nas disputas políticas em outra controvérsia, o “Escândalo da Cexim”.</div><div style="text-align: justify;">‘O Escândalo da Cexim’</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A Carteira de Exportação e Importação do Banco do Brasil (Cexim) foi criada em maio de 1941 com a finalidade de “estimular e amparar a exportação de produtos nacionais e assegurar condições favoráveis à importação de produtos estrangeiros” (ABREU et al., 2001, pp. 1155-1156.). A partir de 1947, com a imposição de controle de importação, as atividades da Cexim adquiriram grande importância. O órgão era encarregado, por meio de licenciamento, da administração e do controle das importações.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">As primeiras notícias sobre “fraude” na Cexim datam de novembro de 1951. A Última Hora publicou uma curta matéria com o título “Lesaram em milhões de cruzeiros: Descoberta pela polícia, vultosa fraude contra a Cexim” (ÚLTIMA HORA, 06/11/1951, p. 5). A denúncia mencionava a falsificação e a adulteração de guias de importação e exportação e o envolvimento de funcionários do Banco do Brasil e de firmas comerciais. Além da informação, o jornal se posicionou em favor de uma ação criminal e da abertura de um inquérito administrativo para averiguar a responsabilidade dos envolvidos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Nos primeiros meses de 1952, o órgão volta às páginas dos jornais. A Cexim foi alvo de um “flagrante de suborno” acertado entre o Banco do Brasil e uma firma de importação. Um fiscal do órgão foi preso em flagrante quando recebia um cheque de 200 mil cruzeiros de um representante de uma firma paulista para se manifestar favoravelmente em um processo de importação (TRIBUNA DA IMPRENSA, 20/03/1952, p. 7). Segundo a avaliação do comissário responsável pelo flagrante, a prática não configurou, no entanto, crime, apenas uma grave falta administrativa.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Novas denúncias sobre o órgão, dessa vez de “nepotismo” e “favoritismo”, foram feitas poucos meses depois. O Correio da Manhã, em matéria intitulada “Escândalo na Cexim. Regimes de arbítrio e boa vontade no feudo de Simões Lopes” (27/07/1952, p. 2), publica, para fundamentar as acusações de “favoritismo”, um documento do órgão. A ordem de serviço, datada de 9 de julho de 1952, trazia a seguinte recomendação:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Recomendamos aos diversos órgãos da carteira que, até instruções contrárias, passem a dispensar a firma em epígrafe tratamento rigoroso, estritamente dentro das disposições legais ou regulamentares em vigor, nenhuma concessão se lhe fazendo quando dependa apenas de arbítrio ou de boa vontade da carteira (Idem).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Luiz Simões Lopes era o presidente do órgão. A partir do teor do documento, a matéria denunciava que os critérios em vigor na Cexim para concessão de licenças seguiam duas lógicas distintas: a primeira estava referida aos regulamentos oficiais e a segunda, ao “arbítrio de boa vontade” dos responsáveis pelo órgão. A caracterização do órgão como “feudo” chamava a atenção para os critérios pessoais adotados em decisões e o controle do órgão por familiares de seu presidente: “onde se encontra a apregoada honestidade do Sr. Luiz Simões Lopes, que já possui quatro pessoas de sua família trabalhando na Cexim? (...) É a demonstração cabal da desordem e imoralidade que campeiam no setor da administração pública” (Idem). A matéria condenava, particularmente, duas práticas identificadas na administração pública: o “nepotismo” e o “favoritismo”. Mas essas práticas são entendidas também como provas da “imoralidade” presente na administração pública. As demandas de moralização política e administrativa, como demonstra Goldstein (2017), ganha a forma de “cruzada moral” com a ampliação de denúncias feitas pela oposição e pela imprensa contra o governo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O Correio da Manhã passa a liderar, no início de 1953, uma campanha contra a Cexim. As matérias e denúncias publicadas pelo jornal encontram respostas, por sua vez, nos espaços reservados ao assunto pela Última Hora. Em janeiro de 1953, o presidente do Banco do Brasil pede exoneração do cargo. Um mês após, a Última Hora faz menção a um parecer de Coriolano de Góis - que em 1953 já era diretor da Cexim - no qual afirmava que não havia “interferência política” naquele órgão e que a comissão de inquérito2 poderia investigar suas atividades (ÚLTIMA HORA, 07/02/1953, p. 1).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A Cexim passa a ser sistematicamente acusada de conceder licenças de modo discricionário em um período de austera política de importação. Em nova reportagem, o órgão é acusado de não agir conforme a “moralidade administrativa” e de distribuir “generosidade”.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Costuma desculpar-se a direção da CEXIM dizendo que as licenças não eram novas, mas velhas e caducas, que haviam sido legalmente despachadas. A desculpa, pelo aspecto legal, pode servir porque a lei da CEXIM quem faz é ela própria. Pelo aspecto da moralidade administrativa, ou simplesmente moralidade, não há, porém, desculpa que sirva. (...) Das firmas contempladas pela estranha generosidade, recebeu segundo quinhão em grandeza uma do Rio Grande do Sul chamada CIREI. (...) Tudo isso foi feito em um período em que se negava licença até mesmo para a importação de medicamentos indispensáveis ao povo. (...) A CEXIM é isto aí que está escrito. E também é isto o governo Vargas (CORREIO DA MANHÃ, 29/03/1953, p. 1).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O discurso da moralidade é mais uma vez mobilizado pelo jornal uma semana após as eleições municipais de 1953. Em São Paulo, Jânio Quadros (Partido Democrata Cristão, PDC), com 36 anos, acabava de ser eleito com uma campanha de denúncia de desperdício de dinheiro público e “moralização do serviço público”. Ao assumir a prefeitura, “um de seus primeiros atos foi promover demissões em massa de funcionários, iniciando uma cruzada moralizadora que marcou sua gestão” (MAYER e XAVIER, 2001, p. 4820). A vitória de Jânio contribui, certamente, para a promoção da questão da “moralidade pública” no debate político nacional; questão que ganha força, por exemplo, nos editoriais d’O Estado de S. Paulo (GOLDSTEIN, 2017, p. 400).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A matéria também investe em uma nova direção. As denúncias não ficam restritas aos limites do órgão, mas são apresentadas como retrato do conjunto do governo Vargas. As práticas nele identificadas como as decisões baseadas na amizade e a concessão de privilégios deixam de ser vistas como pontuais e passam a ser apresentadas como constitutivas do próprio governo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Somente dois meses depois, o Correio da Manhã passa a utilizar a palavra “corrupção” para se referir às práticas atribuídas ao órgão. Em maio de 1953, o jornal publica matéria com o seguinte título: “A CEXIM trouxe a corrupção nos negócios de importação e exportação” (CORREIO DA MANHÃ, 09/05/1953, p.1). O termo não constava no corpo da matéria que, porém, mais uma vez, chamou atenção para o “favoritismo”, os prejuízos à economia promovidos pelo órgão e a facilidade de obtenção de licenças para alguns e a dificuldade para outros. Para o jornal, a Cexim era um instrumento de distribuição de “favores”.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A ideia de corrupção foi novamente utilizada para dar título a outra matéria: “CEXIM é a responsável direta pela imoralidade e corrupção” (Idem, 03/07/1953, p.10). Nesse momento, o órgão é descrito como agente ativo da “corrupção” e as “classes econômicas” como vítimas das condutas dos agentes públicos: “É ela [Cexim] quem provoca e estimula as práticas condenáveis nos licenciamentos e as classes econômicas precisam curvar-se a ela se quiserem sobreviver” (Idem). O mesmo raciocínio é retomado no título de nova matéria publicada alguns dias depois: “A CEXIM não é vítima de uma crise moral, mas um agente da corrupção” (Idem, 23/07/1953, p. 10). Em poucos meses, as denúncias sobre a Cexim promoveram não só a vinculação do órgão à “corrupção”, mas o próprio governo Vargas, ao construir a imagem de que as práticas ali identificadas eram apenas uma manifestação do que se passava na totalidade da administração federal.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O Correio da Manhã passou, então, a cobrar um posicionamento do governo em relação ao que se tornou conhecido como o “Escândalo da Cexim” e pedidos de extinção do órgão tornaram-se frequentes no jornal: “Aceitar a CEXIM é aceitar a manutenção de um órgão de corrupção e de esbanjamento de divisas” (Idem, 24/07/1953, p.10), “A lei de licença prévia é um incentivo à corrupção” (Idem, 16/09/1953, p. 10), “A CEXIM prejudica material e moralmente o país” (Idem, 02/10/1953, p. 10), “CEXIM, o maior escândalo deste país” (Idem, ibid., p. 10).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">É importante salientar que críticas ao órgão vinham se acumulando desde o início dos anos 1950 em razão da crise cambial criada pelo aumento das importações, comparativamente às exportações. A alternativa apresentada pelos industriais para superação da crise cambial, apoiados pela UDN e por setores liberais, era o controle mais rigoroso das importações de produtos supérfluos, incentivos à exportação, maior controle dos pagamentos feitos ao exterior e participação dos industriais na formulação de tratados comerciais (LEOPOLDI, 1994). Em dezembro de 1953, a Cexim é extinta e substituída pela Carteira de Comércio Exterior (Cacex), do Banco do Brasil.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O “Escândalo da Cexim” nos parece central para nosso argumento sobre o fenômeno da corrupção no segundo governo Vargas particularmente porque podemos identificar no contexto das denúncias públicas a seu respeito tanto a introdução da ideia de corrupção para descrevê-lo quanto a vinculação da corrupção ao próprio governo Vargas. Os discursos sobre a corrupção e a defesa da moralidade são retomados, como destaca a literatura especializada sobre o período, no “Caso Última Hora”, cuja Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) foi criada alguns meses antes da extinção da Cexim.</div><div style="text-align: justify;">O ‘Caso Última Hora’</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Fundado em 1951, o jornal Última Hora surge como um concorrente da Tribuna da Imprensa. O primeiro desafio apresentado por seu fundador, Samuel Wainer, era encontrar instalações para abrigar o vespertino. Esse processo foi facilitado pela crise financeira do Diário Carioca, cujos diretores tinham interesse em vender a Editora de Revistas e Publicações (Erica). A Erica havia construído um prédio de quatro andares na Avenida Presidente Vargas para a publicação do Diário Carioca e encontrava-se seriamente endividada com o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal. A venda do prédio para o novo jornal foi feita a um grupo ligado a Samuel Wainer: Walther Moreira Salles (superintendente da Moeda e do Crédito do Banco do Brasil), o deputado Euvaldo Lodi e Ricardo Jafet (presidente do Banco do Brasil), todos eles alvos de suspeitas divulgadas pela Tribuna no passado. Após a transferência da Erica, foi preciso financiar o lançamento do novo jornal. Parte desse dinheiro originou-se de um empréstimo inicial de 63 milhões de cruzeiros do Banco do Brasil. Em abril e maio de 1951, Ricardo Jafet e o deputado Lutero Vargas ajudaram o grupo Wainer a assumir o controle de uma companhia de radiodifusão em dificuldades financeiras, a Rádio Clube Brasil, cujas dívidas incluíam 54 milhões de cruzeiros ao Banco do Brasil (DULLES, 1992).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">As primeiras denúncias envolvendo a relação entre a Última Hora e o governo datam do início de 1952. Em matéria de capa da Tribuna da Imprensa, Lacerda questionou a participação do Banco do Brasil na importação de papel para o jornal (TRIBUNA DA IMPRENSA, 10/03/1952, pp. 1, 9). Nesse período, a imprensa dependia da importação de papel para confecção dos jornais. Segundo a narrativa de Lacerda, a imprensa teve dificuldade para importar papel na primeira gestão de Vargas e a importação estava condicionada às boas relações com o governo. Na matéria, Lacerda lembrava que de acordo com a legislação sobre a importação de papel, o processo deveria ter sido conduzido por órgãos da imprensa e não pelo Banco do Brasil.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O empréstimo de 160 milhões de cruzeiros para a Erica e a Última Hora foi questionado na Câmara pelo deputado Olavo Pinto (UDN) e pela Tribuna da Imprensa quando ainda estavam em curso as discussões sobre o Inquérito do Banco do Brasil (Idem, 27/08/1952, p. 1). Por meio da Tribuna da Imprensa, Lacerda argumentava que a Última Hora foi montada por Getúlio Vargas para apoiar os comunistas e silenciar a imprensa. Em artigo de agosto de 1952, Lacerda questionou os empréstimos e os interesses do governo a partir de documentos arrolados no Inquérito do Banco do Brasil. A partir deles, sustentou que “demonstraram que o governo por intermédio do Banco do Brasil forneceu dinheiro a um grupo de amigos e parentes para compra e instalação de um jornal. A seguir forneceu mais dinheiro para ampliá-lo e dar a esse jornal proporções nababescas” (Idem, ibid., p. 4).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Dois aspectos principais sustentavam as acusações: primeiro, a ideia do patrocínio de negócios de amigos e parentes com recursos públicos e, segundo, o financiamento de um órgão de imprensa que atuava como uma agência de propaganda do governo. Do ponto de vista dos liberais e da imprensa liberal na época, a participação do governo no mercado jornalístico através do apoio econômico a um órgão específico era entendida como uma forma de “corrupção da opinião pública” (SPECK, 1996, p. 2) e, por conseguinte, uma ameaça à democracia.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">As frequentes denúncias a respeito da Última Hora fomentaram a criação de uma CPI para investigar transações financeiras entre o Banco do Brasil e as empresas jornalísticas, tendo como alvo principal o jornal de Samuel Wainer. Criada em junho de 1953, a comissão ficou conhecida como a “CPI da Última Hora”.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Lacerda foi inquerido como um dos autores da denúncia que deu origem às investigações. Em seu depoimento à CPI, Lacerda defendeu o ponto de vista de que a criação do jornal foi viabilizada graças aos negócios garantidos pelos empréstimos do Banco do Brasil, que, no seu entender, caracterizavam mais um lance de “imoralidade” do governo (CORREIO DA MANHÃ, 10/06/1953, p. 10).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Samuel Wainer, por sua vez, alegou em seu depoimento que as organizações gráficas e jornalísticas de que fazia parte foram constituídas exclusivamente com capital particular, aumentando em pouco mais de 75 milhões de cruzeiros o débito das mesmas com o Banco do Brasil. Contestou que o valor dessa dívida fosse superior a 250 milhões de cruzeiros, declarando que a renda da empresa, de que era um dos diretores, lhe assegurava completa solvabilidade financeira (Idem, 24/06/1953, p. 12). No mesmo dia do depoimento, Lacerda foi à televisão refutar as declarações de Wainer: reiterou a versão de que a criação da Última Hora visou atender Getúlio Vargas, de que houve favorecimento para sua fundação e de que o jornal obteve proteção na aquisição de papel. O jornalista mobilizou, como já mencionado antes, dois termos importantes do repertório de acusações políticas: “favorecimento” e “protecionismo”.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Após cinco meses de trabalho e da campanha que a Tribuna da Imprensa promoveu junto a canais de rádio e TV, a CPI foi finalizada sem que tenha sido comprovada a participação do presidente nos negócios entre o Banco do Brasil e a Última Hora. O jornal de Samuel Wainer, no entanto, tornou-se a expressão da “corrupção no governo”. A vinculação do jornal à corrupção foi explorada por Carlos Lacerda, que defendeu por meio de frequentes manifestações o fechamento do jornal, como demonstra a matéria reproduzida a seguir, intitulada “Deve desaparecer a Bastilha da corrupção”:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Nosso objetivo não é, não pode ser apenas o afastamento de Samuel Wainer da direção da “Última Hora”. Nós pretendemos conseguir para decoro da nação e garantia do regime democrático, que se extinga do Brasil a intervenção do poder econômico do Estado na liberdade de informação e opinião. (...) Atingimos com a “Última Hora”, o próprio centro da corrupção. O conluio dos negocistas do Estado, para sufocar a imprensa e impedir o funcionamento da democracia no Brasil, ficou agora evidenciado. Não há, portanto, motivo para recuar ou hesitar. (...) Além disto, a “Última Hora” tomou o significado de uma Bastilha da corrupção, e como tal deve ser encarada e desaparecer. (...) O país espera que o governo cumpra seu papel (TRIBUNA DA IMPRENSA, 27/07/1953, pp. 1, 4).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Cabe destacar na matéria o próprio relevo dado no título à denúncia de corrupção, entendida, no caso, como a intervenção econômica do Estado em favor de um órgão da imprensa e, por conseguinte, do comprometimento de sua liberdade como órgão de produção de informações imparciais, visão defendida publicamente pela imprensa liberal. A Última Hora torna-se, dessa perspectiva, o símbolo da “corrupção” e uma ameaça à democracia.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Com o andamento das investigações, Carlos Lacerda renova as acusações publicadas em agosto de 1952 no contexto dos debates sobre o “Inquérito do Banco do Brasil”. Por meio de novas denúncias, ele envolve Lutero Vargas nas negociações do financiamento do Banco do Brasil à Última Hora. Cabe ressaltar, no entanto, que se o termo corrupção não foi utilizado naquele momento, agora o jornalista associa a corrupção diretamente ao filho do presidente. Assim, em matéria com o título “A corrupção de Lutero Vargas”, este é descrito como um dos principais “agentes da corrupção”:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Confirma-se o que afirmamos: Lutero Vargas era com Samuel Wainer o avalista de financiamentos do Banco do Brasil a “Última Hora”. (...) Condições que tinha ele para esse aval? Uma só condição: Filho do presidente da República. (...) No cadastro do Banco do Brasil, figura Lutero ligado, comercialmente, à ‘Última Hora’. Deputado, ele recebeu de seu pai concessão de canal para emissora, propriedade da União. Foi ele, portanto no governo um dos beneficiários e um dos principais agentes da corrupção (Tribuna da Imprensa, 19/08/1953, p. 4).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No relato do jornal é destacada a ligação comercial e a condição de avalista de Lutero Vargas ao empréstimo feito à Última Hora. Ao chamar atenção para esses vínculos, a Tribuna da Imprensa não só atribui à Última Hora o rótulo de “Bastilha da corrupção”, como desloca as acusações de “corrupção” para o círculo íntimo do presidente e atribui a seu filho a condição de beneficiário e “agente da corrupção”.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A associação da “corrupção” ao Palácio do Catete passou a ocupar as páginas de jornais e os eventos públicos. Em função de sua campanha pelo fechamento da Última Hora, em setembro de 1953, Carlos Lacerda é homenageado em Campinas (SP) com o título de sócio honorário do Centro de Ciências, Letras e Artes. Em seu discurso, o vice-prefeito João Sousa Coelho destacou a “corrupção” no governo e a atuação de Lacerda:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Dois grandes fenômenos sacudiram este ano a democracia brasileira, numa tentativa em favor da moralidade e contra a corrupção - a vitória de Jânio Quadros e a campanha de Carlos Lacerda. (...) Saudando o conferencista, disse o jornalista Luso Ventura que há atualmente no Brasil, uma ilha da corrupção: o palácio do Catete (TRIBUNA DA IMPRENSA, 08/09/1953, p. 4).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Os discursos sobre a moralização da administração pública e as denúncias de “corrupção no governo” são indicações de como esses temas passaram a ter lugar naquele momento na agenda de preocupações públicas. A eleição de candidatos e a glorificação de políticos que empunharam a bandeira da moralidade pública e do combate à “corrupção” demonstram como o tema fazia sentido e mobilizava segmentos da população. A consagração da corrupção como parte do vocabulário de acusações e denúncias políticas é resumida em discurso do deputado Aliomar Baleeiro (UDN), em setembro de 1953, reproduzido pela Tribuna da Imprensa com o título: “[Francisco] Matarazzo corrompeu um governo corrupto e corruptível”:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Não acreditava que o deputado Lutero Vargas fosse desonesto, ele apenas caiu como um patinho levado por Matarazzo. (...) Condenou o Sr. Getúlio Vargas que assistiu impassível ao envolvimento de seu próprio filho numa negociata desta ordem. E que agora mais impassível ainda, assiste a essa maré de lama que sujando a nação, ameaça sujar sua família (Idem, 15/09/1953, p. 4).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Em seu discurso, o deputado atualizou a narrativa sobre a participação de Lutero Vargas no lançamento da Última Hora e, desse modo, defendeu que seu comportamento comprometia não só a “nação” como o próprio presidente. Nesse contexto, a expressão “maré de lama” passa a designar também a suposta onda de “corrupção” no governo. A imagem volta a ser utilizada em outras ocasiões, como o título de outra matéria da Tribuna da Imprensa sobre a Última Hora: “Última Hora: mar de lama que envergonha o país” (Idem, 07/12/1953, p. 1).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A importância atribuída ao tema estava expressa também em um longo editorial publicado, ainda em setembro, no Tribuna da Imprensa com o título: “Corrupção”. De modo geral, o texto atribuía ao que define como corrupção a “desordem” que acreditava reinar no país:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Uma onda de desordem avassala o país. Desordens administrativas, desordens de ideias, desordens morais. Procedimentos os mais desencontrados atingem a coletividade brasileira, que estarrecida, tonta, perplexa e temerosa pergunta que é que há? Que vírus é esse que altera, modifica, transtorna, inverte, perturba e contraria os mais elementares princípios da vida em sociedade? Por que tudo isso? Qual a causa cujos efeitos aparecem tão visíveis e sensíveis em nossos dias? A corrupção, em seus aspectos os mais profundos e variados, é a grande responsável pelo drama que estamos vivendo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Corrupção dos princípios de direção pública houve quando, há cerca de 15 anos, se inaugurou neste país uma era de força, de mando de poucos exigindo a obediência de todos. Corrupção do respeito pela palavra oficial houve quando foi estabelecido, como brasão do regime, o ‘golpismo’, a arte de dizer uma coisa para executá-la totalmente diferente.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Corrupção dos sentimentos de lealdade e respeito ao próximo houve quando estabeleceram como norma, como índice de ‘elevadíssima inteligência’, a rasteira, o convite a um cidadão para ocupar um cargo público e alijá-lo do mesmo sem a menor consideração (...).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Corrupção da formação cultural e artística de um povo houve quando preencheram os cargos de direção, nesses importantíssimos setores, por protegidos, sem lhes exigir que fossem cultos e tivessem moral (...).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">(...) A corrupção desenvolveu-se, pois, em nosso país de forma assustadora e se alastra em quase todos os setores da vida nacional.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">(...) O mal está generalizado. Temos de combatê-lo com energia e já o estamos felizmente combatendo. (...) Ninguém afirmaria em poucos meses, que homens que se julgavam ‘donos do Brasil’ teriam de dar satisfações públicas dos atos praticados. Mas já estão sendo compelidos a dá-las, e o melhor: vão ser punidos pelo que de errado fizeram. Com os meios que as leis facultam (Idem, 30/09/1953, p. 4).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O ponto de partida do editorial era a afirmação de que o país vivia uma espécie de anomia social e sofria de um “mal generalizado”. O problema, segundo ele, afetava tanto a administração pública como a sociedade. Ao colocar a questão sobre a causa dessa situação, a resposta é atribuída à “corrupção”, concebida como um vírus que se espalha de modo descontrolado e como uma patologia a ser combatida. O sentido do termo é amplo o bastante para caber diferentes coisas: “a corrupção da administração pública”, a “corrupção do respeito pela palavra”, “a corrupção da lealdade” e a “corrupção da formação cultural e artística”. Nesse contexto, o termo remetia, particularmente, a um de seus sentidos reconhecidos que é o de deturpação e adulteração de princípios administrativos e morais. Enfim, pode-se observar no texto uma das apropriações comuns da palavra corrupção: seu uso como categoria interpretativa capaz de explicar a origem de inúmeros problemas públicos e nacionais.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A difusão da corrupção como tema de mobilização de interesse público e de arma nas lutas políticas passa a contar, nos primeiros meses de 1954, com iniciativas efetuadas para a mobilização de estudantes. Nelas ocupavam um lugar de destaque integrantes da UDN. Em abril, a Tribuna da Imprensa noticiava a participação da União Nacional dos Estudantes (UNE) em eventos de mobilização contra a corrupção: “No Rio, haverá grande reunião na sede da UNE. Os deputados Raimundo Padilha e José Bonifácio falarão aos estudantes e ao povo sobre os escândalos da CEXIM e do Banco do Brasil. Dirão quais foram os responsáveis, os beneficiários e as consequências” (Idem, 19/04/1954, p. 1).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Considerando que em julho de 1954 vivia-se o clima de novas eleições, o tema da corrupção foi incorporado às disputas eleitorais. Segundo a Tribuna da Imprensa, ele foi abordado no encontro nacional de estudantes no qual foram discutidos os casos da Cexim, Última Hora, a organização de uma campanha de esclarecimento público para as novas eleições e a “formação, em todo o país, de uma união contra Vargas” (Idem, 28/07/1954, p. 2). Em Nova Iguaçu (RJ), em um comício de candidatos a deputados e vereadores, Lacerda foi, segundo a Tribuna da Imprensa, recebido e ovacionado pela população. O evento ganhou a matéria de capa com o título: “Levanta-se o povo contra a corrupção” (Idem, 12/07/1954, p. 2).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Às denúncias de corrupção no governo se somam, em agosto de 1954, as suspeitas de participação do governo e pessoalmente de Getúlio Vargas no atentado a Carlos Lacerda na entrada de sua residência na Rua Toneleros, em Copacabana. Lacerda foi baleado, mas seu segurança, o major da aeronáutica Rubens Vaz, morreu no atentado. Na ocasião, Vargas já enfrentava a campanha pelo impeachment que desde junho era sustentada pelo Tribuna da Imprensa. As investigações constataram que o responsável pela guarda pessoal do presidente, Gregório Fortunato, estava diretamente envolvido no atentado. Nesse momento, a imagem do “mar de lama” é mais uma vez mobilizada pelo líder da UDN, deputado Afonso Arinos, no duro discurso proferido na Câmara Federal, em 13 de agosto de 1954: “Tenha a coragem de perceber que o seu governo é hoje um estuário de lama e um estuário de sangue” (MELO FRANCO, 1979, p. 704). Com a divulgação das informações sobre o envolvimento de sua guarda pessoal na morte do major, as pressões para a renúncia originadas da elite conservadora, da oposição e das forças armadas crescem e, em 24 de agosto de 1954, o desfecho político de Getúlio Vargas foi selado por seu suicídio.</div><div style="text-align: justify;">Conclusões</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Uma das imagens cristalizadas do segundo governo de Getúlio Vargas na literatura e no imaginário popular é a da importância do fenômeno da corrupção nos desdobramentos políticos que resultaram no suicídio do presidente. Discursos sobre a corrupção promovidos, sobretudo, por agentes políticos e pela imprensa passaram a fazer parte dos debates públicos no período e tornaram-se um idioma de acusações políticas, reivindicações de ilegitimidade e moralidade (MUIR e GUPTA, 2018). Tendo esse contexto como referência, em vez de tomarmos a chamada “corrupção no governo” como um dado da organização administrativa e política da época, concebemos o fenômeno da corrupção como um produto político e, por conseguinte, o interrogamos a respeito de sua emergência como uma questão de interesse público.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">As representações sobre a corrupção difundidas por meio das denúncias e narrativas dos jornais examinados constituem, a nosso ver, uma dimensão essencial da corrupção como fenômeno social no contexto examinado. Como mostra a literatura sobre o tema, os discursos sobre a corrupção e as práticas identificadas nesses termos variam no tempo e de uma sociedade para outra. Assim, ao olharmos para as denúncias no segundo governo Vargas, procuramos examinar alguns dos elementos que conformam a corrupção como um fenômeno, ou seja, o significado atribuído ao termo, as práticas rotuladas como corrupção, os agentes cujas atividades são associadas à corrupção, os promotores das denúncias de corrupção, a circulação das denúncias e seus efeitos, entre outros.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A identificação inicial de algumas palavras e expressões do vocabulário disponível para o julgamento de transgressões administrativas e políticas revela que o termo “corrupção” era apenas mais um em um leque amplo de alternativas, que, porém, ganha relevância ao longo do mandato. Se outros autores já chamaram a atenção para esse aspecto (GOLDSTEIN, 2017), é importante, porém, ressaltar suas implicações em termos da recusa de certa naturalização da utilização do termo “corrupção” como item do repertório de crítica política.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Tendo em conta as informações reunidas no trabalho, propomos que a emergência do fenômeno da corrupção nesse momento resulta, sobretudo, de uma combinação de fatores relacionados às disputas políticas. Primeiro, a recusa dos opositores de Getúlio Vargas de aceitarem a derrota eleitoral em 1950 e, com ela, a derrota da possibilidade de implementação das propostas liberais na economia. Diante da defesa da ampliação da atuação do Estado, as denúncias contra a ineficiência dos órgãos públicos, o desperdício de recursos públicos e as sinecuras constituíam uma frente importante de atuação dos políticos liberais. Nesse contexto, a ideia de corrupção parece encontrar um terreno fértil como meio de crítica ao governo eleito. Diretamente relacionada a esse ponto, e esse nos parece outro aspecto importante, é a eleição de Jânio Quadros à Prefeitura de São Paulo. Sua campanha não só demonstrou que as propostas de combate ao desperdício público e de defesa da moralidade pública mobilizavam eleitores, como também contribuiu para dar maior visibilidade ao tema. A adesão da imprensa liberal paulista ao seu mandato, o que ocorre após a eleição para a prefeitura, e à sua campanha vitoriosa para o governo do estado, asseguraram uma maior divulgação do tema. Enfim, o terceiro fator mencionado é a incorporação por políticos da UDN - especialmente pelo jornalista Carlos Lacerda - das acusações de corrupção nas estratégias de confronto político com o “getulismo”.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O conflito político, como narrado pelos três jornais examinados, entre “getulistas” e “antigetulistas” constitui uma dimensão essencial do fenômeno da corrupção nesse momento e de sua natureza como produto político. São indissociáveis dos acontecimentos que dão conteúdo a esse conflito as medidas administrativas e os sentidos associados à corrupção: as comissões de inquérito, a delimitação das práticas tidas como de corrupção, a circulação das denúncias de corrupção ou o questionamento da legitimidade do governo e do presidente.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">É pela referência a esse conflito que também se pode compreender o significado específico que nesse contexto adquire a ideia de corrupção como desvio moral das autoridades administrativas e governamentais e, por conseguinte, como algo capaz de comprometer a credibilidade dos acusados e a legitimidade do governo. Assim, as acusações de que verbas públicas estariam sendo utilizadas para beneficiar aliados políticos, membros do governo e o filho do presidente são interpretadas pelos opositores não como fatos circunscritos, mas como expressão da totalidade do governo, isto é, da “corrupção do governo”.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">As observações sobre a relação entre a corrupção como construto político e os conflitos entre “getulistas” e “antigetulistas”, entendidos como expressão das principais posições políticas durante o segundo governo Vargas, nos estimula a propor uma explicação alternativa à oferecida por Goldstein acerca do significado das denúncias de corrupção quando consideradas do ponto de vista da estrutura social. Nos termos do autor, “a moralização da política contribuiria nesse contexto para a naturalização da ordem social, garantindo a exclusão de outras problemáticas [como a desigualdade] da agenda pública” (GOLDSTEIN, 2017, p. 412). Segundo nossa perspectiva, o uso das denúncias de corrupção por parte dos “antigetulistas” faz mais sentido se entendido como um meio de viabilização de um projeto de transformação política e de luta pelo poder governamental.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Referências</div><div style="text-align: justify;">ABREU, Alzira Alves de; BELOCH, Israel; LATMAN-WELTMAN, Fernando; LAMARÃO, Sérgio Tadeu de Niemeyer (orgs). “Cexim”. In: Dicionário histórico-biográfico brasileiro (vol. I). Rio de Janeiro: FGV, 2001, pp. 1155-1156.</div><div style="text-align: justify;">ABREU, Alzira Alves de; LATMAN-WELTMAN, Fernando. “A imprensa e a crise de agosto de 1954”. In: GOMES, Ângela de Castro (orgs). Vargas e a crise dos anos 50. Rio de Janeiro: Relume Dumará,1994, pp. 23-60.</div><div style="text-align: justify;">AVRITZER, Leonardo; BIGNOTTO, Newton; GUIMARÃES, Juarez; STARLING, Heloisa Maria Murgel (orgs). Corrupção: Ensaios e críticas. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2012.</div><div style="text-align: justify;">BARBA, Mariana Della. “Corrupção no Brasil tem origem no período colonial, diz historiadora”. BBC Brasil, Brasil, 4 de novembro de 2012. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2012/11/121026_corrupcao_origens_mdb.shtml</div><div style="text-align: justify;"><a href="https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2012/11/121026_corrupcao_origens_mdb.shtml">» https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2012/11/121026_corrupcao_origens_mdb.shtml</a></div><div style="text-align: justify;">BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. A UDN e o udenismo: Ambiguidades do liberalismo brasileiro (1945-1965). 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Corruption: Anthropological Perspectives. Londres/MI: Pluto Press/Ann Arbor, 2005.</div><div style="text-align: justify;">JOHNSTON, Michael. “A la recherché de définitions: Vitalité politique et corruption”. Revue internationale des sciences sociales, n. 149, pp. 371-387, 1996.</div><div style="text-align: justify;">LAMARÃO, Sérgio Tadeu de Niemeyer. “Mar de lama”. In: ABREU, Alzira Alves de et al. (orgs). Dicionário histórico-biográfico brasileiro (vol. III). Rio de Janeiro: FGV, 2001, pp. 3545-3546.</div><div style="text-align: justify;">LEAL, Carlos Eduardo. “Correio da Manhã”. In: ABREU, Alzira Alves de et al. (orgs). Dicionário histórico-biográfico brasileiro (vol. II). Rio de Janeiro: FGV, 2001, pp. 1625-1632.</div><div style="text-align: justify;">LEOPOLDI, Maria Antonieta. “O difícil caminho do meio: Estado, burguesia e industrialização no segundo governo Vargas (1951-1954). In: GOMES, Ângela de Castro. (org). Vargas e a crise dos anos 50. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994, pp.161-203.</div><div style="text-align: justify;">LOSNACK, Célio. “Programete 12 - O jornal Última Hora”. História da Imprensa no Brasil, 3 de janeiro de 2012. Disponível em: http://historiadaimprensanobrasil.blogspot.com.br/2012/01/programete-12-o-jornal-ultima-hora.html</div><div style="text-align: justify;"><a href="http://historiadaimprensanobrasil.blogspot.com.br/2012/01/programete-12-o-jornal-ultima-hora.html">» http://historiadaimprensanobrasil.blogspot.com.br/2012/01/programete-12-o-jornal-ultima-hora.html</a></div><div style="text-align: justify;">MAYER, Jorge Miguel; XAVIER, Libânia. “Quadros, Jânio”. In: ABREU, Alzira Alves de et al. (orgs). Dicionário histórico-biográfico brasileiro (vol. IV). Rio de Janeiro: FGV, 2001, pp. 4819-4829.</div><div style="text-align: justify;">MELO FRANCO, Afonso Arinos de. A alma do tempo: Memórias. Rio de Janeiro/Brasília: José Olympio/Instituto Nacional do Livro, 1979.</div><div style="text-align: justify;">MOTTA, Rodrigo Patto Sá. “Corrupção no Brasil republicano, 1954-1964”. In: AVRITZER, Leonardo; BIGNOTTO, Newton; GUIMARÃES, Juarez; STARLING, Heloisa Maria Murgel (orgs). Corrupção: Ensaios e críticas. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2012, pp. 206-212.</div><div style="text-align: justify;">MUIR, Sara; GUPTA, Akhil. “Rethinking the Anthropology of Corruption”. Current Anthropology, vol. 59, suppl. 18, pp. S4-S15, 2018.</div><div style="text-align: justify;">NETO, Lira. Getúlio: Da volta pela consagração popular ao suicídio (1945-1954). São Paulo: Companhia das Letras, 2014.</div><div style="text-align: justify;">ROMEIRO, Adriana. “A corrupção na Época Moderna: Conceitos e desafios metodológicos”. Revista Tempo, vol. 21, n. 38, pp. 216-237, 2015.</div><div style="text-align: justify;">ROSE-ACKERMAN, Susan. Corruption and Government: Causes, Consequences, and Reform. Nova York: Cambridge University Press, 1999.</div><div style="text-align: justify;">SMITH, Daniel Jordan. A Culture of Corruption: Everyday Deception and Popular Discontent in Nigeria. Princeton: Princeton University Press, 2007.</div><div style="text-align: justify;">SODRÉ, Nelson Werneck. A história da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.</div><div style="text-align: justify;">SPECK, Bruno Wilhelm. “A corrupção no pensamento político-social dos anos 50”. Trabalho apresentado no 20º Encontro Anual da Anpocs, Caxambu, 1996.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Notas</div><div style="text-align: justify;">1</div><div style="text-align: justify;">Ao privilegiarmos a relação do fenômeno da corrupção com a dimensão política, é importante lembrar, não exploramos ao longo do artigo a dimensão jurídica do fenômeno. Ademais, cabe destacar que no material da imprensa reunido não encontramos menções explícitas ao enquadramento legal da corrupção ou ao Código Penal de 1940, em que estão definidos os “crimes contra a administração pública”. Esses são divididos em quatro capítulos: “Dos crimes praticados por funcionário público contra a administração geral”, “Dos crimes praticados por particular contra a administração pública em geral”, “Dos crimes contra a administração da justiça” e “Dos crimes contra as finanças públicas”. No Código também são definidos os crimes de “corrupção ativa”, “corrupção passiva” e “peculato”.</div><div style="text-align: justify;">2</div><div style="text-align: justify;">Trata-se da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar as atividades da Carteira de Redesconto e da Caixa de Imobilização Bancária do Banco do Brasil.</div><div style="text-align: justify;"><a class="dropdown-toggle" data-toggle="dropdown" href="https://www.scielo.br/j/dilemas/a/rMqHLZsB4mqScVwxBHjd44j/?lang=pt" style="animation-duration: 0.1s; animation-fill-mode: both; background-color: white; box-sizing: border-box; color: #00314c; font-family: Arial, sans-serif; font-size: 12.6px; font-weight: 700; outline-offset: -2px; outline: 0px; text-align: left; text-decoration-line: none; transition: color 0.1s ease-out 0s, text-indent 0.1s ease-out 0s;"><span class="text" style="box-sizing: border-box;"><span class="truncate" style="box-sizing: border-box; overflow: hidden; text-overflow: ellipsis; white-space: nowrap; width: 450px;">Revista de Estudos de Conflito e Controle Social</span></span></a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div class="blogger-post-footer">História Viva</div>Eduardohttp://www.blogger.com/profile/04436257793497288219noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5377690050920894907.post-4795662747701559182022-06-25T00:46:00.006-03:002022-06-25T00:46:53.389-03:00Uma história da infância: da idade média à época contemporânea no ocidente<div style="text-align: justify;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEh2CuhRPDRuhOpo_89wfmhCYdakx0dS98zHFxvBQZaXYfJpVYOdPA2leMCuVIPCpJaAbRF2YA4kQNuPyt8vGMaYBmyjULmdrCSHwlmS9AL_zGl_kyEhgrqmY5ZBs8OYIOz7CXGLSHh94IktpznPtNx2WWT95bQnj-La5XF5u_Im8D05_FRstR4Ciw9Wbw" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img alt="" data-original-height="286" data-original-width="200" height="240" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEh2CuhRPDRuhOpo_89wfmhCYdakx0dS98zHFxvBQZaXYfJpVYOdPA2leMCuVIPCpJaAbRF2YA4kQNuPyt8vGMaYBmyjULmdrCSHwlmS9AL_zGl_kyEhgrqmY5ZBs8OYIOz7CXGLSHh94IktpznPtNx2WWT95bQnj-La5XF5u_Im8D05_FRstR4Ciw9Wbw" width="168" /></a></div><br /><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Moysés Kuhlmann Jr.</div> <div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">RESENHAS</div><div style="text-align: justify;">Moysés Kuhlmann Jr.</div><div style="text-align: justify;">Departamemto de Pesquisas Educacionais da Fundação Carlos Chagas, <a href="mailto:mkj@fcc.org.br">mkj@fcc.org.br</a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">UMA HISTÓRIA DA INFÂNCIA: DA IDADE MÉDIA À ÉPOCA CONTEMPORÂNEA NO OCIDENTE.</div><div style="text-align: justify;">Colin Heywood</div><div style="text-align: justify;">Porto Alegre: Artmed, 2004, 284p.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Passaram-se mais de 25 anos ao longo dos quais a obra de Philippe Ariès, História social da infância e da família, foi traduzida no Brasil e reinou quase solitária como referência para a história da infância ocidental. A publicação do livro de Colin Heywood permite aos leitores brasileiros o acesso a uma competente síntese do avanço dos estudos sobre o tema em alguns países europeus e nos EUA.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Heywood faz um rastreamento de pesquisas produzidas no Reino Unido, na França, nos EUA, bem como na Itália, na Rússia e nos países escandinavos, entre outros. Isso surpreende, pois não é comum encontrarmos obras de autores estrangeiros que reúnam como referências a bibliografia em língua francesa e em língua inglesa. Os estudos sobre a história da infância em nosso país têm se ocupado de algumas dessas pesquisas européias e norte-americanas e das críticas às teses de Ariès, mas as trataram em análises mais pontuais, referidas a um ou outro aspecto do tema.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O livro organiza-se em três partes. A primeira, ocupa-se das mudanças nas concepções de infância a partir da Idade Média. A segunda, trata da relação das crianças com seus pais e com seus pares ao longo das etapas do seu processo de crescimento. A terceira parte dedica-se às crianças no mundo mais amplo, envolvendo o trabalho, a saúde e a educação. Mesmo com a grande abrangência de fontes bibliográficas, a linguagem é acessível a um amplo público leitor.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O livro parte da compreensão de que seria simplista considerar a ausência ou a presença do sentimento da infância em um ou outro período da história. Considera mais frutífera a busca de diferentes concepções sobre a infância em diferentes tempos e lugares.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O autor identifica várias "descobertas" da infância: nos séculos VI a VII, nos séculos XII a XIV, nos séculos XVI e XVII, no século XVIII e início do XIX, e no final do XIX e início do XX. A história da infância move-se por "linhas sinuosas", de modo que a criança pode ter sido considerada impura no início do século XX, como o fora na Alta Idade Média. Se há uma mudança de longo prazo em que a progressiva aceitação da necessidade de uma educação escolar prolonga a infância e a adolescência, se há um interesse crescente e uma imagem cada vez mais positiva da infância, os debates assumem uma forma cíclica e não linear. A ambigüidade, nos diferentes momentos, polariza a criança entre a impureza e a inocência, entre as características inatas e as adquiridas, entre a independência e a dependência, entre meninos e meninas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">As relações das crianças com seus pais e pares é discutida sob vários aspectos: o desejo ou não de se ter filhos, o parto, o batismo, a apresentação das crianças à comunidade e a morte de mães e crianças. Heywood constata que até o impacto da medicina moderna, no final do século XIX, ter filhos era um empreendimento arriscado, mas isso não impedia a expectativa de procriação entre aqueles que se casavam.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A seguir, discute a questão das amas-de-leite, a alimentação, o vestuário, a higiene, o infanticídio, o abandono. Considera que a natureza dramática de algumas dessas questões, assim como a ampla documentação oriunda de instituições de atendimento e do judiciário, entre outras, favorece a ênfase da historiografia nesses aspectos. Entretanto, pondera que a maioria das crianças terá sido poupada desses traumas, vivendo histórias mais banais.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Quanto à segunda fase da infância, do desmame aos sete anos, identifica contrastantes formas de atitude dos pais: o tipo indiferente; o tipo "invasivo" ou "evangélico", que vê a criança como pecadora inata; o seu oposto, que a toma como naturalmente inocente; e o tipo moderado. O autor cita pesquisas que indicam diferentes modos de comportamento materno e paterno, tanto entre personagens da nobreza e da burguesia como entre trabalhadores, camponeses e escravos norte-americanos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A seguir, trata dos aprendizados e da educação das crianças: o controle dos esfíncteres, o caminhar, a fala, os brinquedos e brincadeiras, os livros infantis. Amedrontar, ironizar, castigar física e moralmente são formas de tratamento que ocorreram em diferentes momentos, embora também se pudesse identificar o combate a essas práticas, como no século XI, quando Santo Anselmo apontava as vantagens da gentileza e dos bons exemplos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Aos sete anos marcava-se uma transformação na vida das crianças. Mudavam-se os trajes, diferenciavam-se os gêneros, atribuíam-se responsabilidades. Ampliavam-se as relações sociais, seja pela entrada no mundo do trabalho ou do estudo, muitas vezes com a saída de casa, seja pelo maior convívio com os grupos de pares, que irão rivalizar com a família nas influências sobre a socialização das crianças.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A última parte do livro trata da presença das crianças no mundo do trabalho e da sua saúde e educação. O autor considera que, apesar dos exemplos cruéis de exploração do trabalho infantil, grande parte do trabalho feito pelas crianças no passado seria casual e de pouco esforço, relacionado a tarefas de ajudar os adultos nos seus afazeres. Há exemplos de ambas as formas de tratamento, das suaves às extenuantes, no campo e na cidade, antes e após a industrialização. As fábricas intensificaram os abusos sobre as crianças e se isso levou à discussão e formulação de leis, a legislação não chegou a proibir, mas a regulamentar o trabalho infantil e seus efeitos são passíveis de discussão. A condenação e eliminação de boa parte do trabalho infantil, a construção de uma concepção moderna da infância, que destaca a sua vulnerabilidade e que põe a escola como local privilegiado para a infância, foi fruto de um longo processo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Quanto à saúde, antes da medicina moderna, as crianças eram muito mais vulneráveis a inúmeros problemas, embora as evidências sobre as dificuldades por que passaram não sejam muitas. A melhoria dessa condição, com o passar do tempo, pode ser observada, por exemplo, pelos dados dos registros militares, relacionados à altura dos jovens: adolescentes da classe trabalhadora, nascidos no final da década de 1950, tinham 30 centímetros acima dos nascidos em meados do século XVIII, na Inglaterra. Mas há também estudos que mostram um declínio da estatura, em certos períodos, como entre 1760 e 1800, em Viena, provavelmente relacionado à deterioração dos padrões de vida e suas conseqüências para a nutrição. Outro indicador importante refere-se à mortalidade, que começa a diminuir, aos poucos, a partir do final do século XVIII, e mais efetivamente a partir do final do século XIX. Entretanto, o autor afirma que a melhoria nos dados estatísticos pode encobrir a persistência das desigualdades sociais: no século XIX, as crianças pobres e trabalhadoras eram mais baixas e morriam em maior número do que as de classe alta.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A substituição do trabalho pela escola, como principal ocupação da criança, fica mais caracterizada no final do século XIX e início do século XX. É uma longa história, que se inicia nos países protestantes do norte europeu, no século XVII. No século XVIII, reformadores começam a pensar em termos de um sistema nacional de educação. Heywood chama a atenção para as pesquisas que se ocupam das experiências educacionais anteriores, no âmbito do aprendizado dos ofícios, no período medieval. Considera ainda, que o acesso à educação também se fez marcar pelas desigualdades econômicas e de gênero e raça.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Nas conclusões, o autor reafirma a recorrência de vários temas nessa longa trajetória, da Alta Idade Média ao século XX. Indica melhorias significativas para sua saúde, educação e bem-estar, assim como o final da crença na impureza da infância. Considera, por fim, que as crianças não teriam sido vítimas passivas, possuindo alguma capacidade de resistência e de escolha.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Algumas críticas e considerações podem ser apresentadas à obra. Inicialmente, à edição brasileira. O cuidado com a revisão poderia ter evitado as várias falhas de digitação. O mesmo quanto à tradução, que incorre em alguns problemas. No subtítulo da obra, entende-se "tempos modernos" (modern times, no original) como "época contemporânea". Embora o autor, no último capítulo e em alguns poucos momentos do livro, refira-se aos tempos atuais, o seu estudo estende-se de fato ao início do século XX, sem ocupar-se das questões ocorridas ao longo do século passado. Em outro momento, para se referir ao controle dos esfíncteres, afirma-se que uma das primeiras tarefas propostas por pais e amas "era o ensinamento de como utilizar o banheiro". Parece haver um receio no uso de expressões como defecar e urinar e aí não se pode dizer se o problema é da tradução ou do texto original. Uma das falhas mais gritantes ocorre na página 178, quando ear deveria ser traduzido por "orelha" e não "ouvido", pois não é factível que, na situação descrita, para castigar uma criança em uma oficina, alguém tenha "martelado um prego em seu ouvido".</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Quanto ao texto e à amplitude do período estudado, em alguns momentos, parece que se transita com uma certa ligeireza do período medieval aos séculos XVIII e XIX, sem considerar as diferentes condições dos diferentes momentos históricos. Apoiado nas pesquisas realizadas em diversos países, o livro pouco pode falar, ainda, da vida das crianças nos ambientes rurais. Entretanto, o esforço "olímpico" de síntese, como considera o autor, torna essas simplificações quase que inevitáveis.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">É louvável a preocupação que acompanha todo o texto, de evitar uma compreensão da história como seqüência linear e evolutiva, assim como, por conseqüência, o entendimento de que, em cada momento haveria uma única infância, o que representa um grande avanço em relação às teses de Ariès. Mas ainda persiste, em vários momentos, uma certa compreensão hierarquizada das formas de sentimento e de relação entre adultos e crianças, como se os sentimentos mais positivos brotassem das classes superiores, irradiando-se para as inferiores.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Em outros momentos, a ponderação das ambigüidades pode levar a uma minimização das situações de exploração infantil, como na página 179, em que o autor afirma que "de forma nenhuma estas eram vítimas passivas da exploração" e que, de algum modo, "as crianças conseguiam transformar o chão de fábrica em um lugar de diversão para si próprias, subvertendo a atenção dos adultos ao seu redor". É necessário, de fato, metodologicamente, evitar as interpretações generalizadas, que acabam por ajuizar que tais ou quais crianças tiveram ou não tiveram infância. Por isso, é importante buscar as evidências de como a condição infantil se manifesta, mesmo nas condições mais adversas. Mas também é preciso estar atento para não se cair no pólo oposto e considerar que essas crianças seriam felizes e independentes diante de uma relação de forças tão desigual como as que têm com os adultos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Finalmente, cabe uma consideração do lado de cá, do hemisfério sul. A história ocidental ainda é contada no livro, como se não existíssemos, como se a colonização, o ouro, a prata, a batata e tantas outras coisas não fizessem parte da história do ocidente. Isso também remete à expressão "ocidental", que retira explicitamente da análise os aspectos das relações com as sociedades e culturas orientais, que têm suas implicações na nossa história da infância. Para ser mais coerente com a preocupação em se considerar as diferentes condições sociais, culturais etc., para uma compreensão mais consistente da História, caberia referir-se à história da humanidade.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">É claro que isso parece pedir demais, o que é fácil de se fazer em uma ligeira apreciação. Mas não custa indicar caminhos de reflexão para as nossas análises e pesquisas, sem deixar de considerar a importância do trabalho do autor, que avança muito mais do que outros, que generalizam para todo o mundo a partir de um único país ou região, ou de uma única referência lingüística.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Recomenda-se a leitura do livro a todos os que tenham interesse na temática.</div><div style="text-align: justify;"><b><span style="color: #800180;">Cadernos de Pesquisa Pequi</span></b></div><div class="blogger-post-footer">História Viva</div>Eduardohttp://www.blogger.com/profile/04436257793497288219noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5377690050920894907.post-44723696220705457522022-06-22T01:05:00.005-03:002022-06-22T01:05:49.826-03:00Indígenas em contexto urbano<div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Exposição em escolas abre a possibilidade para que alunos revelem ancestralidade sem receio de discriminação e com sentimento positivo de identificação</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: center;"><img height="267" src="https://cienciahoje.org.br/wp-content/uploads/2021/11/AdobeStock_252171694-scaled.jpeg" width="400" /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O ensino da temática indígena nas escolas é uma questão delicada, mesmo em locais onde estas populações parecem estar bem distantes. Minhas reflexões sobre o assunto se iniciaram em 2005, quando lecionava em São João de Meriti, cidade da região metropolitana do Rio de Janeiro. Eu tinha um aluno que era apelidado de “Japa” por seus colegas devido aos seus olhos puxados. Ele, na verdade, tinha origem indígena, mas preferia manter esta identidade escondida. Anos mais tarde, cursando o mestrado profissional em ensino de história, decidi desenvolver um material didático que atendesse a lei 11.645/08, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura indígena em todas as escolas do ensino básico. Foi assim que tive a oportunidade de entender que a história do menino dos olhos puxados (ou amendoados) não era tão incomum quanto parecia, mesmo em grandes centros urbanos como o Rio de Janeiro e municípios vizinhos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A presença de indígenas em cidades ainda gera muito estranhamento, tendo em vista a constante reprodução de estereótipos na mídia, na literatura e até mesmo nas escolas. A esta população atrelam exclusivamente um determinado modo de viver, como o de habitar nas florestas. Estereótipos e preconceitos associados aos povos indígenas partem de concepções evolucionistas e eurocêntricas, que interpretam as sociedades a partir de uma escala hierárquica onde os povos originários estariam nos primeiros estágios evolutivos. A ideia de aculturação, que entende que um povo supostamente inferior é assimilado por outro supostamente superior, também reforça a dificuldade de compreensão de indígenas vivendo nas cidades, convivendo junto do restante da sociedade brasileira sem abandonar suas identidades étnicas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div> <div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Presença nas cidades</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Cabe destacar que a presença de indígenas em cidades é anterior à chegada de Colombo e Cabral nas Américas. Lembremos que fica no Peru o sítio arqueológico de Caral Supe, a cidade mais antiga já conhecida do continente, contemporânea das civilizações do Egito Antigo e da Mesopotâmia. No Brasil, indígenas sempre estiveram nas cidades desde a criação dos primeiros assentamentos urbanos. No Rio de Janeiro, foram fundamentais na defesa da cidade, além de serem mão de obra na realização de obras públicas, entre elas o Aqueduto da Carioca, atualmente um dos mais conhecidos cartões postais da cidade, os Arcos da Lapa.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Do início da colonização portuguesa aos dias de hoje, diversas fontes comprovam que indígenas nunca deixaram de estar presentes nos centros urbanos. De acordo com o último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado em 2010, o Brasil possui 817.963 indígenas autodeclarados, dos quais 315.180 residem nas cidades. Na região metropolitana do Rio de Janeiro, 12.037 pessoas se autodeclararam indígenas. Na escola onde trabalhava durante o mestrado, na cidade de Duque de Caxias, a questão indígena se mostrou presente não só no nome do bairro onde está localizada, Parque Capivari, que na língua tupi significa rio das capivaras. Em uma pesquisa que realizei entre os alunos do segundo segmento do ensino fundamental, 51% se declararam descendentes indígenas, sendo que vários afirmaram que eram filhos, netos ou bisnetos de indígenas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div> <div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Conexão com a realidade</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A partir desta realidade invisível das escolas públicas da região metropolitana do Rio de Janeiro, entendi a necessidade de não só ensinar sobre a diversidade e a legitimidade das diferenças, como de combater preconceitos e estereótipos no que se refere ao ensino das populações indígenas. Também era importante estar atenta à possibilidade da existência de alunos indígenas ou descendentes nas salas de aula, e ajudá-los no reforço e recriação de suas identidades étnicas, a fim de fortalecê-los e auxiliá-los no enfrentamento das diversas violências sofridas por indígenas no Brasil, seja nas cidades ou nas aldeias.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Pensando nisso, criei uma exposição itinerante composta de cinco banners, que versam sobre indígenas nas cidades. Inspirada em um seminário chamado ‘Somos indígenas, mas não somos invisíveis’, organizado pelo Instituto dos Saberes dos Povos Originários Aldeia Jacutinga, uma instituição indígena de Duque de Caxias que tem entre suas missões promover a cultura indígena na cidade, a exposição tem como objetivo dar visibilidade as populações indígenas na cidade e combater preconceitos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: center;"><img height="400" src="https://cienciahoje.org.br/wp-content/uploads/2021/11/Banner1.jpg" width="300" /><img height="400" src="https://cienciahoje.org.br/wp-content/uploads/2021/11/Banner2.jpg" width="300" /><img height="400" src="https://cienciahoje.org.br/wp-content/uploads/2021/11/Banner3.jpg" width="300" /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Os indígenas são retratados na exposição em vários momentos e situações. Na alusão ao passado, temos a reprodução das pranchas, de autoria do pintor francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848), que mostram as caboclas lavadeiras no bairro do Catete e o índio guarani que servia de soldado de infantaria no Rio de Janeiro. No presente, aparecem em instituições indígenas que atuam na região metropolitana do Rio de Janeiro, como a Aldeia Maracanã, a Aldeia Jacutinga e o grupo Sementes da Terra, por exemplo. Também são retratados momentos em que estão “invisíveis” nas cidades – trabalhando como professores, pedreiros, ou simplesmente passeando – e outros em que estão expondo ou recriando suas identidades, promovendo encontros, palestras, cantando, dançando ou fazendo suas pinturas corporais.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Os resultados desta exposição nas escolas por onde passou sempre foram positivos, possibilitando um diálogo produtivo entre os alunos sobre a proximidade das populações indígenas. Muitos estudantes se mostraram surpresos com imagens de indígenas no cotidiano da cidade e passaram a entender que para ser indígena não precisa morar em aldeia, estar pintado e usar adereços de pena. Outros comentaram que conheciam indígenas e relataram as diferenças e semelhanças que viam entre indígenas e não indígenas. Por fim, a exposição abriu a possibilidade para que alguns alunos falassem sem medo de discriminação sobre sua ancestralidade, possibilitando reforçar um sentimento de identificação positiva nestes jovens, e assim contribuir para combater o etnocídio das populações indígenas que chegam às cidades.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Thais Elisa Silveira</div><div style="text-align: justify;">ProfHistória/Uerj</div><div style="text-align: justify;">Orientadora: Márcia de Almeida Gonçalves</div><div style="text-align: justify;">*Este artigo é resultante de tese premiada no Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória)</div><div style="text-align: justify;"><b>Revista Ciência Hoje</b></div><div class="blogger-post-footer">História Viva</div>Eduardohttp://www.blogger.com/profile/04436257793497288219noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5377690050920894907.post-55214580561222162442022-06-22T00:21:00.003-03:002022-06-22T00:21:19.476-03:00O mito da fênix e a combustão espontânea<div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Apesar de parecer mágica, a capacidade de se incendiar dessa ave mitológica conhecida por renascer das próprias cinzas é um fenômeno que pode acontecer em certas situações no mundo real</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: center;"><img height="331" src="https://cienciahoje.org.br/wp-content/uploads/2022/05/AdobeStock_165722152-scaled.jpeg" width="400" /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A fênix é uma ave mitológica, dotada de diversos poderes e cercada por muitos mistérios e histórias. Muito presente em nossa cultura atual, a fênix é conhecida por meio das histórias de ficção (livros, filmes, games e séries). Mas não pense que esse pássaro é uma criação moderna.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: center;"><img height="290" src="https://cienciahoje.org.br/wp-content/uploads/2022/05/1280px-Fenix_bennu.jpg" width="400" /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A garça de Heron, maior espécie de garça que já passou pela Terra, serviu de inspiração para o surgimento de Benu, um ser mitológico do Egito Antigo CRÉDITO: WIKIPEDIA</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Há cerca de 5 mil anos, a região que hoje é conhecida como Emirados Árabes Unidos abrigava a maior espécie de garça que já passou pela Terra: a garça de Heron (também chamada pelo nome científico de Ardea bennuides). Acredita-se que essa garça serviu de inspiração para o surgimento de Benu, um ser mitológico do Egito Antigo associado à alma do deus do Sol, Rá. Essa ave sagrada também era vista como símbolo do renascimento (o que também a ligava ao deus Osíris), pois se acreditava que, a cada 500 anos, ela era capaz de se consumir em chamas e renascer das próprias cinzas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Posteriormente, já na Grécia Antiga, surgiram histórias de um pássaro com propriedades muito semelhantes a Benu e que, na mitologia grega, recebeu o nome de fênix. Embora haja contestações</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">sobre a real origem desse ser mitológico, foram muitas as civilizações que cultuaram animais análogos a essa ave – ou outros pássaros com habilidades mágicas –, como os chineses, árabes, persas, entre outros povos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Por meio das histórias orais e escritas, o mito da fênix foi se propagando ao longo dos séculos. E podemos dizer que, dentre todas as histórias de pássaros mágicos, essa foi o que mais criou raízes no imaginário popular ocidental.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A fênix na cultura pop</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Muitas crianças e jovens tiveram um importante contato com a fênix por meio do universo de Harry Potter. A franquia de enorme sucesso, tanto no cinema quanto na literatura, nos apresenta a personagem Fawkes, uma fênix de enorme inteligência e lealdade que acompanhava o diretor da escola de magia de Hogwarts, Alvo Dumbledore.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: center;"><img height="167" src="https://cienciahoje.org.br/wp-content/uploads/2022/05/DfNnE-oWkAE2BSg.jpg" width="400" /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: center;"><i><span style="font-size: x-small;"><br /></span></i></div><div style="text-align: center;"><i><span style="font-size: x-small;">Nos filmes do universo de Harry Potter, a fênix Fawkes acompanhava o diretor da escola de magia de Hogwarts, Alvo Dumbledore CRÉDITO: DIVULGAÇÃO</span></i></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O primeiro contato que o jovem Harry Potter teve com Fawkes foi justamente no dia de sua queima. Em Harry Potter e a Câmara Secreta, o bruxo visita o escritório de Dumbledore e, em dado momento, quando ele se aproxima da ave (visivelmente velha e cansada), ela simplesmente se acende em chamas e é completamente consumida pelo fogo. O diretor acalma Harry, explicando que Fawkes é uma fênix e que já estava na hora de ela se incendiar para nascer novamente. A cena termina com uma bebê Fawkes nascendo das próprias cinzas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Depois desse dia, a fênix participou de muitos momentos importantes da saga. Foi ela quem levou a espada da Grifinória para ajudar Harry na luta contra o monstro basilisco na Câmara Secreta e, depois, derramou suas lágrimas sobre o jovem bruxo para curá-lo de ferimentos graves e ainda o carregou, junto com seus amigos, de volta para o castelo, demonstrando seus poderes de cura e de enorme força. Fawkes também auxiliou Dumbledore quando o diretor fugia dos funcionários do Ministério da Magia em Harry Potter e a Ordem da Fênix, dentre outras aparições.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O filme mais recente da franquia, Animais fantásticos: os segredos de Dumbledore, que tem como foco o passado do diretor da escola, traz em seus cartazes de divulgação uma fênix em chamas. Seria essa fênix a própria Fawkes ou trata-se de outra fênix? Só mesmo assistindo ao filme para descobrir!</div><div style="text-align: justify;"><br /></div> <div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A ciência da combustão espontânea</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O processo de queima – ou combustão – nada mais é do que uma reação química decorrente do encontro de três elementos: um combustível (qualquer material oxidável, ou seja, capaz de reagir com o oxigênio e pegar fogo); um comburente (geralmente, o oxigênio); e uma fonte de ignição (por exemplo, uma faísca, que fornece a energia necessária para a reação ocorrer). Se algum desses três elementos não está presente, a queima não ocorre.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A combustão é uma reação fundamental para a manutenção da vida humana no planeta e teve seu marco histórico de origem datado por pesquisas arqueológicas em cerca de 7 mil anos antes de Cristo, quando os povos antigos começaram a produzir fogo, possibilitando diversos avanços tecnológicos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Você já acendeu uma fogueira ou viu alguém fazendo isso? Para esse processo, podemos usar um pedaço de madeira, que funcionará como combustível (ou seja, irá queimar). Para facilitar a queima, podemos jogar sobre a madeira um líquido inflamável (como o álcool). O oxigênio irá participar dessa reação química fazendo o papel de comburente. E você ainda precisa de uma fonte de energia, como a chama de um fósforo ou a faísca de um isqueiro. Se a madeira queimar por completo (ou seja, o combustível se esgotar), a combustão se interrompe. Se você cobrir essa fogueira, impedindo a entrada de mais oxigênio, a fogueira se apaga por falta de comburente.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A partir dessas informações, vamos pensar na combustão da fênix. O combustível dessa reação é a própria fênix (tanto que quando ela se torna somente cinzas, a chama acaba). O comburente dessa reação é o próprio oxigênio. Mas e a fonte de energia externa, a ignição? Como é possível um objeto pegar fogo sem receber nenhuma energia?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Apesar de parecer realmente mágica, a combustão espontânea é um fenômeno real. O fato de não haver uma fonte externa visível de energia não significa que ela não exista. A temperatura de um corpo está diretamente associada à energia que esse corpo tem. Isso significa que um corpo quente (em alta temperatura) é um corpo com mais energia do que um corpo mais frio. Portanto, embora não seja algo muito comum, alguns materiais podem pegar fogo espontaneamente apenas com o seu próprio calor.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Existe uma propriedade denominada ‘ponto de ignição’, que é a temperatura mínima para a ocorrência de uma combustão espontânea, sem a presença de uma fonte externa de ignição (como uma faísca).</div><div style="text-align: center;"><img height="357" src="https://cienciahoje.org.br/wp-content/uploads/2022/05/image.png" width="400" /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Para que a combustão aconteça, é indispensável a presença de três elementos: o combustível (material que pega fogo), o comburente (geralmente o oxigênio) e o calor que inicia a reação</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O ponto de ignição do álcool, por exemplo, é 363 ºC. Isso significa que, se por alguma razão, o álcool for aquecido até essa temperatura, ele pegará fogo, mesmo sem uma faísca para acendê-lo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Já o fósforo branco (usado para fabricação de fogos de artifício e bombas de fumaça) possui ponto de ignição de apenas 34 ºC, uma temperatura extremamente baixa. Por ser capaz de se inflamar espontaneamente, mesmo em temperatura ambiente, esse sólido costuma ser armazenado em querosene, pois essa substância não possui oxigênio em sua composição, impedindo que o fósforo entre em combustão.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Materiais como carvão, feno, algodão, filmes antigos, estrume de vaca e até grãos de pistache possuem pontos de ignição baixos o suficiente para sofrerem esse tipo de combustão. Um exemplo de combustão espontânea ocorre em alguns biomas, como o pantanal e o cerrado. Em períodos de seca, incêndios pontuais podem acontecer.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O que podemos concluir é que, se a fênix não for composta por feno ou outro material de baixo ponto de ignição, dificilmente ela seria capaz de entrar em combustão espontânea. Mas podemos levantar uma hipótese final.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Diferentemente dos répteis, anfíbios e peixes, as aves e os mamíferos são endotérmicos (também chamados de ‘animais de sangue quente’), ou seja, são capazes de controlar a própria temperatura corporal e manter o corpo aquecido mesmo em ambientes mais frios. Talvez a fênix seja capaz de aquecer o próprio corpo a uma temperatura tão grande que a leve à combustão. Por se tratar de um pássaro mitológico, infelizmente não podemos encontrar um desses no mundo real e estudá-lo. Portanto, só nos resta fazer especulações e nos maravilharmos com suas belas aparições nos cinemas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Frans Wagner</div><div style="text-align: justify;">Graduando em química e mediador do Centro de Ciências,</div><div style="text-align: justify;">Universidade Federal de Juiz de Fora</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ingrid Gerdi Oppe</div><div style="text-align: justify;">Mestranda em educação em química,</div><div style="text-align: justify;">Universidade Federal de Juiz de Fora</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Lucas Mascarenhas de Miranda</div><div style="text-align: justify;">Físico e divulgador de ciência no canal <a href="https://www.youtube.com/CienciaNerd">Ciência Nerd</a></div><div style="text-align: justify;">Universidade Federal de Juiz de Fora</div><div style="text-align: justify;"><b>Revista Ciência Hoje</b></div><div class="blogger-post-footer">História Viva</div>Eduardohttp://www.blogger.com/profile/04436257793497288219noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5377690050920894907.post-27328315748101069322022-06-18T02:04:00.000-03:002022-06-18T02:04:45.469-03:00Sharia: o que é a lei islâmica que o Talebã quer aplicar no Afeganistão?<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><iframe allowfullscreen='allowfullscreen' webkitallowfullscreen='webkitallowfullscreen' mozallowfullscreen='mozallowfullscreen' width='320' height='266' src='https://www.blogger.com/video.g?token=AD6v5dzJN3Jn6EvdHTCjw7-xCXEaZWFJa4PKeyo2kWXimvkpKn1vCs8C29hTh9iNq6T6U18q-C2UWEFPqqnhY46jkw' class='b-hbp-video b-uploaded' frameborder='0'></iframe></div><br /> <p></p><div class="blogger-post-footer">História Viva</div>Eduardohttp://www.blogger.com/profile/04436257793497288219noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5377690050920894907.post-45172062533949193872022-06-14T01:47:00.005-03:002022-06-14T01:47:55.384-03:00CONFERÊNCIA DE BERLIM E O MITO DA PARTILHA DA ÁFRICA<div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A Conferência de Berlim é um evento histórico muito mencionado em estudos sobre o imperialismo do século 19. Em sua grande maioria, esses trabalhos apresentam o encontro como o momento no qual as nações da Europa se reuniram para, em 1885, partilhar entre si o continente africano. Mas documentos da época indicam que a divisão da África não estava em pauta. Assim, é preciso identificar quais foram as deliberações dessa reunião e por que ela ficou conhecida como a partilha da África.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: center;"><img height="360" src="https://cienciahoje.org.br/wp-content/uploads/2022/01/Artigo-conferencia-de-Berlim-CH-384_abertura.jpg" width="400" /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A conquista do continente africano por países da Europa durante o imperialismo foi um processo que durou décadas e no qual regiões africanas foram progressivamente colocadas sob o controle direto ou indireto de alguma nação europeia. Mas pode-se dizer que a maior parte dessa divisão da África ocorreu entre a segunda metade do século 19 e o início da Primeira Guerra Mundial, em 1914 – com especial aceleração a partir da década de 1880.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Nesse período, foi realizada, entre 15 de novembro de 1884 e 26 de fevereiro do ano seguinte, a Conferência de Berlim. Esse evento diplomático, que envolveu nações da Europa, além de representantes dos EUA e do Império Otomano, está inserido em um contexto de intensificação das disputas imperialistas por regiões estratégicas do continente africano.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A ‘corrida para a África’ – especialmente, a partir das duas últimas décadas do século 19 – foi marcada por interesse crescente pelo rio Congo, e determinados acontecimentos impulsionaram as disputas por essa região.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">De modo geral, até a década de 1880, apenas as regiões da costa do continente africano haviam sido ocupadas pelos europeus (figura 1). Um dos fatores que explicam a ausência europeia no interior da África é o desconhecimento ocidental em relação às condições físicas e humanas das regiões além do litoral.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">De modo geral, até a década de 1880, apenas as regiões da costa do continente africano haviam sido ocupadas pelos europeus</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: center;"><img height="311" src="https://cienciahoje.org.br/wp-content/uploads/2022/01/53964.jpg" width="400" /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Figura 1. Mapa da África de 1886 – ano seguinte ao encerramento da Conferência de Berlim –, com a delimitação da bacia do Congo e das possessões europeias – a maioria delas no litoral africano</div><div style="text-align: justify;">CRÉDITO: WWW.RAREMAPS.COM/ GALLERY/DETAIL/53964/FREE-CONGO-STATE-NOUVELLE-CARTE-DE-LAFRIQUE CONTENANT-TO-DOSSERAY</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Mesmo Portugal, que, pelo menos, desde o século 15 manteve contato com populações africanas ao sul do deserto do Saara, esteve, por séculos, praticamente restrito às regiões costeiras, com localidades pontuais no interior em que tinha um pequeno aparato administrativo. Apesar de tênue e frágil, essa presença na África antes do século 19 foi usada como argumento pelos portugueses para reivindicar importantes regiões em disputa durante o imperialismo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Algumas das principais vias de acesso ao interior do continente africano eram seus rios, e, nesse sentido, as redes fluviais eram objeto de especial interesse por parte das nações europeias na corrida imperialista. Partindo desse princípio, eventos ocorridos a partir das últimas décadas do século 19 são considerados, por muitos historiadores, fundamentais para explicar a rivalidade da qual foi alvo a região central da África – mais especificamente, a região da bacia do rio Congo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Em primeiro lugar, em 1880, Pierre Savorgnan de Brazza (1852-1905), explorador de origem italiana vinculado à Marinha francesa, assinou, com o rei Makoko (1820-1892), chefe dos batekês, acordo no qual o soberano africano concordava em ceder seu território à França. A assinatura desse tipo de tratado entre europeus e africanos não era novidade, mas, à diferença daqueles firmados anteriormente, esse foi ratificado pelo governo da França, em 22 de novembro de 1882, o que pôs em alerta as demais nações da Europa em relação à importância dada a ele pelo estado francês.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Bem antes da assinatura desse tratado – desde, pelo menos, a Conferência Geográfica de Bruxelas, em 1876 –, o rei Leopoldo II (1835-1909), da Bélgica, já demonstrava interesse em obter uma colônia em território africano. Agindo em seu nome, o famoso explorador britânico Henry Morton Stanley (1841-1904) assinou centenas de tratados com chefes africanos. Uma consequência da assinatura desses acordos foi o fato de que “em 1883, Leopoldo havia claramente passado à frente da França na corrida pelo Congo”, nas palavras do historiador holandês Henk Wesseling (1937-2018), autor do livro Dividir para dominar: a partilha da África 1880-1914.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Em 1884, Portugal obteve dos britânicos o reconhecimento de sua soberania sobre todo o estuário do Congo, no que ficou conhecido como tratado anglo-português. Alvo de críticas e protestos, esse acordo não chegou a ser ratificado pelo parlamento britânico, mas sinalizou quais eram reivindicações lusas em relação ao que os portugueses consideravam seus direitos históricos à embocadura do Congo e chamou a atenção para os acordos bilaterais que estavam sendo feitos entre as nações europeias.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Diante desse panorama de crescentes iniciativas na região central da África, o chanceler alemão Otto von Bismarck (1815-1898) – que, inicialmente, hesitou em inserir a Alemanha no grupo de países que disputavam territórios coloniais – decidiu, em conjunto com o governo francês, organizar uma conferência em Berlim para tratar de assuntos relevantes naquele momento – em especial, para definir as formas de regulação das navegações fluviais.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div> <div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">As resoluções da conferência</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Alemanha e França, de forma conjunta, decidiram previamente quais seriam os três pontos que iriam nortear os debates em Berlim: a liberdade de comércio na bacia e no estuário do rio Congo; a liberdade de navegação nos rios Congo e Níger; e as formalidades que deveriam ser cumpridas para que novas ocupações na costa da África fossem consideradas efetivas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Pela ata geral da Conferência de Berlim, redigida ao final do encontro, ficou estabelecido que as embarcações com fins comerciais, sem distinção de nacionalidade, teriam livre acesso ao território compreendido pela bacia do Congo e seus afluentes. Essa determinação teve por objetivo impedir a criação de monopólios ao longo de um dos principais rios da África e garantir que as mercadorias que circulassem pela região estivessem isentas de taxas de entrada.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A ata também consagrou o princípio de liberdade de navegação no rio Congo e Níger. Dessa forma, a circulação de navios comerciais ou de transporte de passageiros permaneceria inteiramente livre. Mas, apesar de estabelecer para os dois rios as mesmas regras de liberdade, havia uma diferença fundamental entre eles. Para o Congo, seria instituída uma comissão internacional encarregada de assegurar o cumprimento das determinações da ata. Para o Níger, onde o Reino Unido já tinha domínio de regiões antes da conferência, não haveria um órgão internacional responsável por garantir a execução das decisões do encontro.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Os representantes europeus reunidos em Berlim também definiram as regras de legitimação para as futuras anexações nas costas do continente africano. A partir daquele momento, para que novas possessões ou protetorados fossem considerados efetivos, seria necessário o envio de notificação aos demais países signatários da ata, para viabilizar possíveis reivindicações.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Os representantes europeus reunidos em Berlim também definiram as regras de legitimação para as futuras anexações nas costas do continente africano</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ponto que vale ser destacado sobre as futuras anexações é a delimitação espacial feita pelos representantes europeus. O artigo da ata referente a elas trata apenas das regiões costeiras do continente africano. Isso indica que as deliberações sobre futuras ocupações não teriam validade para todo o continente, deixando de fora as regiões do interior. Esse fato não só refuta as interpretações que atribuem à Conferência de Berlim o papel de partilhar o continente africano, mas também põe em perspectiva as análises segundo as quais esse encontro teria criado as bases para sua futura divisão, pois os critérios de tomada de posse definidos em Berlim não valeriam para todo o continente.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O tráfico de escravos – outro tema debatido pelos delegados presentes em Berlim – aparece de forma superficial no documento final do encontro, no qual apenas um parágrafo é dedicado à questão. Segundo o artigo 9 da ata geral, as nações que exerciam ou passassem a exercer soberania ou influência nos territórios que compreendiam a bacia convencional do rio Congo deveriam proibir que essas regiões fossem usadas como mercado ou via de trânsito para o tráfico de escravos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O tráfico de escravos – outro tema debatido pelos delegados presentes em Berlim – aparece de forma superficial no documento final do encontro, no qual apenas um parágrafo é dedicado à questão</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Elemento que chama a atenção naquele artigo é a restrição do alcance de sua aplicação. A proibição do tráfico – pelo menos, a partir das determinações da ata da conferência – não seria extensiva a todo território africano, mas ficava limitada ao entorno do rio Congo. Nesse sentido, o pouco espaço reservado a esse tema está em desacordo com o lugar que a questão humanitária ocupava na retórica imperialista, sendo esta uma das principais justificativas para as incursões coloniais.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div> <div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A origem do mito</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Diante da discrepância entre a forma como a Conferência de Berlim é apresentada em materiais didáticos – e, até mesmo, em bibliografia especializada sobre o imperialismo – e o que de fato ficou estabelecido a partir do encontro, cabe questionar qual teria sido a origem do mito da partilha de Berlim. Nesse sentido, no livro A partilha da África Negra, o historiador francês Henri Brunschwig (1904-1989) apresenta hipóteses para o surgimento das interpretações equivocadas sobre a conferência.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A primeira constatação feita pelo autor se refere ao caráter tardio dessa atribuição de significado. Isso porque, até por volta da Primeira Guerra Mundial, os historiadores não colocavam a Conferência de Berlim em posição de destaque entre os acontecimentos mais significativos do imperialismo. Mesmo participantes do encontro diplomático, como o britânico Edward Malet (1837-1908), manifestaram descrença quanto à possibilidade de a ata alterar a situação preexistente em relação ao continente africano.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A partir do início do século passado, começaram a surgir, na França, trabalhos sobre o período imperialista segundo os quais a Conferência de Berlim teria consagrado a doutrina do hinterland. Com base nessa doutrina, a posse de um território no litoral dava direito às regiões do interior a determinada nação, a qual poderia recuar suas fronteiras de forma indefinida, até se deparar com uma possessão, zona de influência ou um estado vizinho.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A partir do início do século passado, começaram a surgir, na França, trabalhos sobre o período imperialista segundo os quais a Conferência de Berlim teria consagrado a doutrina do hinterland</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Se aplicada ao continente africano, a doutrina do hinterland garantiria, a nações europeias, direito de propriedade sobre regiões do interior do continente, com base na posse de regiões do litoral – este último já praticamente ocupado por europeus, quando a conferência foi realizada. Portanto, na prática, essa doutrina poderia significar a divisão da África. Contudo, não há qualquer referência a esse princípio na ata geral de Berlim, o que torna equivocado dizer que a ocupação do litoral definiu a partilha do interior do continente.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Outro elemento que contribuiu para a consolidação da imagem da conferência foram as representações imagéticas produzidas ao longo do evento. Em 1884, o jornal francês L’Illustration publicou ilustração em que os representantes europeus estavam dispostos ao longo de uma mesa com um mapa da África ao fundo (figura 2). Esse tipo de imagem favorece a leitura de que todo o continente africano estava em debate na conferência e não apenas a região do Congo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Outro elemento que contribuiu para a consolidação da imagem da conferência foram as representações imagéticas produzidas ao longo do evento</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: center;"><img height="280" src="https://cienciahoje.org.br/wp-content/uploads/2022/01/10005778-scaled.jpg" width="400" /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Figura 2. Ilustração da Conferência de Berlim publicada em 1884 pelo jornal francês L’Illustration, com o título A questão do Congo</div><div style="text-align: justify;">CRÉDITO:MARY EVANS / IMAGEPLUS</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Em janeiro do ano seguinte, o mesmo periódico veiculou caricatura de Bismarck repartindo a África, como se esta fosse um bolo<b> (figura 3), o que reforça a ideia de uma divisão sendo feita no encontro. Essa caricatura pode sugerir que, já em 1885, a conferência era lida como um tipo de partilha, ainda que, para confirmar essa hipótese, seja preciso estudo mais aprofundado das circunstâncias de sua elaboração.</b></div><div style="text-align: justify;"><b><br /></b></div><div style="text-align: center;"><b><img height="400" src="https://cienciahoje.org.br/wp-content/uploads/2022/01/Artigo-conferencia-de-Berlim-CH-384_figura3.jpg" width="377" /></b></div><div style="text-align: justify;"><b><br /></b></div><div style="text-align: justify;"><b><br /></b></div><div style="text-align: justify;"><b>Figura 3. Caricatura </b>do jornal L’Illustration, de janeiro de 1885, com o chanceler alemão Bismarck ‘repartindo o bolo africano’ e com os dizeres ‘a cada um sua parte, se formos bem sábios’</div><div style="text-align: justify;">CRÉDITO:MARY EVANS / IMAGEPLUS</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Mesmo que seja possível sugerir caminhos que levaram à construção do mito da Conferência de Berlim, é difícil definir qual tenha sido o elemento determinante para que o evento ficasse conhecido como a partilha da África entre os países europeus. De qualquer forma, essa interpretação continua sendo erroneamente reproduzida em materiais sobre o imperialismo do século 19.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Considerando a importância atribuída à conferência a posteriori, é possível que grande parte do interesse que ela tenha suscitado esteja justamente relacionada à alteração de sentido pelo qual o evento passou ao longo do tempo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><b><i>Aline Barbosa Pereira Mariano</i></b></div><div style="text-align: justify;"><b><i>Programa de Pós-graduação em História,</i></b></div><div style="text-align: justify;"><b><i>Universidade Federal Fluminense</i></b></div><div style="text-align: justify;"><b><i>Revista Ciência Hoje</i></b></div><div class="blogger-post-footer">História Viva</div>Eduardohttp://www.blogger.com/profile/04436257793497288219noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5377690050920894907.post-27125847146169822092022-06-13T07:59:00.002-03:002022-06-13T07:59:10.208-03:00O MITO DO FEMININO: DA SANTIDADE À ILUSÃO DEMONÍACA<div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O parlamento regional da Catalunha aprovou, em janeiro de 2022, uma resolução para “limpar o nome” de mais de 700 mulheres torturadas e executadas por bruxaria, entre os séculos 15 e 18, na região. Decisões similares foram tomadas em países como Escócia, Noruega e Suíça. Grupos por trás desse movimento afirmam que as dezenas de milhares de mulheres condenadas à morte por bruxaria em toda a Europa foram vítimas de perseguição misógina, num fenômeno que não pode ser dissociado da divisão binária dos gêneros, que determina papéis sociais de acordo com o sexo biológico dos indivíduos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">CRÉDITO: INTERVENÇÃO DE CLAUDIA FLEURY SOBRE ILUSTRAÇÃO DE LE LIVRE DE LA CITÉ DES DAMES</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: center;"><img height="266" src="https://cienciahoje.org.br/wp-content/uploads/2022/03/mulheres.jpg" width="400" /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Séculos separam a caça às bruxas, na Idade Moderna, das críticas contemporâneas à divisão binária dos gêneros, que afirma que sexo biológico é o que define os papéis sociais de cada indivíduo. O massacre daquelas milhares de mulheres, entre os séculos 15 e 18, no entanto, está profundamente relacionado às questões hoje defendidas por feministas e por outras minorias sexuais a respeito de gênero.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Para entender essa conexão, é preciso fazer um percurso a até 400, 500 anos atrás, mas começando pelos debates atuais.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Uma das maiores conquistas dos movimentos feministas e LGBTQIA+ é entender que os gêneros se constituem em processos sociais e culturais, e não podem ser reduzidos a homem e mulher heterossexuais e cisgênero. Essa percepção contemporânea das relações de gênero, reconhecida em diversas políticas públicas, se consolidou também no campo acadêmico a partir das décadas de 1970 e 1980, com a contribuição da escritora francesa Monique Wittig (1935-2003), da historiadora Joan Scott e da filósofa Judith Butler, estas últimas estadunidenses, entre outras estudiosas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div> <div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><b><i>Questão de gênero</i></b></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A tradicional divisão binária dos sexos legitimou historicamente a separação dos papéis sociais desempenhados por homens e mulheres. No século 19, no âmbito dos saberes médicos e jurídicos, consolidou-se uma visão a respeito das mulheres que as confinava ao lar, aos cuidados com os filhos e com a própria aparência. Essa representação, no entanto, se ajustava apenas ao ambiente feminino burguês ou de elite. As mulheres das classes menos privilegiadas continuavam a trabalhar fora como meio de subsistência, equilibrando essas atividades precariamente com a criação dos próprios filhos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: center;"><img height="171" src="https://cienciahoje.org.br/wp-content/uploads/2022/04/mulheres_01.png" width="400" /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A tradicional divisão binária dos sexos legitimou historicamente a separação dos papéis sociais desempenhados por homens e mulheres</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ainda que seja alvo de críticas, a representação da mulher que se consolidou no século 19 continua ecoando até dias recentes. Um exemplo é a reportagem publicada na revista Veja em 18 de abril de 2016, que teve forte repercussão. Com o título de <a href="https://veja.abril.com.br/brasil/marcela-temer-bela-recatada-e-do-lar/">“Marcela Temer: bela, recatada e do ‘lar’”</a>, uma jornalista traçou um perfil da ex-primeira dama muito próximo à perspectiva de 200 anos atrás. É significativo refletir como esse estereótipo sobre a mulher é apresentado como um complemento em relação à imagem do homem público por excelência, o presidente da República. Para finalizar a comparação entre imagens ainda atuais do masculino e do feminino, não deixa de ser expressivo que alguns dicionários registrem a definição de “mulher pública” como prostituta.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Essa reportagem pode ser classificada como um “mito” a respeito do feminino. Conforme uma visão feminista clássica, mas ainda válida em muitos aspectos, a filósofa francesa Simone de Beauvoir (1908-1986) caracterizou a produção de mitos sobre o feminino como uma constante, em diversos tipos de sociedade. De modo muito geral, a representação da mulher foi associada à reprodução, à fertilidade e, a partir daí, à maternidade e aos cuidados domésticos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: center;"><img height="171" src="https://cienciahoje.org.br/wp-content/uploads/2022/04/mulheres_02.png" width="400" /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A representação da mulher foi associada à reprodução, à fertilidade e, a partir daí, à maternidade e aos cuidados domésticos</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Na análise de Beauvoir, a imagem da mulher seria imanente, ligada à terra e à vida e ao efêmero. Em contraste, as imagens do masculino foram associadas à transcendência, ao que é eterno ou imutável. Daí a ligação da figura masculina às representações de Deus na cultura judaico-cristã ou aos feitos heroicos dos personagens bíblicos. Na linha dessa análise, o sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002) indicou que a representação do masculino se aproxima com frequência de um ideal de nobreza. Pode-se entender melhor o que quer dizer Bourdieu quando se compara, por exemplo, o prestígio que cerca a profissão do chef de cozinha ao trabalho invisível e pouco valorizado desempenhado pelas donas de casa na preparação de alimentos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div> <div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Virgem Maria e o ideal inalcançável</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Essas considerações iniciais são importantes para pensar a representação dos gêneros no início do Período Moderno, entre os séculos 15 e 18. No que diz respeito às imagens produzidas sobre a mulher, não se pode esquecer a influência dos modelos cristãos. A Virgem Maria representava o ideal feminino inalcançável, que reunia, na mesma pessoa, a pureza da carne e a maternidade. Como tal, projetou-se como modelo para a mulher casada.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No fim da Idade Média e princípios do Período Moderno, as representações da Sagrada Família (Maria, José e do Menino Jesus) tornaram-se muito comuns entre os cristãos. Paralelamente, a Virgem Maria tornou-se também um paradigma de comportamento para as mulheres dedicadas à vida religiosa nos conventos. Após o Concílio de Trento (1545-1563), a Reforma Católica difundiu esses padrões junto aos fiéis, por meio de uma farta literatura devocional e da iconografia. Nas regiões protestantes, porém, a rejeição ao culto da Virgem e dos santos e o fechamento dos conventos reduziu a importância desse modelo de devoção.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div> <div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O arrependimento de Madalena</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Outro paradigma religioso difundido para as mulheres no Período Moderno encontra-se na imagem de Maria Madalena. Segundo a tradição cristã, após ter vivido em pecado, Madalena converteu-se, tornando-se seguidora de Jesus Cristo. O gesto de conversão dela foi proposto como caminho ideal a ser seguido pelas mulheres que haviam cometido algum tipo de pecado carnal. Prostitutas e mulheres que haviam perdido a castidade, arrependidas de suas culpas, escolhiam passar o restante dos seus dias em penitência ou no estado de matrimônio, se encontrassem algum cônjuge disposto a aceitá-las.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Dependendo das circunstâncias individuais, o modo de vida penitente poderia ser praticado em conventos ou em recolhimentos. Estes últimos constituíam estabelecimentos de reclusão feminina que funcionavam de modo mais flexível que os conventos. Nos recolhimentos, as mulheres podiam permanecer provisoriamente enclausuradas, mas as virgens consagradas a Cristo, seguidoras da vida monástica, faziam votos perpétuos de reclusão.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Segundo a literatura religiosa católica difundida no Período Moderno, o cotidiano no convento e a vida de penitente deviam ser conduzidos com práticas de mortificação corporal. Os fiéis deveriam se privar dos prazeres do corpo, praticando jejuns, observando o máximo possível o silêncio, praticando a caridade com pobres e enfermos, exercendo atividades degradantes, entre outros gestos considerados devotos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Difundido desde os primeiros séculos do cristianismo, o ideal de renúncia sexual e de rejeição do corpo continuou a ser valorizado pela Igreja católica no Período Moderno. Sobre isso, é importante mencionar que a Igreja considerava o estado de freira como o mais perfeito para as mulheres, vindo em segundo lugar o matrimônio, em que a prática do sexo era apenas legitimada para a finalidade da concepção. Nas regiões protestantes, em contraste, o casamento se tornou praticamente a única via legítima para as mulheres. O ideal de rejeição do corpo não foi tão influente, e o próprio Martinho Lutero (1483-1546), expoente da Reforma Protestante, considerava que, no casamento, deveria haver espaço para os cônjuges buscarem algum prazer físico.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: center;"><img height="171" src="https://cienciahoje.org.br/wp-content/uploads/2022/04/mulheres_03.png" width="400" /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A Igreja considerava o estado de freira como o mais perfeito para as mulheres, vindo em segundo lugar o matrimônio, em que a prática do sexo era apenas legitimada para a finalidade da concepção</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Além do ideal de rejeição do corpo surgido no início do cristianismo, representações de outro tipo foram associadas às mulheres no Período Moderno. Proveniente de um universo cultural ainda mais antigo, o do judaísmo, havia a tradição de que a mulher era particularmente inclinada à prática do pecado. Esse “mito” da feminilidade pode ser explicado a partir do relato bíblico da criação. Segundo o livro do Gênesis, Eva foi amaldiçoada por ter desobedecido à vontade divina, perdendo o estado de pureza em que se encontrava no Jardim do Éden.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div> <div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A serviço de Deus ou do demônio?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Essa crença misógina se projetou com muita força sobre as representações da mulher em princípios do Período Moderno. No Malleus Maleficarum (O Martelo das feiticeiras), obra elaborada por Heinrich Kramer (c. 1430-1505) e James Sprenger (c. 1435-1495) em 1484, e destinada ao combate da bruxaria, a mulher é identificada com nitidez como símbolo do mal. De acordo com os inquisidores dominicanos, o delito da bruxaria se caracterizava pela realização de um pacto explícito com o demônio.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Durante o grande processo de caça às bruxas que teve seu apogeu entre os séculos 16 e 17 nas regiões do centro e do norte da Europa, as mulheres foram a maioria esmagadora das acusadas e das vítimas. Em Portugal, onde as punições ao delito da bruxaria não foram tão severas, a grande maioria dos réus era também constituída por mulheres.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">As acusações de falsa santidade, lançadas pelo Santo Ofício da Inquisição contra diversas mulheres, também são reveladoras da difusão de esquemas misóginos de pensamento entre representantes do clero. Nos séculos 16 e 17, algumas experiências religiosas que apareciam com frequência entre devotas do sexo feminino – como êxtases, visões, revelações, profecias e curas milagrosas – tornaram-se objeto de grande suspeita por parte da Igreja. Segundo os agentes do Santo Ofício, muitas mulheres que alegavam manifestar as supostas graças divinas estavam, na realidade, sendo iludidas pelo demônio.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: center;"><img height="171" src="https://cienciahoje.org.br/wp-content/uploads/2022/04/mulheres_04.png" width="400" /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Segundo os agentes do Santo Ofício, muitas mulheres que alegavam manifestar as supostas graças divinas estavam, na realidade, sendo iludidas pelo demônio</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Para justificar esse tipo de pensamento, os agentes recorriam às imagens bíblicas da maldição lançada sobre Eva, tentando mostrar que, desde o início dos tempos, a fraqueza e a inconstância caracterizavam o comportamento das mulheres. De modo significativo, as mulheres acusadas de falsa santidade eram, em sua maioria, devotas leigas que não estavam casadas nem viviam fechadas em conventos. Chamadas de beatas, estavam distantes dos estados considerados legítimos para as mulheres. Não tinham maridos nem muros que as pudessem controlar. Recebiam a supervisão de confessores ou diretores de consciência, sacerdotes que tinham por função avaliar se as experiências religiosas manifestadas pelas ditas mulheres eram de origem divina ou demoníaca.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div> <div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Proibidas de pregar</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Na esfera religiosa, os mitos bíblicos femininos tiveram outras repercussões no Período Moderno. Os escritos de São Paulo proibiam as mulheres de ensinar ou de fazer exposições públicas a respeito da doutrina. Em vez disso, o apóstolo recomendava que permanecessem em silêncio nos templos, e recebessem dos seus maridos instrução no recinto doméstico.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Nos séculos 16 e 17, algumas mulheres superaram essas proibições misóginas. Conforme mostraram as pesquisas da professora da Universidade de Virginia Alison Weber, mulheres como Santa Teresa de Ávila desenvolveram uma “retórica da feminilidade”. Ou seja, assumindo em seus escritos vários estereótipos de fraqueza e de incapacidade femininas – o que as tornava menos suspeitas aos olhos da Igreja – procuraram exercer um protagonismo no campo religioso, superando as expectativas tradicionais associadas ao seu sexo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div> <div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Medicina e gênero no Período Moderno</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Para concluir essa breve reflexão sobre as representações femininas no Período Moderno, é importante trazer para a discussão algumas ideias do saber médico da época. A respeito da anatomia feminina, predominavam ainda ideias provenientes da Antiguidade, elaboradas por autores romanos como Galeno (c. 129-c. 217) e Plínio, o Velho (23-79). Segundo tais concepções, os fluidos ou humores pertencentes ao corpo feminino se caracterizavam pela frieza e inatividade. Em contraste, o corpo masculino revelava sempre um maior calor e atividade. Essas ideias serviam para explicar certas características presentes nos aparelhos de reprodução de homens e de mulheres. Assim, o maior calor existente no corpo masculino projetaria, para o lado externo, o pênis e os testículos, enquanto que a localização interna dos órgãos femininos de reprodução era explicada pela ausência de calor.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">De acordo com a surpreendente pesquisa desenvolvida pelo historiador estadunidense Thomas Laqueur, alguns letrados do Período Moderno acreditavam que a ação do calor ou da atividade física no corpo feminino poderia levá-lo a adquirir características do corpo masculino, lançando, para o lado de fora, os órgãos sexuais internos! Portanto, para o autor, o sexo definido no momento de nascimento não era considerado, no Período Moderno, uma base inteiramente segura para a definição dos papéis de gênero.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O percurso realizado no Período Moderno traz de volta questões apresentadas pelas feministas e por outras minorias sexuais a respeito dos papéis de gênero. A relativização do elemento biológico, a reafirmação do caráter social e cultural da constituição dos gêneros, e o reconhecimento da pluralidade destes constituem elementos que pautam, na contemporaneidade, a ação política dos agentes sociais e os debates acadêmicos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">William de Souza Martins</div><div style="text-align: justify;">Instituto de História</div><div style="text-align: justify;">Universidade Federal do Rio de Janeiro</div><div style="text-align: justify;"><b><span style="color: #800180;">Revista Ciência Hoje</span></b></div><div class="blogger-post-footer">História Viva</div>Eduardohttp://www.blogger.com/profile/04436257793497288219noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5377690050920894907.post-433553728873699192022-05-30T00:33:00.005-03:002022-05-30T00:33:23.574-03:00A Educação Infantil na Idade Média<div style="text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg_QsClnYrmIJA6Yr1JpxPc90L1iOirZw27TIxFPSmjTvxagSeWSUXXm-Uzka05X4XkUQ5FbznHS1Bo1B8iGXsrODOrJU_9R2wDQsMErMh9-_U6A9X1JjLbZqCQBBWLSVag1dI5I10pb05JHfi7MKO3IUSgZHNVcu84KYhxmxdZhT00varpX4OIgEbqaw/s600/sabedo1.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="510" data-original-width="600" height="272" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg_QsClnYrmIJA6Yr1JpxPc90L1iOirZw27TIxFPSmjTvxagSeWSUXXm-Uzka05X4XkUQ5FbznHS1Bo1B8iGXsrODOrJU_9R2wDQsMErMh9-_U6A9X1JjLbZqCQBBWLSVag1dI5I10pb05JHfi7MKO3IUSgZHNVcu84KYhxmxdZhT00varpX4OIgEbqaw/s320/sabedo1.jpg" width="320" /></a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A Educação Infantil na Idade Média<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn1"> [1]</a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ricardo da Costa</div><div style="text-align: justify;">Prof. Adjunto de Hist. Medieval da UFES</div><div style="text-align: justify;">Universidade Federal do Espírito Santo.</div><div style="text-align: justify;">Home-page: www.ricardocosta.com</div><div style="text-align: justify;"><a href="mailto:riccosta@npd.ufes.br">riccosta@npd.ufes.br</a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div> <div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No Brasil, a Idade Média ainda é citada por muitos néscios como um tempo de ignorância e barbárie, um tempo vazio, um tempo em que a Igreja escondeu os conhecimentos que naufragaram com o fim do Império Romano para dominar o “povo”. Nesse movimento consciente e ideológico em direção às trevas, o clero teve como aliado principal a nobreza feudal. Juntos, nobreza e clero governaram com coturnos sinistros e malévolos todo o ocidente medieval, que permaneceu assim envolto em uma escuridão de mil anos, soterrado, amedrontado e preso a terra num trabalho servil humilhante<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn2"> [2] </a>.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Quem ainda acredita piamente nesse amontoado de tolices ficará agradavelmente surpreso, espero, com o tema desse trabalho, que não poderia ser mais propício. Minhas perguntas básicas serão: existiu educação na Idade Média? E ciência? E as crianças? É incrível, mas há quase quarenta anos atrás o próprio Jacques Le Goff perguntou: “teria havido crianças no Ocidente Medieval?”<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn3"> [3] </a>Seguindo a trilha deixada por Philippe Ariès<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn4"> [4] </a>, ele buscou a criança na arte e não a encontrou. É verdade. Apressadamente concluiu então que a criança foi um produto da cidade e da burguesia<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn5"> [5] </a>e, portanto, o mundo rural não a conheceu. Pior: a conheceu sim, mas a desprezou, marginalizando-a<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn6"> [6] </a>.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Deixo claro então que minha perspectiva será bastante diferente. Responderei sim a todas àquelas perguntas, opondo-me a Jacques Le Goff e a Philippe Ariès<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn7"> [7] </a>. Para provar isso, dividi minha narrativa em duas partes: primeiro, busquei a condição infantil registrada pela História na Alta Idade Média (séculos V-X) para, a seguir, tratar da estruturação das ciências que Ramon Llull (1232-1316) apresentou a seu filho Domingos quando, em um ato de puro amor paterno, escreveu um livro para ele, a Doutrina para crianças<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn8"> [8] </a>.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">*</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Falei há pouco de amor paterno. O amor é uma forma muito profunda e especial de afeto, difícil de ser descrito, difícil de ser registrado a não ser nas emoções daqueles que o compartilham. Por isso, a História registra sempre o que se veste, onde se vive, o que se come, mas dificilmente narra como se ama, especialmente a intensidade e a forma do amor<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn9"> [9] </a>. Os tipos de textos consultados pelos historiadores - as Crônicas, por exemplo - estão mais atentos aos acontecimentos importantes, aos personagens e à política. Assim, ofereceram pouco espaço para o mundo infantil, deixando muitas perguntas que não puderam ser respondidas satisfatoriamente. Por exemplo: como pais e filhos exprimiam seus carinhos, suas incompreensões? De que forma as crianças apreenderam o mundo existente? Como reagiram à escola e aos estudos?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">De qualquer maneira, o fato é que, historicamente, o papel da criança sempre foi definido pelas expectativas dos adultos<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn10"> [10] </a>, e esse anseio mudou bastante ao longo da história, embora a família elementar e o amor tenham existido em todas as épocas<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn11"> [11] </a>. Vejamos então o caso medieval.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A primeira herança da Antigüidade não é nada boa: a vida da criança no mundo romano dependia totalmente do desejo do pai. O poder do pater familias era absoluto: um cidadão não tinha um filho, o tomava. Caso recusasse a criança - e o fato era bastante comum - ela era enjeitada. Essa prática era tão recorrente que o direito romano se preocupou com o destino delas<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn12"> [12] </a>. E o que acontecia à maioria dos enjeitados? A morte<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn13"> [13] </a>.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A segunda herança que a Idade Média herda da Antigüidade, a cultura bárbara, foi-nos passada especialmente por Tácito. Ele nos conta que a tradição germânica em relação às crianças era um pouco melhor que a romana. Os germanos não praticavam o infanticídio, as próprias mães amamentavam seus filhos e as crianças eram educadas sem distinção de posição social<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn14"> [14] </a>. O povo germânico era composto por um conjunto de lares, com dois poderes distintos: o matriarcal, exercido no seio da família, e o patriarcal, predominante na política e na organização social<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn15"> [15] </a>. No entanto, o destino das crianças naqueles clãs, como na cultura romana, também dependia da vontade paterna (direito de adoção, de renegação, de compra e venda). A criança aceita ficava aos cuidados dos parentes paternos (agnatos) e o destino dos bastardos, órfãos e abandonados era entregue aos parentes maternos, especialmente a tios e avós maternos<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn16"> [16] </a>.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Dessas duas tradições culturais que se mesclaram e fizeram emergir a Idade Média, concluo que o status da criança naquelas sociedades antigas era praticamente nulo. Sua existência dependia do poder do pai: se fosse menina ou nascesse com algum problema físico, poderia ser rejeitada. Seu destino, caso sobrevivesse, era abastecer os prostíbulos de Roma e o sistema escravista<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn17"> [17] </a>. Até o final da Antigüidade as crianças pobres eram abandonadas ou vendidas; as ricas enjeitadas - por causa de disputas de herança - eram entregues à própria sorte<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn18"> [18] </a>.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Nesse contexto histórico-cultural é que se compreende a força e o impacto do cristianismo, que rompeu com essas duas tradições<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn19"> [19] </a>. O Cristo disse:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos tornardes como as crianças, de modo algum entrareis no Reino dos Céus. Aquele, portanto, que se tornar pequenino como esta criança, esse é o maior no Reino dos Céus. (Mt 18, 1-4).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A tradição cristã abriu, portanto, uma nova perspectiva à criança, uma mudança revolucionária<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn20"> [20] </a>. No entanto, foi um processo bastante lento, um processo civilizacional levado a cabo pela Igreja. Primeiro, por força das circunstâncias. Por exemplo, dos séculos V ao VIII, na Normandia, o índice de mortalidade infantil era muito elevado, 45%, e a expectativa de vida bem pequena, 30 anos<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn21"> [21] </a>. À primeira vista, esses dados arqueológicos poderiam sugerir ao historiador um sentimento de descaso para com a criança: a regularidade da morte poderia criar nos espíritos de então uma apatia, um medo de se apegar a algo tão frágil que poderia morrer à primeira doença<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn22"> [22] </a>.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Paradoxalmente, ao invés disso, a documentação nos mostra que havia um grande apego dos pais aos filhos, apesar da mortalidade infantil. Em sua História dos Francos, Gregório de Tours nos conta o sentimento de tristeza e a lamentação de Fredegunda (concubina e depois esposa do rei dos francos Chilperico), quando da morte de crianças:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Essa epidemia que começou no mês de agosto atacou em primeiro lugar a todos os jovens adolescentes e provocou sua morte. Nós perdemos algumas criancinhas encantadoras e que nos eram queridas, a quem nós havíamos aquecido em nosso peito, carregado em nossos braços ou nutrido por nossa própria mão, lhes administrando os alimentos com um cuidado delicado [...] O rei Chilperico também esteve gravemente doente. Quando entrou em convalescença, seu filho mais novo, que não era ainda renascido pela água e pelo Espírito Santo, caiu enfermo. Assim que melhorou um pouco, seu irmão mais velho, Clodoberto, foi atingido pela mesma doença, e sua mãe Fredegunda, vendo-o em perigo de morte e se arrependendo tardiamente, disse ao rei: “A misericórdia divina nos suporta há muito tempo, nós que fazemos o mal, porque sempre ela nos tem advertido através das febres e outras doenças, mas sem que nos corrijamos. Nós perdemos agora os nossos filhos, eis que as lágrimas dos pobres, as lamentações das viúvas e os suspiros dos órfãos os matam e não nos resta esperança de deixar os bens para ninguém. Nós entesouramos sem ter para quem deixar. Os tesouros ficarão privados de possuidor e carregados de rapina e maldições! Nossas adegas não abundam em vinho? Nossos celeiros não estão repletos de trigo? Nossos tesouros não estão abarrotados de ouro e de prata, de pedras preciosas, de colares e outras jóias imperiais? Nós perdemos o que tínhamos de mais belo! Agora, por favor, venha! Queimemos todos os livros de imposições iníquas e que nosso fisco se contente com o que era suficiente ao pai e rei Clotário.” (Gregório de Tours, Historiae, V, 34) (os grifos são meus)<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn23"> [23]</a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Pois bem. Fredegunda, uma das mulheres mais cruéis da História, apesar de filha de seu tempo bárbaro, chora a morte de seus filhos e afirma que perdeu o que tinha de mais belo<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn24"> [24] </a>. Mesmo nessa aristocracia merovíngia rude e cruel – no pior sentido da palavra<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn25"> [25] </a>– há espaço para amor materno.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Por sua vez, fora do mundo secular, um espaço social lentamente impôs uma nova perspectiva à educação infantil: o monacato<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn26"> [26] </a>. Os monges criaram verdadeiros “jardins de infância” nos mosteiros<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn27"> [27] </a>, recebendo indistintamente todas as crianças entregues<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn28"> [28] </a>, vestindo-as, alimentando-as e educando-as, num sistema integral de formação educacional<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn29"> [29] </a>.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">As comunidades monásticas célticas foram as que mais avançaram nesse novo modelo de educação, pois se opunham radicalmente às práticas pedagógicas vigentes das populações bárbaras, que defendiam o endurecimento do coração já na infância<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn30"> [30] </a>. Pelo contrário, ao invés de brutalizar o coração das crianças para a guerra e a violência, os monges o abriam para o amor e a serenidade<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn31"> [31] </a>.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">As crianças eram educadas por todos do mosteiro até a idade de quinze anos. A Regra de São Bento prescreve diligência na disciplina: que as crianças não apanhem sem motivo, pois “não faças a outrem o que não queres que te façam.”<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn32"> [32] </a>Toco aqui em um ponto importante e de grande discussão na História da Educação. O sistema medieval e monástico previa a aplicação de castigos. Na Bíblia há passagens sobre os castigos com vara que devem ser aplicados aos filhos<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn33"> [33] </a>; na Regra de São Bento há várias passagens (punição com jejuns e varas<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn34"> [34] </a>, pancadas em crianças que não recitarem corretamente um salmo<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn35"> [35] </a>), e esse ponto foi muito destacado e criticado pela pedagogia moderna, que, no entanto, não levou em consideração as circunstâncias históricas da época<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn36"> [36] </a>. Por exemplo, Manacorda interpreta os castigos do período antigo e medieval como puro sadismo pedagógico<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn37"> [37] </a>, linha de interpretação que permaneceu ao lado da imagem do monge medieval como uma pessoa frustrada e desiludida amorosamente e que, por esse motivo, buscava a solidão do mosteiro<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn38"> [38] </a>.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Naturalmente isso se deve a um anacronismo e preconceito que não condizem com a postura de um historiador sério. Basta buscar os textos de época que vemos a felicidade dos egressos dos mosteiros pelo fato de terem sido amparados, criados e educados. Darei apenas dois breves exemplos. Ao se recordar do mosteiro onde passou sua infância, São Cesário de Arles (c. 470-542) diz:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Essa ilha santa acolheu minha pequenez nos braços de seu afeto. Como uma mãe ilustre e sem igual e como uma ama-de-leite que dispensa a todos os bens, ela se esforçou para me educar e me alimentar.<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn39"> [39]</a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Por sua vez, Walafried Strabo (806-849), então jovem monge, nos conta em seu Diário de um Estudante:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Eu era totalmente ignorante e fiquei muito maravilhado quando vi os grandes edifícios do convento (...) fiquei muito contente pelo grande número de companheiros de vida e de jogo, que me acolheram amigavelmente. Depois de alguns dias, senti-me mais à vontade (...) quando o escolástico Grimaldo me confiou a um mestre, com o qual devia aprender a ler. Eu não estava sozinho com ele, mas havia muitos outros meninos da minha idade, de origem ilustre ou modesta, que, porém, estavam mais adiantados que eu. A bondosa ajuda do mestre e o orgulho, juntos, levaram-me a enfrentar com zelo as minhas tarefas, tanto que após algumas semanas conseguia ler bastante corretamente (...) Depois recebi um livrinho em alemão, que me custou muito sacrifício para ler mas, em troca, deu-me uma grande alegria...<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn40"> [40]</a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Esses são apenas dois de muitos exemplos que contam a felicidade e a alegria que os medievais sentiram com o fato de terem tido a sorte de serem acolhidos em um mosteiro. Assim, devemos sempre confrontar em retrospecto as regras com a vida cotidiana, o sistema institucional com o que as pessoas pensavam dele, para então construirmos um juízo de valor mais adequado e menos sujeito a anacronismos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Para completar o entendimento do sentido civilizacional dos mosteiros medievais, basta confrontarmos sua vida cotidiana - de educação e disciplina voltada para uma formação ética e moral das crianças - com o mundo exterior. Por exemplo, no período carolíngio (séculos VIII a X), apesar do avanço da implantação da família conjugal simples (modelo cristão) com uma média de 2 filhos por casal e um período de aleitamento de dois anos, a prática do infanticídio continuava comum, a idade média dos casamentos era muito baixa (entre 14 e 15 anos de idade), a poligamia e a violência sexual eram recorrentes, pelo menos na aristocracia<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn41"> [41] </a>e ainda havia a questão da escravidão de crianças<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn42"> [42] </a>. Confronte você, caro leitor, essa realidade com a vida de uma criança em um mosteiro.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Por sua vez, os bispos carolíngios do século IX tentaram regulamentar o casamento cristão, redigindo uma série de tratados (espelhos)<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn43"> [43] </a>. Neles, o casamento era valorizado, a mulher reconhecida como pessoa com pleno direito familiar e em pé de igualdade com o marido e a violência sexual denunciada como crime grave e do âmbito da justiça pública<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn44"> [44] </a>. Para o nosso tema, o que interessa é que as crianças também foram objeto de reflexão nesses espelhos: a maternidade foi considerada um valor (charitas) e o casal tinha a obrigação de aceitar e reconhecer os filhos<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn45"> [45] </a>.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Assim, a ação da ordem clerical foi dupla: de um lado, os bispos lutaram contra a prática do infanticídio, de outro, os monges revalorizaram a criança, que passou por um processo de educação direcionada, de cunho integral e totalmente igualitária – por exemplo, as escolas monacais carolíngias davam preferência a crianças filhas de escravos e servos ao invés de filhos de homens livres, a ponto de Carlos Magno ser obrigado a pedir que os monges recebessem também para educar crianças filhas de homens livres<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn46"> [46] </a>. Estes séculos da Alta Idade Média foram cruciais para a implantação do modelo de casamento cristão conhecido por todo o mundo ocidental, para a valorização da mulher como parceira e igual do marido e para a idéia de criança como ser próprio e com necessidades pedagógicas específicas<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn47"> [47] </a>. Por fim, a sociedade era pensada como o conjunto de pessoas casadas (ordo conjugatorum), e a criança tinha um papel fundamental nessa estrutura, pois era o fim último da união.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">*</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Mulher, criança, minorias revalorizadas na Idade Média em relação à Antigüidade. Para completar esse quadro compreensivo, quero responder à terceira pergunta feita no início: qual era o conceito de educação que alicerçava esse novo sistema pedagógico medieval? Essa é uma resposta relativamente mais simples. Para os homens da época, as palavras eram transparentes: havia um prazer muito grande em saborear o sentido etimológico delas. Os intelectuais de então diziam que o homem é um ser que esquece suas experiências. Ele consegue resgatá-las através da linguagem<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn48"> [48] </a>. Assim, a expressão educação era entendida como estando associada à sua raiz etimológica latina: educe, “fazer sair”. Como o conhecimento já existia inato no indivíduo, restava responder à seguinte pergunta: de que modo o estudante era conduzido da ignorância ao saber?<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn49"> [49] </a>Como o aluno aprendia? Essa era a questão básica dos educadores medievais. Preocupados com a forma da aquisição, os pedagogos de então tiveram uma importante consciência: cabia ao professor “acender uma centelha” no estudante e usar seu ofício para formar e não asfixiar o espírito de seus alunos<a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn50"> [50] </a>. Muito moderna a educação medieval! <a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftn51">[51]</a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">*</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref1">[1] </a>Este artigo é dedicado ao meu amigo e colega de trabalho, Prof. Josemar Machado Oliveira (UFES), que certa vez presenteou-me com um belo livro (GIMPEL, Jean. A Revolução Industrial da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977) e aproveitou o ensejo para dizer-me que não existiu ciência na Idade Média!</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref2">[2] </a>Um excelente livro que apresenta estes mitos e os destrói completamente é HEERS, Jacques. A Idade Média, uma impostura. Porto: Edições Asa, 1994.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref3">[3] </a>LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1984, vol. II, p. 44.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref4">[4] </a>ARIÈS, Philippe. L’enfant et la vie familiale sous l’Ancien Régime, Paris, 1960.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref5">[5] </a>LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval, op. cit., p. 45.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref6">[6] </a>LE GOFF, Jacques. “Os marginalizados no ocidente medieval”. In: O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval. Lisboa: Edições 70, p. 169.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref7">[7] </a>Le Goff recupera o tema da criança como não-valor em sua biografia São Luís (Rio de Janeiro: Editora Record, 1999, p. 84), citando uma farta bibliografia como apoio à sua tese mas somente uma fonte: João de Salisbury (“Não há a necessidade de recomendar muito a criança aos pais, porque ninguém detesta sua carne” - Policraticus, ed. C. Webb, p. 289-290), justamente uma passagem de um texto medieval onde se afirma o amor dos pais em relação aos filhos como algo comum!</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref8">[8] </a>Utilizarei minha tradução feita a partir da edição de Gret Schib. RAMON LLULL. Doctrina pueril. Barcelona: Editorial Barcino, 1957.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref9">[9] </a>MARQUES, A H. de Oliveira. A Sociedade Medieval Portuguesa - aspectos de vida quotidiana. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1987, p. 105.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref10">[10] </a>BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo: Editora Unesp, 2002, 71-72.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref11">[11] </a>Interessante afirmação do antropólogo Jack Goody. Citado em GUICHARD, Pierre. “A Europa Bárbara”. In: BURGUIÈRE, André, KLAPISCH-ZUBER, Christiane, SEGALEN, Martine e ZONABEND, Françoise (dir.). História da Família. Tempos Medievais: Ocidente, Oriente. Lisboa: Terramar, 1997, p. 18.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref12">[12] </a>ROUSSELL, Aline. “A política dos corpos: entre procriação e continência em Roma”. In: DUBY, Georges e PERROT, Michelle (dir.): História das Mulheres no Ocidente. A Antigüidade. Porto: Edições Afrontamento / São Paulo: Ebradil, s/d, p. 363.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref13">[13] </a>VEYNE, Paul. “O Império Romano”. In: ARIÈS, Philippe e DUBY, Georges (dir.). História da vida privada I. Do Império Romano ao ano mil. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 23-24.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref14">[14] </a>“Limitar o número de filhos ou matar algum dos recém-nascidos é crime; assim seus bons costumes podem mais que as boas leis em outras nações. De qualquer modo, eles crescem desnudos e sem asseio até chegarem a ter esses membros e corpos que admiramos. Os filhos são nutridos com o leite de suas mães, nunca de criadas ou amas-de-leite. Não há distinção entre o senhor e o escravo em nenhuma delicadeza de criança. Passam a vida entre os mesmos rebanhos e na mesma terra até que a idade e o valor distingam os nobres.”― TÁCITO. “Germania”. In: Obras Completas. Madrid: M. Aguilar, Editor, 1946, p. 1026.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref15">[15] </a>GUICHARD, Pierre. “A Europa Bárbara”, op. cit., p. 24.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref16">[16] </a>GUICHARD, Pierre. “A Europa Bárbara”, op. cit., p. 28.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref17">[17] </a>DE CASSAGNE, Irene (PUC - Buenos Aires - Argentina). Valorización y educación del Niño en la Edad Media, p. 20 (artigo consultado em www.uca.edu.ar)</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref18">[18] </a>ROUSSELL, Aline. “A política dos corpos: entre procriação e continência em Roma”, op. cit., p. 364.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref19">[19] </a>Um dos melhores ensaios a respeito é de JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. Rio de Janeiro: Imago, 2001, especialmente as páginas 11-148.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref20">[20] </a>DE CASSAGNE, Irene. Valorización y educación del Niño en la Edad Media, op. cit., p. 20.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref21">[21] </a>ROUCHE, Michel. “Alta Idade Média ocidental”. In: ARIÈS, Philippe e DUBY, Georges (dir.). História da vida privada I. Do Império Romano ao ano mil. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 442-443.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref22">[22] </a>Essa idéia - da indiferença como conseqüência do mau hábito - está muito bem expressa no conceito de banalização do mal criado por Hannah Arendt em sua obra Origens do Totalitarismo (São Paulo: Companhia das Letras, 1990).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref23">[23] </a>Tradução de Edmar Checon de Freitas (doutorando em História Medieval pela UFF) a partir da versão francesa de R. Latouche (GRÉGOIRE DE TOURS. Histoire des Francs. Paris: Les Belles-Lettres, 1999, p. 295-296).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref24">[24] </a>“Fredegunda foi concubina de Chilperico (neto de Clóvis). Ele casou-se com Galasvinta, filha do rei visigodo Atanagildo, e sua irmã, Brunilda, desposou Sigisberto, meio-irmão de Chilperico (Hist., IV, 27-28). Galasvinta acabou assassinada por ordem de Chilperico, ficando Fredegunda como sua primeira esposa (Hist., IV, 28); Gregório insinua uma influência de Fredegunda na morte da rival. Chilperico e Fredegunda figuram nas Historiae como um casal malévolo e sanguinário. A passagem sobre a morte de seus filhos tem de ser lida nesse contexto. Contudo, é importante destacar a forma escolhida pelo autor para sublinhar o castigo divino: a perda dos filhos e herdeiros. O tema da morte das crianças era caro a Gregório. Por sua vez, no capítulo V (22), é narrada a morte de Sansão, outro filho pequeno de Chilperico e Fredegunda. Nascido durante um cerco sofrido por Chilperico - em guerra com o irmão Sigisberto - ele foi rejeitado pela mãe (que temia sua morte). O pai salvou-o e Fredegunda acabou batizando a criança, que morreu antes dos 5 anos. Mais tarde nasceu um outro filho do casal, Teuderico, ocasião na qual o rei libertou prisioneiros e aliviou impostos (Hist., VI, 23, 27). Novamente a desinteria vitimou a criança, com cerca de 1 ano de vida (Hist., VI, 34). O único herdeiro de Chilperico, Clotário, nasceu já no fim de sua vida (Hist., VI, 41; ele foi assassinado em 584). Tornou-se ele rei sob o nome de Clotário II, tendo unificado o regnum Francorum. Chilperico teve outros filhos, de sua primeira mulher, Audovera. Teodeberto morreu no campo de batalha (Hist., IV, 50); Clóvis e Meroveu (Hist., V, 18) foram mortos a mando do pai, o primeiro sob a instigação de Fredegunda. Na ocasião, ela suspeitara de malefícios contra seus filhos, recentemente mortos, nos quais Clóvis estaria envolvido; ela também ordenou a tortura de algumas mulheres suspeitas (Hist., V, 39).” ― FREITAS, Edmar Checon de.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref25">[25] </a>LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1984, vol. I, p. 58-60.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref26">[26] </a>JOHNSON, Paul. História do Cristianismo, op. cit., especialmente as páginas 167-188.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref27">[27] </a>DE CASSAGNE, Irene. Valorización y educación del Niño en la Edad Media, op. cit., p. 21.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref28">[28] </a>“Sabe-se que as escolas dos mosteiros acolhiam tanto os nobres rebentos da aristocracia quanto os pobres filhos dos servos.” ― NUNES, Rui Afonso da Costa. História da Educação na Idade Média. São Paulo: EDUSP, 1979, p. 113.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref29">[29] </a>Mesmo Manacorda, um crítico do período, afirma que “...devemos reconhecer que, na pedagogia cristã, ela (a maxima reverentia) é um elemento novo de consideração da idade infantil” ― MANACORDA, Mario Alighiero. História da Educação - da Antigüidade aos nossos dias. São Paulo: Cortez, 1989, p. 118.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref30">[30] </a>Por exemplo, em sua Guerra Gótica, o historiador bizantino Procópio de Cesaréia († 562) nos conta que “...nem Teodorico permitira aos godos enviar os filhos à escola de letras humanas, antes dizia a todos que, uma vez dominados pelo medo do chicote, nunca teriam ousado enfrentar com coragem o perigo da espada e da lança (...) Portanto, querida soberana - diziam a ela - manda para aquele lugar esses pedagogos e põe tu mesma ao lado de Atalarico alguns coetâneos: estes, crescendo junto com ele, o impelirão para a coragem e a valentia segundo o uso dos bárbaros (I, 2)” ― Citado em MANACORDA, Mario Alighiero. História da Educação - da Antigüidade aos nossos dias, op. cit., p. 135-136.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref31">[31] </a>ROUCHE, Michel. “Alta Idade Média ocidental”, op. cit., p. 446.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref32">[32] </a>Regra de São Bento (depois de 529 d.C.), cap. 70. Documento consultado na INTERNET: http://www.ricardocosta.com/bento.htm</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref33">[33] </a>“O que retém a vara aborrece a seu filho, mas o que ama, cedo o disciplina.” (Prov. 13:24); “Não retires da criança a disciplina, pois, se a fustigares com a vara não morrerás. Tu a fustigarás com a vara e livrarás a sua alma do inferno.” (Prov. 23.13-14)</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref34">[34] </a>“Os meninos e adolescentes ou os que não podem compreender que espécie de pena é, na verdade, a excomunhão, quando cometem alguma falta, sejam afligidos com muitos jejuns ou castigados com ásperas varas, para que se curem.” ― Regra de São Bento, cap. 30 (http://www.ricardocosta.com/bento.htm)</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref35">[35] </a>“As crianças por tal falta recebam pancadas” ― Regra de São Bento, cap. 45.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref36">[36] </a>Mesmo nesse aspecto, o das surras, há de se relativizar: um dos maiores sucessos editoriais no Brasil, o livro Meu Bebê, Meu Tesouro, de DELAMARE, defendia que as crianças deveriam levar uma surra todos os dias!</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref37">[37] </a>MANACORDA, Mario Alighiero. História da Educação - da Antigüidade aos nossos dias, op. cit., p. 119. Naturalmente Manacorda se refere ao sadismo por parte de quem aplicava o castigo, isto é, os monges. Falo isso porque, certa vez, ao ler parte desse texto em sala de aula na UFES, uma aluna ficou em dúvida se o sadismo era por parte de quem batia ou de quem apanhava!</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref38">[38] </a>“Pode haver, com efeito, alguns casos particulares desses tipos. Mas os monges são pessoas que fizeram e fazem livremente a sua opção pela vida silenciosa e penitente, por amor a Deus que transborda na caridade para com o próximo.” ― NUNES, Rui Afonso da Costa. História da Educação na Idade Média, op. cit., p. 91-92.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref39">[39] </a>San Cesáreo de Arles, Sermo ad monacho, CCXXXVI, 1-2, Morin, t. II, p. 894. Citado em DE CASSAGNE, Irene. Valorización y educación del Niño en la Edad Media, op. cit., p. 22.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref40">[40] </a>Citado em MANACORDA, Mario Alighiero. História da Educação - da Antigüidade aos nossos dias, op. cit., p. 135. Esse belo texto medieval também é analisado em NUNES, Rui Afonso da Costa. História da Educação na Idade Média, op. cit., p. 157-159 (SÖHNGEN, C. J. De medii aevi puerorum institutione in occidente. Diss. Amsterdam 1900).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref41">[41] </a>TOUBERT, Pierre. “O período carolíngio (séculos VII a X)”. In: BURGUIÈRE, André, KLAPISCH-ZUBER, Christiane, SEGALEN, Martine e ZONABEND, Françoise (dir.). História da Família. Tempos Medievais: Ocidente, Oriente. Lisboa: Terramar, 1997, p. 69-84.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref42">[42] </a>“O comércio de escravos fora rigorosamente interdito em 779 e 781 (...) mas continuou, não obstante (...) Agobardo mostra-nos que este comércio vinha de longe (...) conta-nos que no começo do século IX chegara a Lião um homem, fugido de Córdova, onde tinha sido vendido como escravo por um judeu de Lião. E afirma a este propósito que lhe falaram de crianças roubadas ou compradas por judeus para serem vendidas.” ― PIRENNE, Henri. Maomé e Carlos Magno. Lisboa: Publicações Dom Quixote, s/d., p. 228.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref43">[43] </a>Christopher Brooke analisa a história do casamento (O casamento na Idade Média. Lisboa: Publicações Europa-América, s/d) sem, contudo, tratar da ética conjugal dos espelhos carolíngios, preferindo fazer seu recorte nos séculos feudais (XI-XII).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref44">[44] </a>“O modelo conjugal que a elite religiosa procura então impor como regulador da violência social implica, além disso, um reconhecimento da mulher enquanto pessoa, enquanto consors de pleno direito na sociedade familiar (...) A perfeita igualdade entre os cônjuges é um dos temas mais constantes da literatura matrimonial, em plena concordância com a legislação que, desde meados do século VIII, não cessa de proclamar que a lei do matrimônio é uma só, tanto para o homem como para a mulher.” ― TOUBERT, Pierre. “O período carolíngio (séculos VII a X)”, op. cit., p. 87. Também é desnecessário dizer que a violência sexual da época era contra a mulher.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref45">[45] </a>“Esta temática deverá ser relacionada com a luta que nessa época se travava contra as práticas contraceptivas, o aborto provocado e o infanticídio. Comporta igualmente um dever de educação cristã que tem como resultado, em Teodulfo de Orleães, uma definição do officium paterno e materno.” ― TOUBERT, Pierre. “O período carolíngio (séculos VII a X)”, op. cit., p. 87.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref46">[46] </a>“Que ajuntem e reúnam ao redor de si não só filhos de condição servil, mas também filhos de homens livres.” ― Da Admonitio generalis, cap. 72. In: BETTENSON, H. Documentos da Igreja cristã. São Paulo: ASTE, 2001, p. 168.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref47">[47] </a>Todos esses avanços jurídicos em relação à mulher e à criança foram acompanhados, paradoxalmente, por um discurso clerical anti-feminino! Para esse tema, ver especialmente DUBY, Georges. Eva e os padres. Damas do século XII. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. De qualquer modo, é fato que a mulher moderna ocidental hoje desfruta de uma posição social melhor que no Oriente, especialmente nos países de cultura islâmica.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref48">[48] </a>“O gosto que os autores medievais tinham pela etimologia derivava de uma atitude com relação à linguagem bastante diferente da que geralmente temos hoje. Na Idade Média, ansiava-se por saborear a transparência de cada palavra; para nós, pelo contrário, a linguagem é opaca e costuma ser considerada como mera convenção (e nem reparamos, por exemplo, em que coleira, colar, colarinho, torcicolo e tiracolo se relacionam com colo, pescoço).” ― LAUAND, Luiz Jean. Cultura e Educação na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 106.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref49">[49] </a>Esse é um ponto no qual a pedagogia medieval difere enormemente da moderna, pois é quase senso comum hoje afirmar que as crianças são receptáculos vazios (tabula rasa) e o educador enche-as de conteúdo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref50">[50] </a>PRICE, B. B. Introdução ao Pensamento Medieval. Lisboa: Edições Asa, 1996, p. 88.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><a href="http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm#_ftnref51">[51] </a>Este trabalho é a primeira parte da palestra intitulada "Reordenando o conhecimento: a educação na Idade Média e o conceito de ciência expresso na obra Doutrina para Crianças (c. 1274-1276) de Ramon Llull" proferida na II Jornada de Estudos Antigos e Medievais: Transformação social e Educação - 10 e 11 de Outubro de 2002 - Universidade Estadual de Maringá (UEM), evento coordenado pela Profª Drª Terezinha Oliveira.</div><div style="text-align: justify;"><i><span style="color: #800180;">http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm</span></i></div><div class="blogger-post-footer">História Viva</div>Eduardohttp://www.blogger.com/profile/04436257793497288219noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5377690050920894907.post-54446446631276053132022-05-30T00:25:00.001-03:002022-05-30T00:25:21.909-03:00A compreensão da infância como construção sócio-histórica<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiPYEldkE8_APqR0mR1dZmBz5C-kDmEOLCHWC5zIexL6f-g98_4gXHh8Oc4ys9VoY8LVP-teDTPOh8IDDdiwTMN5gAiUbhZb8HJCR2RxwH5XgBIPbTpoRHHv8F1X414XhPSEVwSPZ4xeSBh3gQufWVSX54Yo1nTrxtpxGxSAPHuHjzDAqF2bh059tZgEA/s286/1.1.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="176" data-original-width="286" height="176" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiPYEldkE8_APqR0mR1dZmBz5C-kDmEOLCHWC5zIexL6f-g98_4gXHh8Oc4ys9VoY8LVP-teDTPOh8IDDdiwTMN5gAiUbhZb8HJCR2RxwH5XgBIPbTpoRHHv8F1X414XhPSEVwSPZ4xeSBh3gQufWVSX54Yo1nTrxtpxGxSAPHuHjzDAqF2bh059tZgEA/s1600/1.1.jpg" width="286" /></a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A compreensão da infância como construção sócio-histórica</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">The understanding of childhood as a social and historical construction</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">La comprensión de la infancia como una construcción social e histórica</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Samuel Lincoln Bezerra Lins1, Maria de Fátima Oliveira Coutinho da Silva2, Zoraide Margaret Bezerra Lins3,2, Terezinha Féres Carneiro4</div><div style="text-align: justify;">1,4 Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro,2,3 Universidade Federal da Paraíba, Brasil</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">1 Pos-doutorando em Psicologia na Pontificia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil. Doutor em Psicologia (Universidade do Porto, Portugal. Mestre em Psicologia Social (UFPB). Graduado em Administração (UFPB) Licenciado e Formado em Psicologia (UFPB). <a href="mailto:samuel.bezerra.lins@gmail.com">samuel.bezerra.lins@gmail.com</a></div><div style="text-align: justify;">2 Doutora em Psicologia Social. Professora do Departamento de Enfermagem, Saúde Pública e Psiquiatria, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Brasil. <a href="mailto:mfocoutinho@gmail.com">mfocoutinho@gmail.com</a></div><div style="text-align: justify;">3 Doutora em Psicologia Social. Professora do Departamento de Enfermagem, Saúde Pública e Psiquiatria, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Brasil. <a href="mailto:zoraidelins@yahoo.com.br">zoraidelins@yahoo.com.br</a></div><div style="text-align: justify;">4 Professora Titular do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; Coordenadora do Curso de Especialização em Terapia de Família e Casal da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. <a href="mailto:teferca@puc-rio.br">teferca@puc-rio.br</a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Forma de citar: Bezerra, SL., Coutinho da Silva M., Bezerra Z, ZM. & Féres C., T. (2014). A compreensão da infância como construção sócio-histórica. Revista CES Psicología, 7(2), 126-137.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Resumo</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O presente artigo teve o objetivo de fazer algumas reflexões acerca do conceito de infância, considerando questões sociais e históricas. Procurou-se mostrar diversas perspectivas do conceito, a sua evolução ao longo do tempo, bem como os principais teóricos e trabalhos desenvolvidos sobre a temática, na sociedade ocidental, particularmente, no Brasil.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Palavras-chave: Infância, História, Psicologia Do Desenvolvimento.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Abstract</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">This article aimed to make some reflections about the concept of childhood, considering social and historical issues. We tried to show different perspectives of the concept, its evolution over time, as well as main theorists and work developed on the field, in Western society, particularly in Brazil.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Keywords: Childhood, History, Developmental Psychology.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Resumen</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Este artículo tiene como objetivo hacer algunas reflexiones sobre el concepto de la infancia, teniendo en cuenta los temas sociales e históricos. Tratamos de mostrar diferentes perspectivas del concepto, su evolución en el tiempo, así como los principales trabajos teóricos y hecho sobre el tema, en la sociedad occidental, particularmente en Brasil.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Palavras-chave: Infancia, Historia, Psicología del Desarrollo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Introdução</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A preocupação com o ser humano em seus primeiros anos de vida ocupa um espaço importante na sociedade contemporânea e nas pesquisas científicas (Bortolini & Vitolo, 2010; Bustamante & McCallum, 2010; David, Gelberg, & Suchman, 2012; Meins, Fernyhough, Arnott, Turner & Leekam, 2011, Pinto, 2009). Discussões sobre a infância estão sendo realizadas por pesquisadores das mais diversas áreas, com o objetivo de compreender melhor como a sociedade ocidental tem percebido a infância ao longo dos anos (Duschinsky, 2013; Leifsen, 2009; Punch, 2007; Tisdall & Punch, 2012).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Assim, surge a necessidade de investigar a origem dos significados levando em conta o contexto no qual a infância emerge e suas relações sociais, econômicas, históricas, culturais e políticas, como condições determinantes para retratar uma imagem da infância contextualizada. Neste sentido, este artigo se propõe apresentar uma contextualização histórica do surgimento da infância na literatura científica, como também seu desenvolvimento no Brasil.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O conceito histórico-social de infância</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Definir o termo infância é uma tarefa difícil, que pode se diferenciar de acordo com o referencial que se escolhe. Segundo o dicionário Aurélio, a infância é definida como um "período de crescimento do ser humano, que vai do nascimento até a puberdade". A criança, no mesmo dicionário, é definida como um "ser humano de pouca idade" (Ferreira, 2004). Etimologicamente, o termo 'infância", em latim in-fans, significa sem linguagem. Por sua vez, na tradição filosófica ocidental, não ter linguagem significa não ter pensamento, não ter conhecimento, e não ter racionalidade, ou seja, a criança é compreendida como um ser menor, e como alguém a ser adestrado, a ser moralizado, e a ser educado (Castro, 2010).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Percebe-se, no entanto, que a idade cronológica não é suficiente para caracterizar a infância. Khulmann Jr. (1998) afirma que a infância tem um significado genérico e, como qualquer outra fase da vida, esse significado está vinculado às transformações sociais, visto que, cada sociedade tem seu próprio sistema de classes etárias que estão associadas a um sistema de status e de papéis desempenhados.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Silveira (2000) aponta para o fato de que a sociedade sempre está em movimento e, desse modo, a vivência da infância transforma-se de acordo com os paradigmas do contexto histórico, ou seja, pensar na infância é também articulá-la com outros domínios como a escola, a família e a sociedade.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A importância da criança dentro de uma comunidade varia conforme o período histórico em que ela é considerada, uma vez que cada período imprime na infância uma significação específica, por vezes atrelada às condições sociais, e não apenas à sua condição de ser biológica (Silveira, 2000). A infância, sob essa ótica, registra-se como condição da criança, isto é, caracteriza-se como uma condição social e historicamente construída (Kuhlmann, 1998).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Com efeito, a infância é um tempo específico o qual todos vivenciam, entretanto, sempre se questionou qual era o tempo exato de abrangência da infância e como era percebida esta criança (Castro, 2010). Dessa forma, resgatar os antecedentes da história é dar espaço a inúmeros documentos que revelam o papel da criança desempenhado na sociedade ao longo dos anos. Tais documentos agem como porta-vozes da construção da história da infância e surgem como possibilidade para muitas reflexões sobre a forma de como compreendemos e nos relacionamos atualmente com a criança.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A importância da construção do conceito de infância teve um grande avanço com os estudos do pesquisador francês Philippe Ariès, por ele ser o pioneiro nesta temática, com a publicação da obra História Social da Criança e da Família, em 1960. Foi ele quem formulou um novo olhar historiográfico para o sentimento de infância no mundo ocidental, demonstrando que foi uma concepção socialmente construída durante a época moderna, e destacando aspectos desde a consciência da infância até as especificidades da criança, ou seja, aquilo que a diferencia do adulto.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Segundo relata Ariès (1981), a infância foi um conceito historicamente construído e a criança, por muito tempo, não foi vista como um ser em desenvolvimento, com características e necessidades próprias, e sim como um adulto em miniatura. Este autor considera a infância como uma invenção da modernidade, constituindo-se numa categoria social construída recentemente na história da humanidade, onde a emergência do sentimento de infância, como uma consciência da particularidade infantil, é decorrente de um longo processo histórico, não sendo uma herança natural. Essa afirmação desencadeou grandes mudanças na compreensão da infância, já que ela era pensada como uma fase da vida, como qualquer outra. Nesse sentido, a história da infância surge como possibilidade para muitas reflexões sobre a forma como entendemos e nos relacionamos atualmente com ela.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Historiadores da infância como Charlot (1983), Sarmento e Pinto (1997) e Tomás (2001), explicam que as mudanças sociais, políticas e econômicas ocorridas na época pós-medieval, geraram subsídios para a percepção moderna da infância, compreendida como campo da vida social específico destacado do campo dos adultos. Assim, a infância passou a ser reconhecida como uma fase diferenciada do ciclo da vida e como algo novo na história da humanidade. Confirma-se então, que a história da infância só começou a ser narrada recentemente, por consequência do anonimato em que a criança viveu no mundo ocidental até o século XVIII. A partir desse século, a infância como categoria histórica, contextualizada cultural e socialmente passou a apresentar diferentes imagens sociais ao longo da história.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A infância como conhecemos hoje foi uma criação de um tempo histórico e de condições socioculturais determinadas, sendo um engano ousar analisar todas as infâncias de todas as crianças com o mesmo enfoque. A compreensão da infância muda com o tempo e com os diferentes contextos sociais, econômicos, geográficos, e até mesmo com as peculiaridades individuais (Ariès, 1981).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Heywood (2004) assinala que por volta do século XII, as condições gerais de higiene e saúde eram precárias, situação que contribuía para elevar o índice de mortalidade infantil, porém, mesmo se as crianças sobrevivessem aos primeiros anos de vida e atingissem certa idade, ainda assim, não possuiriam identidade própria, só vindo a tê-la quando conseguissem realizar atividades semelhantes àquelas desempenhadas pelos adultos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Sendo assim, os cuidados especiais que as crianças deveriam receber, ou mesmo quando os recebiam, eram destinados apenas aos primeiros anos de vida e reservados aos que possuíam uma situação socialmente e financeiramente privilegiada. Dos adultos, que cuidavam das crianças, não se exigia nenhuma preparação, e esse cuidado era realizado pelas chamadas criadeiras, amas de leite ou mães mercenárias.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Obviamente, isto não significa negar a existência social das crianças, significa reconhecer que, antes do século XVI, a consciência social não admitia a existência autônoma da infância como uma categoria diferenciada do gênero humano. Uma vez passado o estrito período de dependência física da mãe, esses indivíduos se incorporavam plenamente ao mundo dos adultos (Levin, 1997).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No século XIII, atribuía-se à criança modos de pensar e sentimentos anteriores à razão e aos bons costumes. Era tarefa dos adultos desenvolver nela o caráter e a razão, e de modo semelhante, a Igreja procurava cumprir a tarefa de educação, colocando-as a serviço do monastério. Tais costumes podem ser observados facilmente através da arte e iconografias que retratam este século (Heywood, 2004).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O sentimento de infância, presente na sociedade moderna, nem sempre foi valorizado durante a idade média. Praticamente inexistia esse sentimento, tanto da infância como da adolescência, fato que perdurou até o século XVIII. Nesse período, a criança logo que apresentasse algum desenvolvimento misturava-se ao mundo dos adultos, participando de atividades semelhantes, como festas, jogos e brincadeiras. A família na Idade Média não tinha a função afetiva que tem hoje, "era uma realidade moral e social, mais que sentimental" (Ariès, 1981, p.67).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Nos séculos XVI e XVII existia uma consciência de que as percepções de uma criança eram diferentes das percepções dos adultos. Porém, só a partir do século XVII foi possível seu reconhecimento em maior número onde as representações da infância divergiam muito da realidade, onde as crianças eram representadas com expressões de adultos, musculosas e vestidas com trajes de adulto. De acordo com Ariès (1981), "a criança deixava os cueiros, ou seja, a faixa de tecidos que era enrolada em torno de seu corpo, ela era vestida como os outros homens e mulheres de sua condição" (p. 81). Isto demonstra o quanto as crianças não tinham valor, e a infância era desconhecida, considerada apenas como um período de transição, que logo se ultrapassava.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Foi durante o século XVII que se generalizou o hábito de pintar nos objetos e nas mobílias da casa uma data solene para a família. Constata-se que foi na Idade Média que as idades da vida começaram a ter importância. Durante esse período, então, existiam seis etapas de vida. As três primeiras, que correspondiam à primeira idade (nascimento aos 7 anos), a segunda idade (7 a 14 anos) e terceira idade (14 a 21 anos), eram etapas não valorizadas pela sociedade. Somente a partir da quarta idade, a juventude (21 a 45 anos), as pessoas começariam a ser reconhecidas socialmente. Ainda existindo a quinta idade (a senectude), referente à pessoa que não era velha, mas que já tinha passado da juventude e a sexta idade (a velhice), dos 60 anos em diante até a morte. Tais etapas alimentavam desde esta época, a idéia de uma vida dividida em fases (Ariès, 1981).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ainda no século XVII, nas classes dominantes, surgiu a primeira concepção real de infância, a partir da observação dos movimentos de dependência das crianças muito pequenas. O adulto passou, então, pouco a pouco, a preocupar-se com ela como um ser dependente e fraco (Levin, 1997). Comenta o autor, que ultrapassar esta fase da vida só para quem saísse da dependência, ou pelo menos dos graus mais baixos de dependência, desse modo a palavra infância passou a designar a primeira idade de vida, a idade da necessidade de proteção, que perdura até os dias de hoje.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Percebe-se, portanto que até o século XVII, a ciência desconhecia a infância, não havia lugar para esta na sociedade, fato caracterizado pela inexistência de uma expressão particular a ela. Só então, a partir das idéias de proteção, amparo, dependência, que surge a infância. As crianças passaram a ser vistas como seres biológicos, que necessitavam de grandes cuidados e de uma rígida disciplina, a fim de transformá-las em adultos socialmente aceitos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Segundo Heywood (2004), ao analisar o século XVIII, a emergência social da criança nesse século aconteceu devido às obras de John Locke, Jean Jacques Rousseau e dos primeiros românticos. Cita o autor que foi Locke que difundiu a idéia da tábula rasa para o desenvolvimento infantil e de que a criança nascia apenas como uma folha em branco, na qual, se poderia inscrever o que se quisesse.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Enquanto que, para Rousseau, existia a idéia de natureza boa, pura e ingênua da criança, e da necessidade de respeitá-la e deixá-la livre para que a natureza pudesse agir no seu curso normal, favorecendo o pleno desenvolvimento saudável das crianças. Já em relação às concepções românticas da infância, apresentaram as crianças como portadoras de sabedoria, sensibilidade, e estética apurada, necessitando que se criassem condições favoráveis para o seu pleno desenvolvimento.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Assim, cabe destacar, que o tratamento diferenciado remetido à infância aparece entre os séculos XVI e XVIII. Até essa época a educação das crianças confundia-se com sua inclusão nas atividades da sociedade e nos espaços públicos, porém com a Revolução Industrial e a conseqüente urbanização, inicia-se o processo da família nuclear extensa do período feudal (Rabuske, Oliveira & Aripini, 2005).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Já no século XIX inaugura-se uma visão de criança sem valor econômico, mas de valor emocional inquestionável, criando uma concepção de infância plenamente aceita no século XX. Na verdade, como é possível perceber, "a história cultural da infância tem seus marcos, mas também se move por linhas sinuosas com o passar dos séculos: a criança poderia ser considerada impura no início do século XX tanto quanto na alta Idade Média" (Heywood, 2004, p. 45).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Pode-se então afirmar que, a mudança de paradigma no que se refere ao conceito de infância está diretamente ligada ao fato de que as crianças sempre foram consideradas adultos imperfeitos, sendo assim, essa etapa da vida seria de pouco interesse, visto que "somente em épocas comparativamente recentes veio a surgir um sentimento de que as crianças são especiais e diferentes, e, portanto, dignas de ser estudadas por si sós" (Heywood, 2004, p.10).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O que se observou no ocidente foi o movimento de particularização da infância, ganhando forças a partir do século XVIII, a esse respeito:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A família sofre grandes transformações e criam-se novas necessidades sociais nas quais a criança será valorizada enormemente, passando a ocupar um lugar central na dinâmica familiar. A partir de então, o conceito de infância se evidencia pelo valor do amor familiar: as crianças passam dos cuidados das amas para o controle dos pais e, posteriormente, da escola, passando pelo acompanhamento dos diversos especialistas e das diferentes ciências como Psicologia, Antropologia, Sociologia, Medicina, Fonoaudiologia, Pedagogia, dentre outras tantas (Frota, 2007, p.152).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Nesse sentido, foi através de Rousseau, considerado um dos primeiros pedagogos da História, que a criança começou a ser vista de maneira diferenciada do que até então existia, uma vez que ele propôs uma educação infantil sem juízes, sem prisões e sem exércitos (Levin, 1997). Assim, a partir da Revolução Francesa, em 1789, modificou-se a função do Estado e, com isso, a responsabilidade para com as crianças e o interesse por elas. A partir desse momento os governos começaram a se preocupar com o bem-estar e com a educação das mesmas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">De fato, a infância e a criança tornaram-se objetos de estudos e de saberes de diferentes áreas, constituindo-se num campo temático de natureza interdisciplinar, independentemente da forma como era analisada e do posicionamento teórico que se tinha sobre ela, a infância tornou-se visível como um estatuto teórico.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Essa discussão nos remete à necessidade de pesquisas na área que possam aprofundar e elucidar as questões da infância e as suas transformações, principalmente no que diz respeito às concepções da condição da criança enquanto ser social e sujeito ativo, ou seja, uma criança concreta que ocupa um lugar na história através de relações sociais que se estruturam a cada dia. É importante perceber que as crianças concretas, na sua materialidade, no seu nascer, no seu viver ou morrer, expressam a inevitabilidade da história (Kuhlmann, 1998).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Compreende-se então, que com a evolução nas relações sociais que se estabeleceram na Idade Moderna, a criança passa a ter um papel central nas preocupações da família e da sociedade. A nova percepção e organização social fizeram com que os laços entre adultos e crianças, pais e filhos, fossem fortalecidos. A partir deste momento, a criança começa a ser vista como indivíduo social, dentro da coletividade, e a família tem grande preocupação com a sua saúde e a sua educação.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A ciência moderna, ao elaborar um conjunto de características sobre a criança, reconhece a infância como um momento do desenvolvimento humano, abrindo campo para vários estudos e orientações no cuidado e educação desse grupo etário -o universo infantil-. Entretanto, a análise da produção existente sobre a história da infância permite afirmar que a preocupação com a criança encontra-se presente somente a partir do século XIX, tanto no Brasil como em outros lugares do mundo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O conceito histórico-social de infância no Brasil</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Resgatar a história social da infância no Brasil é um fato recente. Se na Europa a historiografia sobre a criança só foi produzida a partir de 1960, através de Ariès, no Brasil, a compreensão da infância parece ter realmente começado no século XIX, intensificando-se nos séculos seguintes (Frota, 2007). Portanto, é recente a preocupação dos historiadores brasileiros sobre este tema, e apesar da História da Criança ter alçado destaque nos últimos anos, ainda está muito presa aos temas da história contemporânea.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">De fato, apenas a partir do ano de 1991 surgiu a primeira publicação na historiografia que se propôs a escrever a história da criança brasileira. Esta obra foi organizada por Mary Del Priore e reuniu uma coletânea de textos, de diversos autores, sob o título de História da Criança no Brasil. Em seu trabalho, Del Priore analisou como o sentimento de valorização da criança, corrente na Europa Moderna, identificado por Ariès, esteve presente na prática educativa dos missionários jesuítas no Brasil Colônia. A infância, para estes, era vista como o momento oportuno para a catequese, pois seria o período em que se daria a aprendizagem de princípios e valores que seriam adotados e seguidos por toda a vida (Del Priore, 1991).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A constatação da crescente valorização social da criança, que culminou no que Ariès (1981) denominou descoberta da infância, teve como fontes elementos provenientes da cultura européia. Os processos de colonização, em terras das Américas e da África, são repletos de demonstrações das influências dos modelos europeus nas práticas sociais das populações colonizadas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Dentre os primeiros registros encontrados sobre este tema, enfatiza-se a iniciativa dos jesuítas. No século XVI, estes implantaram um sistema de educação direcionado aos povos indígenas e tinha o propósito de, através do convívio com a doutrina a ser difundida pelos jesuítas, promover mudanças nos costumes da população indígena, considerados inadequados na visão da Colônia e da Igreja (Cruz, 2006). Os cuidados especiais infância eram limitados e as regras e recomendações acerca da vida e educação das crianças eram determinadas, principalmente, pela Igreja (Ribeiro, 2006).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O processo de transição do Brasil Colônia para o Império teve como marco histórico a Declaração de Independência, em 1822. A luta pela independência do Brasil contou com diversos segmentos sociais, entre eles os padres, os intelectuais e os escravos. Com a emancipação política do País, no início do século XIX, fez-se necessário a criação de uma Constituição. Assim, a primeira Constituição brasileira foi promulgada em 1824. Nesta, contudo, mantiveram-se as características do Brasil Colônia, como: trabalho escravo, dependência política do país em relação a Portugal e relações de poder centralizadas no domínio dos grandes proprietários e não havia nenhuma referência à infância ou a práticas relacionadas às crianças (Carvalho, 2008).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Mesmo assim, neste contexto, intensificaram-se as intervenções médicas nas questões de saúde e higiene e, consequentemente, os cuidados dedicados à infância e à família. Este processo de valorização da saúde ocorreu primeiro na Europa, depois no Brasil, chegando ao século XIX com o foco na questão da mortalidade infantil e nas recomendações de cuidados com as crianças. É neste período que se inicia a institucionalização dos saberes médicos e também psicológicos aplicados à infância e, portanto, é quando podemos obter mais registros sobre práticas e políticas dirigidas a meninas e meninos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Assim, um processo a ser enfatizado na área de atendimento à infância no Brasil e no mundo, caracteriza-se por medidas higienistas-eugênicas, emergentes no fim do século XIX e início do século XX. Embora o higienismo e a eugenia advenham de movimentos diferentes e de circunstâncias históricas e proposições teóricas próprias, suas idéias se aproximaram e se sobrepuseram às políticas e práticas sociais brasileiras (Boarini & Yamamoto, 2004).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A partir do século XIX, estes ditames passaram a ser cada vez mais foco do saber considerado científico. As famílias, especialmente as mães, passaram a receber de modo mais sistemático, orientações desses profissionais sobre saúde e cuidados dirigidos às crianças (Heywood, 2004). Assim, a perspectiva da saúde compõe com a religião e a moral construções de sentidos de infância, passando a normatizar e interferir cotidianamente nos modos de tratar e educar meninos e meninas. Concomitantemente, é nesta época que a infância ganha maior visibilidade, pois é definida como objeto de intervenções públicas, devido à maior valorização da mão-de-obra num mundo em franco progresso da lógica capitalista e industrial (Silva Santos, 2004).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Assim, no século XX, com o desenvolvimento tecnológico e a mobilidade geográfica, o discurso científico médico-psicológico tornou-se o referencial para as práticas direcionadas ao cuidado infantil passando a orientar a relação pais-filhos (Alves, 1999). A ênfase atribuída, no século XX, às responsabilidades e ao papel do adulto em relação à criança aconteceu a partir da institucionalização da Declaração Internacional dos Direitos da Criança, no ano de 1959. Desse modo, os comportamentos e atitudes socialmente construídos adquiriram um caráter de lei, como pode ser observado com a instauração do Estatuto da Criança e do Adolescente, no Brasil, em 1990 (Almeida & Cunha, 2003).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O cuidado atual em estudos sobre a infância recai no evitar os reducionismos de qualquer ordem. Assim, é preciso não deixar a ideia de que a infância é uma construção unicamente social para abandonar o reducionismo biológico e, dessa forma, substituí-lo pelo reducionismo sociológico (Prout, 2004). A criança deve ser vista como um ser completo, biopsicossocial, por isso, é preciso intensificar a interdisciplinaridade dos estudos da infância (Müller & Hassen, 2009, Qvortrup, 2011)</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Neste sentido, observa-se o aumento do interesse de investigadores brasileiros na realização de estudos destacando a importância da criança e a compreensão dos seus significados (Silva, Luz & Faria Filho, 2010), em diversos campos do conhecimento como a Sociologia (Abramowicz & Oliveira, 2010), a História (Lage & Rosa, 2011; Poletto, 2012), a Assistência Social (Lockmann & Mota, 2013), e a Psicologia (Degani-Carneiro & Jacó-Vilela, 2012).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Considerações finais</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A partir das reflexões sobre as diversas concepções de infância, surge uma preocupação cada vez mais ampla e sistemática com o estudo e compreensão da criança e de seu desenvolvimento. A partir do estudo científico da criança, que se iniciou, efetivamente, no século XIX, como legado maior das Teorias Desenvolvimentistas, surgiu a compreensão da criança como uma categoria científica, notadamente positivista, ou seja, a infância passou a ser concebida como produto do tempo, da natureza e da cultura.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Pode-se ver que, numa perspectiva histórica de milhares de anos, em que predominou o total desconhecimento da criança, a Psicologia do Desenvolvimento Infantil encontrou no seu início diversas dificuldades para se impor como estudo importante e necessário. Hoje, o estudo do desenvolvimento da criança é necessário e indispensável para quem deseja trabalhar com essa fase da vida humana. Além disso, a perspectiva extremamente positivista assumida pela Psicologia do Desenvolvimento, que se preocupava principalmente em observar, medir e comparar as mudanças exibidas pelascrianças ao longo de sua trajetória de vida, foi substituída por uma perspectiva mais histórica (Frota, 2007).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Atualmente, a criança e a infância são compreendidas como categorias construídas historicamente, o que nos abre possibilidades de compreendê-las de modo concreto, na sua expressão de vida. O tempo linear, cronológico e contínuo é superado por um devir, um tempo que não se esgota em si mesmo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No que se refere à infância, identificamos, nesta trajetória histórica, diferentes significados constituídos em distintos contextos sociais. Do interesse limitado pela criança na Idade Média, até a infância como foco das práticas sociais e formalmente prioritária nas políticas públicas da atualidade, comprovando-se que houve um longo caminho de transformações políticas, econômicas e culturais. Neste sentido, significados e contextos estão intimamente relacionados.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Por outro lado, o estudo dessas perspectivas históricas indica a necessidade de debater e compreender continuamente atribuições, lugares e responsabilidades que o presente nos impõe. Podemos ser protagonistas da construção, assim como temos a chance de participação na geração de espaços de cidadania. Tais possibilidades nos remetem ao campo da ética e, consequentemente, da constante reflexão crítica acerca das interlocuções entre as práticas construídas, nossos projetos político-sociais e os valores que os contemplam.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Assim, a partir do momento em que se alcançou uma consciência sobre a importância da infância, foram criadas várias políticas e programas que visaram a promover e ampliar as condições necessárias para o exercício da cidadania das crianças, que por sua vez, passaram a ocupar lugar de destaque na sociedade. Essa consciência da infância exerceu enorme influência sobre a formação legislativa ao longo dos séculos passados.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Entretanto, somente no final do século XX, foi possível romper, do ponto de vista normativo, com aquele paradigma, quando se acolheu o atendimento às crianças e adolescentes dentro das políticas públicas, reconhecendo-os como sujeitos de direitos fundamentais e especiais, decorrentes da sua peculiar condição de pessoas em desenvolvimento, responsabilizando o Estado, a sociedade e a família pela garantia e atendimento, com irrestrita prioridade, de todas as suas necessidades.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O marco destes avanços se deu com a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), instituído pela lei 8.069 no dia 13 de julho de 1990, regulamentando os direitos das crianças, considerando a proteção da infância como prioridade absoluta, como determina a Constituição Federal Brasileira. Cabe destacar também a influência das diretrizes da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) na proteção ao direito à infância, tendo em vista a elaboração de políticas públicas (Cecílio & Brandão, 2013).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Observa-se que a maneira de como a infância é vista atualmente é consequência- dessas constantes transformações pelas quais passamos, e que é de extrema importância nos darmos conta destas transformações para compreendermos a dimensão que a infância ocupa atualmente. Como ressalta Bujes (2001), este percurso, ou seja, esta história, só foi possível porque também se modificaram na sociedade as maneiras de se pensar o que é ser criança e a importância que foi dada esta fase específica do ciclo vital. Portanto, enquanto pesquisadores e profissionais de saúde, devemos ter sempre uma postura progressista de avanço das descobertas científicas, mas sem desconsiderar a história que nos trouxe até aqui.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Desse modo, as diferentes concepções existentes sobre a criança, na contemporaneidade ocidental, são peças indispensáveis para comporem um quadro geral sobre a infância atual, e necessitam serem conhecidas e compreendidas dentro do contexto no qual foram produzidas. Tais saberes, de diferentes disciplinas e origens teóricas, devem ser convidados ao diálogo, produzindo frutos que podem ser ricos e oferecerem novos e variados elementos para ajudarem na compreensão da infância na pós-modernidade.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Referencias</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Abramowicz, A., & Oliveira, F. 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(2004). (Des)construindo a 'menoridade': uma análise crítica sobre o papel da Psicologia na produção da categoria "menor". In: Gonçalves, H. S. & Brandão, E. P. (Org.). Psicologia Jurídica no Brasil. Rio de Janeiro: NAU. [ Links ]</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Silva, I., Luz, I. & Faria Filho, L. (2010). Grupos de pesquisa sobre infância, criança e educação infantil no Brasil: primeiras aproximações. Revista Brasileira de Educação, 15 (43), 84-97. [ Links ]</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Silveira, J. (2000). Infância na Mídia: sujeito, discurso, poderes. (Dissertação de Mestrado) Porto Alegre: FACED/UFRGS. [ Links ]</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Tisdall, E. & Punch, S. (2012). Not so 'new'? Looking critically at childhood studies. Children's Geographies, 10 (3), 249-264. doi:10.1080/14733285.2012.693376. [ Links ]</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Tomás, C. (2001). A transformação da infância e da educação: algumas reflexões sócio-históricas. Paidéia, 11 (20), 69-72. [ Links ]</div><div style="text-align: justify;"><b><span style="color: #800180;">CES Psicologia</span></b></div><div class="blogger-post-footer">História Viva</div>Eduardohttp://www.blogger.com/profile/04436257793497288219noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5377690050920894907.post-46306297168868569162022-05-30T00:14:00.003-03:002022-05-30T00:14:16.312-03:00UMA HISTÓRIA DA INFÂNCIA: DA IDADE MÉDIA À ÉPOCA CONTEMPORÂNEA NO OCIDENTE.<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi9SGFdmVOSr87VucootFzKbnPjvpIe1TPHUYv1X6gmHjL4eUBe10QtqAhseORQF4Y-LSWcjnOK3rlewQNUo290jhOdoR7IETpfz1i_eo_KXKrn_HOl1j1qRg93QtrNR28YlTlyngwE-WShVzByG0BJbBdQ9Ci5TfwZE2KDMAthH3dsdlnT-Uyq--_A4w/s286/141734.webp" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="286" data-original-width="200" height="286" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi9SGFdmVOSr87VucootFzKbnPjvpIe1TPHUYv1X6gmHjL4eUBe10QtqAhseORQF4Y-LSWcjnOK3rlewQNUo290jhOdoR7IETpfz1i_eo_KXKrn_HOl1j1qRg93QtrNR28YlTlyngwE-WShVzByG0BJbBdQ9Ci5TfwZE2KDMAthH3dsdlnT-Uyq--_A4w/s1600/141734.webp" width="200" /></a></div><br /><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><br /><div style="text-align: justify;">Uma história da infância: da idade média à época contemporânea no ocidente</div><div style="text-align: justify;">Moysés Kuhlmann Jr.</div><div style="text-align: justify;">RESENHAS</div><div style="text-align: justify;">Moysés Kuhlmann Jr.</div><div style="text-align: justify;">Departamemto de Pesquisas Educacionais da Fundação Carlos Chagas, <a href="mailto:mkj@fcc.org.br">mkj@fcc.org.br</a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">UMA HISTÓRIA DA INFÂNCIA: DA IDADE MÉDIA À ÉPOCA CONTEMPORÂNEA NO OCIDENTE.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Colin Heywood</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Porto Alegre: Artmed, 2004, 284p.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Passaram-se mais de 25 anos ao longo dos quais a obra de Philippe Ariès, História social da infância e da família, foi traduzida no Brasil e reinou quase solitária como referência para a história da infância ocidental. A publicação do livro de Colin Heywood permite aos leitores brasileiros o acesso a uma competente síntese do avanço dos estudos sobre o tema em alguns países europeus e nos EUA.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Heywood faz um rastreamento de pesquisas produzidas no Reino Unido, na França, nos EUA, bem como na Itália, na Rússia e nos países escandinavos, entre outros. Isso surpreende, pois não é comum encontrarmos obras de autores estrangeiros que reúnam como referências a bibliografia em língua francesa e em língua inglesa. Os estudos sobre a história da infância em nosso país têm se ocupado de algumas dessas pesquisas européias e norte-americanas e das críticas às teses de Ariès, mas as trataram em análises mais pontuais, referidas a um ou outro aspecto do tema.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O livro organiza-se em três partes. A primeira, ocupa-se das mudanças nas concepções de infância a partir da Idade Média. A segunda, trata da relação das crianças com seus pais e com seus pares ao longo das etapas do seu processo de crescimento. A terceira parte dedica-se às crianças no mundo mais amplo, envolvendo o trabalho, a saúde e a educação. Mesmo com a grande abrangência de fontes bibliográficas, a linguagem é acessível a um amplo público leitor.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O livro parte da compreensão de que seria simplista considerar a ausência ou a presença do sentimento da infância em um ou outro período da história. Considera mais frutífera a busca de diferentes concepções sobre a infância em diferentes tempos e lugares.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O autor identifica várias "descobertas" da infância: nos séculos VI a VII, nos séculos XII a XIV, nos séculos XVI e XVII, no século XVIII e início do XIX, e no final do XIX e início do XX. A história da infância move-se por "linhas sinuosas", de modo que a criança pode ter sido considerada impura no início do século XX, como o fora na Alta Idade Média. Se há uma mudança de longo prazo em que a progressiva aceitação da necessidade de uma educação escolar prolonga a infância e a adolescência, se há um interesse crescente e uma imagem cada vez mais positiva da infância, os debates assumem uma forma cíclica e não linear. A ambigüidade, nos diferentes momentos, polariza a criança entre a impureza e a inocência, entre as características inatas e as adquiridas, entre a independência e a dependência, entre meninos e meninas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">As relações das crianças com seus pais e pares é discutida sob vários aspectos: o desejo ou não de se ter filhos, o parto, o batismo, a apresentação das crianças à comunidade e a morte de mães e crianças. Heywood constata que até o impacto da medicina moderna, no final do século XIX, ter filhos era um empreendimento arriscado, mas isso não impedia a expectativa de procriação entre aqueles que se casavam.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A seguir, discute a questão das amas-de-leite, a alimentação, o vestuário, a higiene, o infanticídio, o abandono. Considera que a natureza dramática de algumas dessas questões, assim como a ampla documentação oriunda de instituições de atendimento e do judiciário, entre outras, favorece a ênfase da historiografia nesses aspectos. Entretanto, pondera que a maioria das crianças terá sido poupada desses traumas, vivendo histórias mais banais.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Quanto à segunda fase da infância, do desmame aos sete anos, identifica contrastantes formas de atitude dos pais: o tipo indiferente; o tipo "invasivo" ou "evangélico", que vê a criança como pecadora inata; o seu oposto, que a toma como naturalmente inocente; e o tipo moderado. O autor cita pesquisas que indicam diferentes modos de comportamento materno e paterno, tanto entre personagens da nobreza e da burguesia como entre trabalhadores, camponeses e escravos norte-americanos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A seguir, trata dos aprendizados e da educação das crianças: o controle dos esfíncteres, o caminhar, a fala, os brinquedos e brincadeiras, os livros infantis. Amedrontar, ironizar, castigar física e moralmente são formas de tratamento que ocorreram em diferentes momentos, embora também se pudesse identificar o combate a essas práticas, como no século XI, quando Santo Anselmo apontava as vantagens da gentileza e dos bons exemplos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Aos sete anos marcava-se uma transformação na vida das crianças. Mudavam-se os trajes, diferenciavam-se os gêneros, atribuíam-se responsabilidades. Ampliavam-se as relações sociais, seja pela entrada no mundo do trabalho ou do estudo, muitas vezes com a saída de casa, seja pelo maior convívio com os grupos de pares, que irão rivalizar com a família nas influências sobre a socialização das crianças.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A última parte do livro trata da presença das crianças no mundo do trabalho e da sua saúde e educação. O autor considera que, apesar dos exemplos cruéis de exploração do trabalho infantil, grande parte do trabalho feito pelas crianças no passado seria casual e de pouco esforço, relacionado a tarefas de ajudar os adultos nos seus afazeres. Há exemplos de ambas as formas de tratamento, das suaves às extenuantes, no campo e na cidade, antes e após a industrialização. As fábricas intensificaram os abusos sobre as crianças e se isso levou à discussão e formulação de leis, a legislação não chegou a proibir, mas a regulamentar o trabalho infantil e seus efeitos são passíveis de discussão. A condenação e eliminação de boa parte do trabalho infantil, a construção de uma concepção moderna da infância, que destaca a sua vulnerabilidade e que põe a escola como local privilegiado para a infância, foi fruto de um longo processo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Quanto à saúde, antes da medicina moderna, as crianças eram muito mais vulneráveis a inúmeros problemas, embora as evidências sobre as dificuldades por que passaram não sejam muitas. A melhoria dessa condição, com o passar do tempo, pode ser observada, por exemplo, pelos dados dos registros militares, relacionados à altura dos jovens: adolescentes da classe trabalhadora, nascidos no final da década de 1950, tinham 30 centímetros acima dos nascidos em meados do século XVIII, na Inglaterra. Mas há também estudos que mostram um declínio da estatura, em certos períodos, como entre 1760 e 1800, em Viena, provavelmente relacionado à deterioração dos padrões de vida e suas conseqüências para a nutrição. Outro indicador importante refere-se à mortalidade, que começa a diminuir, aos poucos, a partir do final do século XVIII, e mais efetivamente a partir do final do século XIX. Entretanto, o autor afirma que a melhoria nos dados estatísticos pode encobrir a persistência das desigualdades sociais: no século XIX, as crianças pobres e trabalhadoras eram mais baixas e morriam em maior número do que as de classe alta.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A substituição do trabalho pela escola, como principal ocupação da criança, fica mais caracterizada no final do século XIX e início do século XX. É uma longa história, que se inicia nos países protestantes do norte europeu, no século XVII. No século XVIII, reformadores começam a pensar em termos de um sistema nacional de educação. Heywood chama a atenção para as pesquisas que se ocupam das experiências educacionais anteriores, no âmbito do aprendizado dos ofícios, no período medieval. Considera ainda, que o acesso à educação também se fez marcar pelas desigualdades econômicas e de gênero e raça.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Nas conclusões, o autor reafirma a recorrência de vários temas nessa longa trajetória, da Alta Idade Média ao século XX. Indica melhorias significativas para sua saúde, educação e bem-estar, assim como o final da crença na impureza da infância. Considera, por fim, que as crianças não teriam sido vítimas passivas, possuindo alguma capacidade de resistência e de escolha.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Algumas críticas e considerações podem ser apresentadas à obra. Inicialmente, à edição brasileira. O cuidado com a revisão poderia ter evitado as várias falhas de digitação. O mesmo quanto à tradução, que incorre em alguns problemas. No subtítulo da obra, entende-se "tempos modernos" (modern times, no original) como "época contemporânea". Embora o autor, no último capítulo e em alguns poucos momentos do livro, refira-se aos tempos atuais, o seu estudo estende-se de fato ao início do século XX, sem ocupar-se das questões ocorridas ao longo do século passado. Em outro momento, para se referir ao controle dos esfíncteres, afirma-se que uma das primeiras tarefas propostas por pais e amas "era o ensinamento de como utilizar o banheiro". Parece haver um receio no uso de expressões como defecar e urinar e aí não se pode dizer se o problema é da tradução ou do texto original. Uma das falhas mais gritantes ocorre na página 178, quando ear deveria ser traduzido por "orelha" e não "ouvido", pois não é factível que, na situação descrita, para castigar uma criança em uma oficina, alguém tenha "martelado um prego em seu ouvido".</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Quanto ao texto e à amplitude do período estudado, em alguns momentos, parece que se transita com uma certa ligeireza do período medieval aos séculos XVIII e XIX, sem considerar as diferentes condições dos diferentes momentos históricos. Apoiado nas pesquisas realizadas em diversos países, o livro pouco pode falar, ainda, da vida das crianças nos ambientes rurais. Entretanto, o esforço "olímpico" de síntese, como considera o autor, torna essas simplificações quase que inevitáveis.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">É louvável a preocupação que acompanha todo o texto, de evitar uma compreensão da história como seqüência linear e evolutiva, assim como, por conseqüência, o entendimento de que, em cada momento haveria uma única infância, o que representa um grande avanço em relação às teses de Ariès. Mas ainda persiste, em vários momentos, uma certa compreensão hierarquizada das formas de sentimento e de relação entre adultos e crianças, como se os sentimentos mais positivos brotassem das classes superiores, irradiando-se para as inferiores.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Em outros momentos, a ponderação das ambigüidades pode levar a uma minimização das situações de exploração infantil, como na página 179, em que o autor afirma que "de forma nenhuma estas eram vítimas passivas da exploração" e que, de algum modo, "as crianças conseguiam transformar o chão de fábrica em um lugar de diversão para si próprias, subvertendo a atenção dos adultos ao seu redor". É necessário, de fato, metodologicamente, evitar as interpretações generalizadas, que acabam por ajuizar que tais ou quais crianças tiveram ou não tiveram infância. Por isso, é importante buscar as evidências de como a condição infantil se manifesta, mesmo nas condições mais adversas. Mas também é preciso estar atento para não se cair no pólo oposto e considerar que essas crianças seriam felizes e independentes diante de uma relação de forças tão desigual como as que têm com os adultos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Finalmente, cabe uma consideração do lado de cá, do hemisfério sul. A história ocidental ainda é contada no livro, como se não existíssemos, como se a colonização, o ouro, a prata, a batata e tantas outras coisas não fizessem parte da história do ocidente. Isso também remete à expressão "ocidental", que retira explicitamente da análise os aspectos das relações com as sociedades e culturas orientais, que têm suas implicações na nossa história da infância. Para ser mais coerente com a preocupação em se considerar as diferentes condições sociais, culturais etc., para uma compreensão mais consistente da História, caberia referir-se à história da humanidade.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">É claro que isso parece pedir demais, o que é fácil de se fazer em uma ligeira apreciação. Mas não custa indicar caminhos de reflexão para as nossas análises e pesquisas, sem deixar de considerar a importância do trabalho do autor, que avança muito mais do que outros, que generalizam para todo o mundo a partir de um único país ou região, ou de uma única referência lingüística.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Recomenda-se a leitura do livro a todos os que tenham interesse na temática.</div><div style="text-align: justify;"><b><span style="color: #800180;">Cadernos de Pesquisa</span></b></div><div class="blogger-post-footer">História Viva</div>Eduardohttp://www.blogger.com/profile/04436257793497288219noreply@blogger.com0