quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Visão poética e lirismo de Mia Couto

Obra do escritor moçambicano revela altas doses de magia e sensibilidade
MAURICIO MONTEIRO FILHO

Mia Couto / Foto: Arquivo pessoal

No lançamento de uma de suas obras, o livro infantil O Gato e o Escuro, o escritor moçambicano Mia Couto conversa com uma das crianças presentes, que estende seu exemplar para ser autografado. Depois de se apresentar e fazer ao menino algumas perguntas que ele próprio acaba qualificando de estúpidas, Couto ajoelha-se para ficar à altura de seus olhos e indaga:

– Você tem medo do escuro?

O garoto, em vez de responder, lhe faz a mesma indagação.

– Sim, eu tenho – assume o escritor.

– Não precisa ter medo. O escuro é só o que colocamos nele – diz o menino.

Mia Couto reconhece a frase. Nem poderia ser diferente: foi ele mesmo quem a escreveu, na obra que era lançada naquele momento.

“Fui consolado por uma citação de mim mesmo, dita por uma criança”, admirou-se Couto. E se deparou ali com o que considerou uma das grandes realizações de seu ofício de escritor.

Além de êxitos como esse, mais subjetivos, Mia Couto vem colecionando reconhecimento e premiações mundo afora. O moçambicano é um sucesso de crítica para os padrões de um autor de língua portuguesa. Seu livro mais conhecido, Terra Sonâmbula, foi considerado um dos dez melhores produzidos no continente africano no século 20.

E, já há alguns anos, vem conquistando os leitores deste lado do oceano Atlântico. Autor de narrativas calcadas no imaginário dos homens simples imersos na complexa simbologia de sua terra natal, ele vem abrindo a golpes de facão um espaço no morno mercado editorial brasileiro e já é tido como um dos maiores autores africanos de língua portuguesa. Sócio correspondente da Academia Brasileira de Letras, recebeu a Ordem do Mérito Cultural, concedida pelo Ministério da Cultura, em novembro de 2009. Também foi agraciado com o prêmio o autor angolano José Eduardo Agualusa, o que evidencia que os escritores africanos de língua portuguesa estão em alta em terras brasileiras.

A obra de Couto, publicada em 24 países, não é só composta de romances. Fazem parte de seus escritos contos, crônicas, artigos de opinião e poesia. Ao todo, ele tem mais de 20 livros lançados, dos quais nove saíram no Brasil, onde o autor já vendeu mais de 100 mil exemplares de suas obras.

Enquanto transita por toda essa amplitude de gêneros, no entanto, Couto mantém-se fiel a um estilo marcado sobretudo por altas doses de lirismo e sensibilidade. “O que procuro num livro é sempre a capacidade de encantamento, a palavra como redentora da nossa condição solitária e fragmentada”, define ele.

Estante imaginária

Para Mia, a matéria dessa visão poética do mundo vem das mais diversas fontes. A mais remota delas é seu pai, Fernando Couto. “Ele é poeta e marcou a vida de nossa família como se a poesia fosse um modo de estar no mundo”, conta. De tarde, na época em que frequentava a escola, o pequeno António Emílio Leite Couto – o apelido Mia surgiu da dificuldade de seu irmão mais novo dizer Emílio – acompanhava o pai no trabalho nas ferrovias. Nos galpões da companhia de trem, Mia fazia o dever de casa. Em plena guerra de independência, porém, a preocupação do poeta Fernando era apressar o garoto na realização das tarefas, para que logo pudessem caminhar pelos trilhos em busca de pedrinhas brilhantes.

Dessa forma, Fernando Couto figura na estante imaginária das influências de Mia como um pioneiro na arte da epifania, recurso tão caro ao autor moçambicano. A ele, vieram somar-se mais tarde nomes ilustres como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e Adélia Prado, do Brasil; Fernando Pessoa, Sophia de Mello Breyner e Eugénio de Andrade, portugueses. De sua terra natal, Couto cita o poeta José Craveirinha como seu grande mestre.

Mia encara com naturalidade a questão das fontes inspiradoras em sua obra. “Os escritores criam mundos próprios, únicos, sem possibilidade de comparação. Mas é inevitável aceitar que bebemos uns dos outros. E sou o primeiro a declarar as minhas influências. Aqui o segredo é mesmo multiplicá-las, tornar múltiplas as vozes que ecoam dentro de nós”, declara.

Nesse sentido, dois nomes brasileiros destacam-se como as mais presentes estrelas-guia do trabalho do autor moçambicano, segundo ele próprio. O primeiro é Jorge Amado. Num artigo publicado à época do relançamento da obra do escritor baiano no Brasil, Mia definiu o alcance de Amado não só sobre sua literatura, mas também sobre a de todas as nações de língua portuguesa da África. “Jorge Amado não foi apenas o mais lido dos escritores estrangeiros no nosso território. Ele foi o que mais influenciou a gênese da literatura dos países africanos que falam português. Nas décadas de 1950, 60 e 70, os livros de Jorge cruzaram o Atlântico e causaram um impacto extraordinário em nosso imaginário coletivo”, explica. E arremata: “Jorge não escrevia livros, ele escrevia um país. E não era apenas um autor que nos chegava. Era um Brasil todo inteiro que regressava à África. Havia, pois, uma outra nação que era longínqua, mas não nos era exterior. E nós precisávamos desse Brasil como quem carece de um sonho que nunca antes soubéramos ter”.

Enquanto Amado age como um mensageiro do Brasil em terras africanas, evidenciando um eco entre culturas apartadas por um oceano inteiro, outro escritor brasileiro tem profundo impacto sobre Mia Couto, auxiliando-o a forjar seu estilo e a esboçar os esqueletos de suas narrativas: João Guimarães Rosa. De acordo com o moçambicano, foi “a poesia que vive em sua prosa” o que mais o marcou na literatura do autor de Grande Sertão: Veredas.

As pontes estilísticas entre Guimarães e Couto são evidentes. Ambos subverteram a língua portuguesa, introduzindo neologismos e se apropriando de maneira autêntica do falar do povo em sua prosa. Nas palavras de Eduardo Teixeira, doutor pela Universidade de São Paulo (USP) e estudioso da obra de Couto, ambos demonstram “adesão ao olhar do homem comum”. Com isso, potencializaram o efeito lírico de suas narrativas.

O sertão e a savana

Em sua obra mais célebre, Guimarães escreve que “o sertão é sem lugar”. Para Mia Couto, a África tem “esse mesmo não-lugar, a savana”. Savana ou sertão, tanto faz, é nesse terreno que as obras do brasileiro e do moçambicano encontram suas maiores intersecções. “Nesse espaço, investigamos aquilo que Guimarães também investigou: a produção de mitos que resistem contra uma certa modernização e a imposição de uma racionalidade moderna. Não se trata de escolher o sertão como o lugar da ‘brasilidade’, nem de eleger a savana como o berço da ‘moçambicanidade’. O que importa é o modo como nos produzimos a nós mesmos, enquanto indivíduos e coletividade, ao inventarmos esses lugares.”

Na opinião de Carlos Serrano, professor do Departamento de Antropologia da USP e membro do Centro de Estudos Africanos da instituição, a aproximação entre Guimarães e Couto se dá porque ambos são, antes de tudo, “grandes ouvidores”. Segundo Serrano, que é angolano, isso garantiu não apenas uma afinidade literária, mas também uma conexão cultural entre eles. Em sua visão, a literatura de Guimarães já estava prenhe de referências que aludem à África, e isso possibilitou um intercâmbio imediato com a produção de Couto. “A marca de ambos os autores é a oralidade, muito característica dos africanos”, analisa.

Segundo o próprio Couto, na base dessa afinidade está a religião, mais fortemente que a língua. “Ela é mais que uma instituição formal: é uma religiosidade, um sentimento total do mundo e de si mesmo. Quando visito o Brasil, noto essa comunhão na relação das pessoas com o corpo, com o tempo, com a explicação oculta das coisas. O modo como o cristianismo se casou com crenças africanas adicionou outros condimentos a essa intimidade espiritual. E essa proximidade é ainda mais forte e duradoura que a nossa língua comum”, diz o autor moçambicano.

O paralelo entre os escritores não para por aí. Suas biografias também se entrecruzam. Guimarães, médico de formação, notabilizou-se por singrar os sertões brasileiros em busca de seus personagens essenciais. Enquanto isso, Couto é biólogo e divide a dedicação à literatura com o trabalho de analista de impacto ambiental, cruzando seu país, e em contato constante com os homens simples da sua terra. “Quando estou em trabalho de campo, converso com camponeses, caçadores, pescadores. E isso me alimenta com histórias e, mais que tudo, com um sentido poético que ainda está presente na oralidade dominante nas zonas rurais”, explica Couto.

Numa dessas viagens pelo Moçambique profundo, o escritor se deparou com uma coincidência com ingredientes mágicos que poderiam muito bem fazer parte de um de seus enredos. Durante um dia todo, um caçador foi seu guia pela localidade que ele visitava. Um homem que ele definiu como um velho exótico, habitante de fora do mundo, coberto de colares. Depois de terem andado por horas juntos, Couto sugeriu retribuir a companhia oferecendo um jantar ao caçador. Durante a refeição, o homem revelou ao escritor que era cego.

– Mas nessas caminhadas eu não vi você vacilar em nenhum passo – disse Mia.

– Eu enxergava pelo olhar de um outro, que me atravessou – respondeu o velho.

Não bastasse a carga mística do acontecimento, Couto ficou ainda mais intrigado por outro motivo. Em seu mais novo livro, Antes de Nascer o Mundo, há um personagem que escreve um livro inteiro de próprio punho, apesar de ser cego.

Na opinião de Mia, não há conflito algum entre as atividades de escritor e biólogo. Pelo contrário. “Faziam o mesmo tipo de pergunta a Tchekhov e ele respondia: ‘Não há infidelidade entre literatura e medicina. A amante e a esposa são a mesma e única pessoa’. Para mim, pelo menos, não existe questão. Sou biólogo, e a biologia me traz uma maior proximidade da vida. Sou escritor, e a literatura me confere intimidade com as pessoas. Não há nenhum conflito. Pelo contrário, cada uma dessas ocupações me ajuda a olhar o mundo como um caso de paixão.”

Engajamento

Uma das obras mais importantes de Mia Couto não trata de literatura: ele é coautor do hino de seu país. A composição é uma espécie de retribuição à raiz de todas as narrativas de Couto, que é também a sua própria: Moçambique.

O país está localizado a sudeste do continente africano e é banhado pelo oceano Índico. Tem 22 milhões de habitantes e pouco mais de dez livrarias, a grande maioria na capital, Maputo. Em Beira, segunda maior cidade do país, onde nasceu Couto, há somente uma. Segundo o censo de 1997, apenas 8,8% dos moçambicanos têm como primeira língua o português, idioma oficial do país. De acordo com esse levantamento, as outras línguas mais faladas são o macua, na região de Nampula, no norte; xichangana, em Maputo, no sul; elomwe, em Quelimane, no centro-norte, e cisena, em Beira, no centro.

Essa realidade é emoldurada pelo cenário de devastação deixado por décadas de turbulência política, que marca a imensa maioria dos países africanos no século 20. No começo dos anos 1960 Moçambique iniciou a guerra pela independência contra a metrópole, Portugal. Conquistada a libertação, em 25 de junho de 1975, foi deflagrado um conflito civil, ainda mais sangrento, pelo controle do país. As principais forças nesse embate foram a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) e a Resistência Nacional Moçambicana (Renamo).

Mia Couto foi militante da Frelimo, mas hoje se diz afastado desse tipo de ação – o que não quer dizer que ele tenha aberto mão de outras formas de engajamento. “Associo meu nome a lutas sociais e políticas do meu país e não abdico dessa responsabilidade”, reafirma.

Seu trabalho como biólogo é um exemplo disso. Através do ofício, é testemunha da multiplicação de projetos de desenvolvimento pelo país, que se intensificou após o fim da guerra civil. Da mesma pena que nascem os mágicos relatos sobre os confins moçambicanos, saem as avaliações que determinarão se uma ferrovia, barragem ou linha de transmissão poderá ou não ser implantada nesses mesmos rincões.

A atividade confere à face cientista de Couto um olhar bastante crítico a respeito dos modelos de desenvolvimento reinantes em países pobres e dá um ar de ensaísta ao escritor e poeta. “O que chamamos de globalização é uma espécie de mundialização de um olhar hegemônico. Não vale a pena culpar os globalizadores. Temos de construir alternativas, outros modelos mais apropriados e que nasçam na nossa realidade cultural”, analisa ele.

Fantasia realista

A verve crítica de Couto também se manifesta quando se trata da maneira como a população da África é retratada na mídia. “Africanos também são modernos, usam telefone celular. Claramente, o retrato do modo de vida africano é construído fora do continente”, alfineta.

Ironicamente, é comum a leitura da obra do próprio Couto catalisar esses preconceitos. É o caso dos que consideram seus livros tributários da corrente literária do realismo fantástico.

Apesar de passarem por um processo criativo, necessário à construção do enredo, os personagens de Mia Couto surgem da realidade, vista e vivida pelo autor. Desse modo, do ponto de vista do povo africano, eles são apenas homens e mulheres típicos.

Serrano conta que, na década de 1950, o livro O Bebedor de Vinho de Palmeira, do nigeriano Amos Tutuola, foi considerado, na Europa, o melhor livro fantástico da época. A obra, baseada na mitologia iorubá, conta a história de um homem que viaja à terra dos mortos, onde encontra um reino mágico, habitado por fantasmas, demônios e seres sobrenaturais. “A obra é compreensível a partir de uma outra racionalidade, africana. Para o povo da África, isso não é fantasia”, atesta o professor.

De acordo com Teixeira, essa coexistência entre os mundos da realidade e da magia é possível, pois na África há uma presença ativa dos ancestrais, vivos ou mortos, na vida cotidiana. “Os africanos consultam os antigos para tomar decisões. Isso é visível na obra do escritor”, observa.

Outro traço distintivo de Couto é o uso frequente de neologismos. São raras as páginas de suas obras ficcionais que não tragam criações desse tipo. Descambalhotar, esferográvida, muçulmanias são alguns exemplos.

Para os estudiosos da literatura do autor, a invenção de palavras não tem relação apenas com a produção de efeito poético. Ela é uma forma de resistir à língua do colonizador. “O neologismo é um modo de desrespeitar a língua da metrópole”, analisa Teixeira.

Segundo o acadêmico, essa sutil subversão também está presente na maneira com que o autor lida com ditados e expressões populares. “Ele mantém intactos os provérbios moçambicanos, mas destroça os portugueses”, declara Teixeira.

A própria multiplicação de dissertações, teses e estudos acadêmicos sobre a obra de Mia Couto é uma medida de sua aceitação no Brasil. Frente a todas essas complexas análises, porém, o escritor prefere se concentrar na simplicidade do elemento mais básico de sua literatura: a palavra. “A palavra, quero-a reveladora. Essa revelação faz parte do trabalho poético. Por isso, minha prosa só pode ser entendida nessa aproximação: tudo está nascendo quando escrevo. A narrativa é contemporânea da própria linguagem”, declara.

Colaborou: João Fellet

Revista Problemas Brasileiros

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