quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Entre o sonho e vigília: o tema da amizade na escrita modernista*


Mônica Pimenta Velloso

Pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa e Pesquisadora do CNPq. E-mail: mpvelloso@uol.com.br

Paixão de pensar, paixão de viver

Vou analisar o tema do modernismo brasileiro, escolhendo um foco delicado: as cartas de amizade. A história da intimidade e da vida privada, campo, por excelência, da sensibilidade social, possibilita esse recorte. Na "escrita de si" e na trama das afinidades eletivas, podemos encontrar desdobramentos ainda não discutidos pela historiografia modernista. Mário de Andrade, liderança inconteste no modernismo brasileiro, será contracenado aqui com Prudente de Moraes Netto, personagem praticamente desconhecido dos historiadores, na discussão do modernismo. Desse diálogo, surgem novas indagações e, também, inquietações. Comecemos escutando a voz de Mário; trata-se de um conselho sobre a amizade:

Ame os companheiros de vida mas nunca deixe de por dentro estar observando eles. Faça de todos o seu aprendizado contínuo, não pra espetáculo e pra obter prazeres infamemente pessoais porém pra recriá-los para aproveitá-los em sublimações artísticas, verso ou prosa a vida de você e seu destino.1

Nessas linhas, Mário enfatizava o alcance coletivo da amizade, voltada para o exercício da sociabilidade. Se a compreendia como espaço de expressão de sentimentos, conformando afetos e identidades, alertava para uma abertura que ela possibilitava: sensibilidade para a reflexão artística. Entendia que o afeto pelos companheiros de vida deveria extrapolar o nível restrito das relações pessoais, induzindo ao processo reflexivo.

Mário associava a "paixão de pensar" à "paixão de viver",2 unindo-as pela amizade literária. Eram formas de atuar inspiradas em uma "mentalidade alargada", conforme sugere Hannah Arendt. Possibilitava "treinar a imaginação para visitar os outros, o que significa mover-se em um espaço que era potencialmente público".3

Através das cartas, Mário desenvolve a sua vocação socrática,4 abrindo-se ao diálogo com os seus pares.5 Elas constituem testemunhas vivas dessa atitude, unindo subjetividades e procurando mobilizar energias em torno de um projeto comum. O gesto epistolar é simultaneamente livre e codificado, íntimo e público, secreto e voltado para a sociabilidade. Para o historiador, a questão que se coloca é saber como se dá o problemático equilíbrio entre o eu íntimo e os outros.6

Proponho analisar: como essa escrita que expressa a busca de si, do universo recôndito e privado das emoções e do autoconhecimento desdobra-se em espaço de formulação de indagações coletivas; como a correspondência entre intelectuais modernistas revela alianças e clivagens do campo intelectual; como constroem esses laços entre sujeito amoroso e intelectivo, entre o sonho e a vigília; em que ponto dialogam razão e sensibilidade?

Vou me deter no contexto de 1925-1927, momento esse de reorientação do movimento modernista brasileiro, abrindo-se ao diálogo com a ordem mundial. Numa primeira etapa (1922-24), a prioridade fora a atualização cultural: "acertar o relógio império da literatura nacional", como propunha Oswald de Andrade. A questão muda de foco quando se percebe que o Brasil tem ritmo e temporalidade próprios, sendo necessário inventariar o conjunto das nossas tradições para criar o Estado-nação. A partir daí, a categoria da mediação torna-se indispensável para o ingresso do país na modernidade.7

Mário de Andrade destaca-se não só pela capacidade de elaboração dos temas mediadores (pesquisa da linguagem e da música)8 mas pelo fato de conseguir criar laços intelectuais e afetivos através de uma extensa rede epistolar. É através dessa rede que circulam idéias e se reativam afinidades que dão impulso original ao movimento modernista brasileiro. Cartas são instrumentos de composição de redes, desencadeando trocas, adesões e sociabilidades. Historicamente, sabemos da importância da escrita epistolar, fomentando movimentos intelectuais que mudaram formas de pensamento, de ação e de sensibilidade. Arquivos privados, correspondências e diários íntimos apresentam material riquíssimo de análise, para a pesquisa histórica, ajudando a compor o quadro das sensibilidades e subjetividades de uma época.9

Na modernidade, amizade e sociabilidade passam a compor um par indissociável. A amizade estabelece rede de influências, inventa lugares de convivência, laços de resistência, conseguindo ampliar oportunidades de encontros e de interações sociais, conforme nos lembra Vincent-Buffault.10

Nosso foco será analisar a amizade como fenômeno social que adquire configurações distintas conforme o contexto histórico. Elaborando cuidadosa genealogia histórico-filosófica sobre a amizade, Ortega11 observa maneiras distintas de integrar o componente emocional nas inter-relações. Na França, o conceito de amitié assume, desde o século XVII, caráter emocional, próximo à passion. Na Alemanha, a amizade é concebida como busca de equilíbrio entre razão e sensibilidade, com um componente moral subjacente (o pensamento ético social funcionaria como regulador). A idéia da amizade como virtude retira da relação todo o elemento ameaçador da ordem da emoção. Na Alemanha, a amizade adquire centralidade na vida social, pela ausência de grupos sociais que criassem valores para o conjunto da sociedade. A amizade assumiria papel de organizar as relações sociais.12

O contexto social brasileiro, da década de 1920, tem certas similaridades com o da Alemanha, no século XVIII:13 condição de país de desenvolvimento periférico, fosso entre o Estado e sociedade, ausência de cultura nacional e, sobretudo, o forte senso de missão social dos intelectuais.

É dentro desse quadro que proponho acompanhar a construção das idéias de Mário de Andrade sobre a amizade, tendo em vista um possível diálogo com a vertente filosófica alemã. É sensível, na construção de sua obra, a forte empatia e atenção dispensada à cultura alemã. Mário lia fluentemente a língua, estando atualizado com a sua literatura artística e filosófica. Considerava importante a inspiração dessas obras na tarefa da organização estética da nacionalidade brasileira.

Para entender a amizade na sua historicidade, é fundamental nos reportarmos à inteligibilidade do público e do privado. A reorganização da esfera pública literária, no Brasil, da década de 1920, impacta a situação dos homens de letras, levando-os a repensar seu lugar e identidade na sociedade, valendo-se, freqüentemente, das categorias da "razão" e da "sensibilidade".

A correspondência de Mário de Andrade, particularmente com Prudente de Moraes Netto e Sérgio Buarque de Holanda, mas também com Manuel Bandeira e Carlos Drumond de Andrade, discute questões-chave do pensamento modernista à luz da amizade.

Nessas cartas, encontrei uma espécie de crônica do movimento literário, em que as idéias e percepções fluem pelo "exercício hermenêutico da conversa".14 O estudo dessa fala relacional (só existe em função de uma escuta), coloquial, voltada para a experimentação, e, em particular, da amizade é ainda lacunar no âmbito das ciências sociais e da história.15

Na área da literatura, destaca-se a reflexão de Silviano Santiago16 que, ampliando a leitura dos modernistas sobre o Brasil, além do âmbito das obras literárias canônicas, enfatiza a tarefa interpretativa diária. As cartas constroem essa narrativa que põe em evidência a dimensão social da emoção, fundamental para se abrir novas vias reflexivas sobre o movimento modernista brasileiro.

Considero importante o registro epistolar, na medida em que possibilita revelar outros planos da memória histórica, deixando ver a descontinuidade, a multiplicidade, a simultaneidade e a própria força do instante sobre a duração. Ao enfatizar o caráter manipulador e utilitário da memória, a reflexão historiográfica vem deixando de lado, freqüentemente, os seus vínculos com a emoção e a espontaneidade, que possibilitam acolher e integrar outras percepções sobre a temporalidade histórica.17

É dessa memória, transmitida pela escrita epistolar modernista, que vamos nos ocupar.

Algumas indagações formuladas e discutidas intensamente por Mário de Andrade serão observadas aqui: Por que, para que e para quem se escreve? Prioriza-se a capacidade inventiva ou o senso organizativo do indivíduo? A escrita visa ao deleite ou ao compromisso coletivo? Na discussão sobre a natureza da escrita modernista, se esboçam idéias sobre a forma de pensar a amizade.



Escrita e amizade: impacto das sensações ou trabalho da inteligência?

Nas cartas para Prudente de Moraes Netto, Mário confidencia sensações difíceis durante o processo criativo. São intimidades que só se dizem em tom de conversa. Reclama da fadiga intelectual; o cansaço físico que não acompanha a efervescência das idéias:

A mão é que se recusa a escrever. O corpo não quer sentar na cadeira diante da escrivaninha. Os olhos não querem ver a folha de papel. O pensamento, esse anda numa mapiagem desembestada tagarelando que nem fábrica ao meio dia. É engraçado mas justamente quando maior é a fadiga maior parece que é o trabalho da inteligência.18

A escrita é trabalho da inteligência, missão árdua da qual Mário se acha incumbido. É a partir desse papel que traça um esboço do campo intelectual, emitindo opiniões sobre as naturezas diversas da escrita modernista.

Em carta a Prudente, em 3/10/1925, observa que alguns intelectuais são intimistas, inspirando-se mais nas sensações. Menciona poesias de Manuel Bandeira, Ribeiro Couto e alguns textos de sua autoria. Em Ronald de Carvalho e Guilherme de Almeida, percebe outra escrita, refletindo naturezas construídas e complexas, propiciando um "equilíbrio entre as faculdades líricas e construtivas".19

O que está em questão é o papel da moderna escrita brasileira. Mário defendia o caráter intencional e reflexivo da obra-de-arte, discordando de Prudente. Esse, com Sérgio Buarque de Holanda, defendia a necessidade de expandir o experimento no campo artístico, priorizando o impacto das sensações. Enfatizava a pesquisa de nova linguagem que integrasse livremente ao texto palavras, imagens e sensações tendo como móvel inspirador a própria força das sensações.20

Mário, sem desqualificar as sensações, conferia centralidade ao processo intelectivo, buscando daí extrair a síntese construtiva. Por isso, interpelava o amigo:

Convido você a meditar muito nisso. Tem sido uma das preocupações grandes de minha vida. A "intenção do poema" constrói muito o poema fechado, o poema circunferência, o poema que tem começo, meio e fim. É mais arte que esse sensacionismo verdadeiramente primitivístico como essência em que toda a gente modernista caiu mais ou menos. Principalmente os cuja criação vai de dentro pra fora, intimistas, os que se preocupam mais com as sensações do que com as causas da sensação.21

Para defender a necessidade de uma arte crítica, reflexiva e intencional, Mário enfatizava a juventude de Prudente, fazendo-o ver que seu papel no campo intelectual era outro, marcado pela responsabilidade social. Apresentava-se como intelectual que entendia a arte como educação, defendendo uma "arte ação".

Era enfático: "não faço arte, ensino". Mas criticava a arte transmitida em tom professoral, como experiência encerrada em si mesma; já no "Prefácio interessantíssimo": "Em arte: escola = imbecilidade de muitos para vaidade de poucos".

Assumindo o papel de comentador da obra-de-arte, Mário destacava o processo de criação e os pressupostos teóricos e críticos da produção artística, identificando-se com as idéias do construtivismo.22

Mais tarde, em carta a Prudente, em 12/10/1929, apresentava uma radiografia íntima da sua obra: messiânica (Prefácio, Paulicea e Escrava) e de evasão (Macunaíma). Orgulhava-se da primeira, fruto da arte-ação, do pragmatismo e da intencionalidade. Confessava que a obra de evasão é a que lhe dava prazer artístico, a que mais gostava. No entanto, considerava que esse gosto não tinha o mínimo valor crítico.23

Essa cisão entre sensações e inteligência crítica, entre o transitório e a "possibilidade de ficar" marca, fortemente, o pensamento de Mário: não só em relação à sua concepção da obra-de-arte como da amizade.



Nacionalismo como "ato de amor"

Nas cartas de Mário trava-se árduo diálogo entre o impulso dos sentimentos e o movimento da razão ordenadora; a percepção da amizade entra aí elegendo, forjando e organizando as linhas do debate. A idéia de que entre amigos "tudo deve ser dito" funciona como desafio e mote inspirador.

Expondo a Prudente sua percepção do nacionalismo, Mário deixa claro o seu forte envolvimento afetivo. Compreende o nacionalismo e o projeto de realização de uma "língua brasileira" (distinta do português de Portugal) como uma "manifestação de amor". Não hesita em expressá-lo na primeira pessoa:

(...) este meu nacionalismo não pensem que é chauvinismo e muito menos regionalismo. É amor humano e único meio de nós brasileiros nos universalizarmos. Porque a maneira como um povo se universaliza é quando concorre com o seu contingente particular e inconfundível.24

Ao expor suas idéias sobre o nacionalismo, pluraliza o interlocutor. A presença de Sérgio Buarque está quase sempre implícita nas cartas que escreve a Prudente. Nessa carta, confessa que a criação de uma "língua culta brasileira" o assusta. Sente-se sacrificado, tendo que abandonar experiências em curso para empreender a busca solitária. Os amigos tornam-se referência necessária, quase uma forma de sobrevida. Mário se expõe e se fragiliza:

Para vocês ao menos que são os meus amigos peço uma coisa: não julguem já do que poderei fazer. Isso é começo. Sou que nem criancinha que está principiando a escrever. Não tenho estilo. Balbucio. Me exprimo mal. Levei vinte anos para adquirir um estilo em português. Quantos levarei para ter um estilo em brasileiro? Não sei. Mas comecei e não hei de parar.25

Mário compartilha os riscos de uma verdadeira aventura: a criação da língua brasileira. Na proposta de elaboração desse projeto, sente-se o deslizamento entre a perspectiva do sonho e da vigília. Confidencia o sentimento de incerteza frente ao sonho. Sonho, pois a língua brasileira ainda não se materializou, pertencendo, portanto, ao domínio do inefável e das sombras. Confessa em tom assustado: "estou num país novo e na escureza completa duma noite".26

Ao mesmo tempo, Mário enfatiza sua atenção vigilante, em relação ao tempo presente. Diz a Drumond não temer, pois a experiência histórica estaria ao seu lado: a "aventura em que me meti é coisa séria, já muito pensada e repensada".27

Cercando-se da cumplicidade amiga, Mário sentia-se encorajado para investir energias na tarefa intelectual.

As cartas desnudam a dimensão das emoções - dificuldades, receios e desafios enfrentados pelos intelectuais - num momento em que se impunha a exposição na esfera pública.

Na França, na virada do século XVIII para o XIX, essa exposição pública aguçou o sentimento de pertencimento do grupo, estreitando-se os laços de amizade. Contradições, acomodações, fragilidade de posições, choque de individualidades revelavam a relativa flutuação dos códigos de valores. Ligações sociais tradicionais e regras de comportamento implícitas tenderam, cada vez mais, a serem preenchidas pelo intimismo. É nesse momento que se impõe a formulação de um código intimista.28

Em linhas gerais, esse é o quadro que ambienta a sociedade brasileira nas primeiras décadas do século XX. A reorganização da esfera pública literária, a busca de autonomia estética, a emergência de novas fórmulas de civilidade, a publicidade do privado e a "exposição do íntimo" compõem esse novo panorama. O pacto amistoso e epistolar funcionam aí como poderosos instrumentos aglutinadores da identidade social do grupo, garantindo-lhes sentido.

Mário é um dos grandes maestros orquestrando essa sintonia. Através das cartas é possível acompanhar a invenção de um "código íntimo" que vai abrindo espaço para a emergência de uma nova sensibilidade. Nela, o indivíduo e a ordem subjetiva assumirão claramente o centro da cena social. A instauração dessa nova ordem, no entanto, é complexa e ambígua. Suscita conflitos íntimos, ocasionando jogos de alianças, dramatizações e encenações de toda ordem.



"Razões de você"

Um ponto recorrente em cartas de Mário é a recusa ao "elogio de camaradagem". Dizer a verdade significa franqueza, sinceridade. Aqui ficam claras as injunções do fenômeno social da amizade sobre a própria idéia de verdade. Se antes a verdade era algo que se submetia à prova científica ou jurídica, agora, na cultura da modernidade, passa a ser subjetivada, transformando-se em sentimento.29

Mas sentimento diferente, que não deve ser confundido com a pura emoção, no sentido de passion. Uma carta a Prudente, em que a discussão envereda para o surrealismo, traz pontos importantes para essa reflexão.30 Nessa carta, Mário expõe a Prudente a sua percepção sobre o surrealismo. Considerava que a faculdade crítica deveria predominar como instância básica de valor; quando feita em tom severo é um "ato de amor".31 O sentimento da amizade não deveria, jamais, encobrir o espírito crítico.

Na conversa epistolar com Prudente, vou me deter em uma categoria central da argumentação de Mário: a "aventura", justamente o título do ensaio que Prudente escrevera para a revista Verde (set.1927-jan. 1928). Na crítica que faz ao texto de Prudente, é visível o seu esforço para situar a questão ao nível da nacionalidade, desvinculando-a do terreno estritamente pessoal. Entende que a aventura, uma das bases inspiradores da escrita surrealista, não contribui para a discussão: é expressão de tédio, falta de ação, traduzindo atitude de acomodação frente à vida.

Mário está interessado na busca da singularidade do processo civilizatório, propondo, enfaticamente, "abrasileirar o Brasil". Considerava que o Brasil, na condição de país novo, precisava criar; e a "aventura" não era o caminho indicado. Daí as restrições feitas aos experimentos no campo da linguagem artística que só se legitimavam como expressão das civilizações fatigadas que já teriam acumulado "séculos de tradição organizada". No Brasil, a necessidade da organização estética importa mais do que o experimento das sensações. Em função dessas idéias, Mário faz crítica severa à posição do amigo. Prudente se ressente, Mário retruca: "Não foi conselho porque não aconselho nunca, aviso. Avisei para você refletir bem. Mais nada".

Aos amigos não se aconselha, chama-se à razão. Adiante, em tom mais intimista, Mário retoma a categoria da "aventura", relacionando-a com o contexto político cultural brasileiro. Mostra-se compreensivo:

O que acho é que num instante você sarapantado com a ingência dos problemas que realmente existem pros que se meteram na nossa aventura, os braços de você caíram no chão sem vontade de trabalhar mais (...). Essa queda de braços, irmãozinho, eu também tenho muito sentido. Depois, que eu hei de fazer? sou mesmo um sujeito desgraçado de feliz, dou risada de mim, atarracho os braços no lugar e vou para adiante. Cada livro é uma aventura nova! Cada livro uma insatisfação nova! Cada livro é um é momento que fica já tão lá para trás!... não faz mal que fique pra trás porque uma coisa só existe na minha obra que me orgulha verdadeiramente: a lógica necessária que ela tem pra comigo em relação à tudo o que é vida minha: meu momento, meu lugar, meu amor.32

O projeto da "Arte-ação" é o horizonte da obra epistolar mario andradina. Pela linguagem do afeto mobiliza o grupo em torno de um projeto estético coletivo. Nessa interlocução, a amizade adquire clara função social: assegurar as mediações e alianças necessárias à implementação do projeto.

Com as cartas, busca-se diminuir os conflitos, possibilitando a abertura para um diálogo que se propõe franco, mesmo com o risco de ferir suscetibilidades. Razão e sensibilidade podem ser complementares. O sujeito não desaparece ao reconhecer que ele pode ser o autor da razão e que essa é, necessariamente, múltipla e controversa.

Mesmo discordando de Prudente, Mário consegue reconhecer a sua posição: são as "razões de você" que asseguram o direito à divergência.33 A multiplicidade e a fragmentação de eus comparecem nessa articulação do intimismo na cena pública: "Sou trezentos, sou trezentos e cinqüenta", declara Mário.

A personalidade do amigo é posta entre parêntesis. Não se tematiza o ser especial do amigo, mas o "ser amigo" em geral. Através da razão, a personalidade concreta é separada da vida individual e subjetiva e incorporada à totalidade e à sociedade. Esse é o tom que prepondera na correspondência dos românticos alemães.34

Se a emoção conta na amizade, adquire, aí, um lugar bem delimitado.



A necessária dramatização dos afetos

No campo intelectual, há momentos em que se configura, com nitidez, o jogo de alianças e afetos investidos na luta pelo poder simbólico. Em novembro de 1925,35 Mário e Prudente de Moraes são convidados por Viriato Correa, diretor do jornal A Noite, para organizarem a sessão "Mês Modernista", publicada, ao longo de dezembro, com a colaboração diária de autores modernistas.

Entre convite, implementação e finalização do projeto revelam-se vivas articulações entre os modernistas. Aparentemente, o detonador dessa movimentação decorre da posição ideológica de Viriato Correa, que enfatizava a associação entre o movimento modernista brasileiro e o futurismo. Essa visão estava longe de ser consenso. Vários intelectuais convidados a escrever discordavam, considerando tal posição conservadora.

Entre novembro e dezembro de 1925, Mário troca ininterruptamente cartas com Prudente (Prú) Manuel Bandeira (Manú) e Carlos Drumond de Andrade a propósito do "Mes Modernista": sondavam opiniões, procuravam convencer, solidarizavam-se, brincavam, trocavam carinhos e xingamentos. Exercitava-se, enfim, a expressão mútua dos sentimentos, buscando organizá-las para a ação.

Uma idéia importante destaca-se aí: a urgência de se ocupar o espaço público.

Mário vislumbrava no convite do jornal A Noite uma oportunidade. Procurava convencer os amigos sobre a importância de se ocupar esse espaço para divulgar uma "nova concepção artística". Isso devia mantê-los unidos, argumentava.

Na dinâmica da correspondência, destaca-se a multiplicidade de olhares cruzados e o jogo de suas refrações incidem sobre a identidade daquele que os soube captar, conforme mostra Diaz.36 Mário investia na escrita íntima. Percebia os vínculos de amizade como importante conduto, forjando laços e alianças no campo intelectual.

A carta que escreve a Manuel Bandeira, em 12/12/1925, em resposta a indagações deste sobre os fundamentos da amizade que os unia, é significativa. O tema da amizade é tratado ali sem subterfúgios. Bandeira manifestava incômodo com a "amizade de cartas", considerando-a incapaz de sustentar-se no cotidiano.

Em termos da dinâmica social, a carta apresenta-se como a "arte de conversar entre ausentes".37 Substituindo práticas de oralidade, possibilitava fazer da escrita um prolongamento da fala, em que se escutava a voz do remetente, determinada pela vontade de se colocar em pensamento na presença do outro. Mário buscava "visitar o outro em pensamento", argumentando não ser necessário a presença física.

Mas os correspondentes ressentiam-se do convívio. Na década de 1980, Carlos Drumond de Andrade, ao abrir a sua correspondência ao público, confessara que "paradoxalmente jamais convivera com Mário a não ser através das cartas", nem mesmo, depois que viera a residir no Rio de Janeiro, em 1938, não se encontravam para conversar.38

Manuel Bandeira fazia a mesma queixa. Dizia-se sentir pouco à vontade com Mário, sempre com atitudes de cerimônia. Para quebrar essa frieza, numa de suas cartas, provocava: "Mário da minha admiração, vá à merda! Não tenho que dar satisfação dos meus sentimentos (...)".39

Na resposta, Mário aceitava e até reforçava a intimidade, liberada pelo uso do palavrão: "Manú do coração, fui à merda como você me mandou porém fui, xingando Manú tá besta! todo o tempo".40

Relacionando a elaboração de um "código íntimo" ao processo de desformalização da sociedade, Vincent-Buffault41 observa a importância de que se revestiam as idéias de verdade e de autenticidade associadas à criação de uma linguagem ágil, inventiva, abandonando-se o uso das palavras elevadas.

Na carta a Manuel Bandeira, Mário faz uma digressão sobre a amizade, buscando convencê-lo do quanto eram amigos. Ser amigo é apreciar com inteligência, senso crítico e independência de coração. Se no primeiro momento o que conta na amizade é o impacto da sensação (sentir orgulho e admiração pela obra do amigo), essa sensação, logo em seguida, deve ser sucedida pela necessidade da reflexão sobre a "inteligência do sujeito e o valor da sua sensibilidade".42

Essas idéias sobre a amizade são reveladoras. São elas que, a meu ver, vão balizar o próprio pensamento de Mário de Andrade sobre a moderna arte brasileira. Ao impacto da emoção e das sensações deve seguir a atitude de observação e capacidade de senso crítico, visando sempre à construção reflexiva. A paixão de viver se desdobra em paixão de pensar. É por isso que Mário considera Manuel Bandeira o seu melhor amigo e melhor crítico intelectual Sentimentos não são incompatíveis com o juízo crítico: "Repare no carinho infinito, atenção paterna com que você quer que as minhas coisas (escritas literárias) fiquem excelentes".43

As cartas modernistas revelam como o universo privado faz, pacientemente, a costura interna das relações sociais, assegurando lugares, priorizando temáticas de discussão e, sobretudo, marcando espaços de intervenção na dinâmica social. Ainda nas cartas em que discutem a participação do grupo no jornal A Noite, Manuel Bandeira levanta, em tom de mofa, a questão: "Não vão apresentar a gente como bicho ensinado, não? Esse Viriato detesta modernismos, incluindo na rubrica futurismo até a ausência de rimas. Não farão sacanagem?44

Essa questão rende algumas cartas. Bandeira propõe superar o mal-estar, revertendo a situação. Sugere, provocativamente, que os modernistas se apresentem como animais amestrados, parodiando os elefantes de "Circo Sarrasani". Pondera que seria uma forma "de mostrar que a gente não cai na esparrela...".

Manuel Bandeira desiste da idéia de escrever sobre o "elefante-artista", sugerindo que Mário faça esse papel. Condição: Mário deveria apresentar-se como o intelectual sério, assumindo a aventura do empreendimento de A noite. Mais uma vez recorre à linguagem circense: "Mário deve dar o salto do trapézio, ser o turco malabarista que sustenta nos ombros os outros atletas".45

Mário aceita a provocação do amigo e escreve Monólogo dum elefante do Circo Sarrasani. Mas reage, fortemente, ao papel de "escritor sério". Irritado, reclama que a posição dos amigos é muito cômoda, pois "poderiam pagodear à vontade", estando "mantidos pela artilharia de proteção" garantida por ele. Também quer pagodear, se fazer de "poetinha menor". É um direito de exercer a escrita, sem ter que obedecer às expectativas sociais.

Esse ponto é importante. Revelam-se tensões que Mário de Andrade se impunha, visando o projeto estético, conflito esse que marca toda a sua trajetória intelectual, cindida entre a atração da fruição estética e a exigência da vida ética e política.46

Por isso, nas cartas, freqüentemente, irrita-se com a cobrança dos amigos. Mas dramatiza, com senso de humor e ironia, o papel do homem de letras, representado no elefante do Circo. Faz escrita catártica, trabalhando a dessacralização da figura do intelectual, ao trazê-lo, abruptamente, para o cenário público.

Numa alusão ao texto de Baudelaire: o despojamento da aura artística ocorre não mais no viaduto do tumultuado cenário parisiense, mas no picadeiro de um circo.

Explorando essa metáfora, Mário descreve os intelectuais passadistas e os modernos:

(...) eu e meus companheiros de coleção somos um pouco diferentes dos elefantes que os outros circos têm passado por ai. Sobretudo não mostramos aquele ar de sujeição, de tristura e miséria dessa elefantada porcaria que os circos mambembes possuem. São bichos macambúzios jururus, sujos e mais menores. Nós somos grandões, somos lépidos e embora estilizadamente, inda conservamos dos instintos primitivos a bruteza do abacaxi e fresquinha da nossa selvageria. Mas somos ensinados também (...).

Em seguida, apresenta, de forma hilária, a sua própria autocaricatura:

(...) me ensinaram coisas meio exquises, que nem falam dos franceses, me ensinaram música, alemão, estética, psicologia, métrica bizantina, simultaneidade, verso livre, me botaram esses oculões por cima do nariz, me chamaram Mário de Andrade e agora me pagam 50 bagarotes para eu vir quatro vezes nesta cidade fazer salto de meia-coluna pros espectadores de A Noite. Pois faço, que tem?47

Nessa auto-representação são focadas questões fundamentais: a exposição forçada do intelectual na esfera pública (apresentada através da imagem do elefante em exibição), a dupla vinculação cultural (instintos primitivos e exquises ensinadas), o perfil do intelectual moderno (grandão e lépido) e, conseqüentemente, o processo de sua própria profissionalização (pagamento pela matéria publicada no jornal).

Na sua contribuição ao jornal, Prudente de Moraes Netto também recorre ao tom humorístico. Em "Historinha do Brasil – Diário de um tupiniquim",48 tematiza a descoberta do Brasil, protagonizada por um índio. Trata-se de uma paródia à carta de Pero Vaz de Caminha, documento fundador da história do Brasil. Desconstruindo a historiografia oficial, que consagrava a teoria do "acaso da descoberta" e as supostas benesses da colonização portuguesa, o autor declara:

23/4/1500 - O Brasil é um país achado. Desde ontem, quarta, de tarde, que eu desconfiava. Quando eu estava pensamenteando na praia à hora do crepúsculo bem me pareceu que tinha navios ancorados à distância. Hoje os navios se achegaram e mandaram emissários à terra. São portugueses. Eu preferia os ingleses, povo mais organizado e esportivo. (....) Os portugueses são de pano e sentimentais. (....)

As narrativas de Mário e de Prudente se tocam: ambas são arremedos de "escritas de si" (Monólogo de um elefante e Diário do Tupiniquim) que tematizam a brasilidade, com humor e teatralidade. Historicizando a amizade, Vincent-Buffault nos mostra como um dos seus traços característicos, durante a fase do iluminismo, o recurso à teatralização. Essa teatralização decorre da própria complexidade da relação: ambivalência dos sentimentos entre solidão e amizade, social e insocial, íntimo e humanitário, reconhecimento e segredo.49

Nas cartas dos modernistas brasileiros, é forte a carga da teatralização. O episódio do jornal A Noite revela negociações sutis, envolvendo dias de conversas que resultaram em reforço de egos, invenção de apelidos, troca de palavrões, pactos de cumplicidade e as mais variadas performances. Ao fim, o grupo consegue marcar espaço na arena pública.

Essa dramatização de afetos funciona como verdadeiro ritual de trocas na amizade. Considero que toda essa gama de sentimentos configura mais do que a expressão espontânea de emoções individuais, traduzindo investimentos de caráter coletivo que redundaram na articulação e posicionamento do grupo. Revela-se aí o fenômeno social da amizade.

Enfatizando o caráter construído da cultura, Marcel Mauss50 argumenta que, na vida em sociedade, tudo é, ao mesmo tempo, social e obrigatório, encenado e expressão espontânea, sincera, franca.51 A expressão de sentimentos e de emoções, nos lembra Mauss, se dá através da linguagem, que é eminentemente simbólica e coletiva.

Nas cartas modernistas, essa simbolização de afetos favoreceu a articulação interna do grupo, possibilitando empreendimentos conjuntos.

Encorajando os jovens amigos à empreitada intelectual, Mário os convencia a integrar o sentimento da impermanência como parte da experiência humana. Esse é o tom de uma carta que escreve a Carlos Drumond. Parabenizando-o pela criação, em Minas Gerais, de A Revista (jul 1925/jan.1926), comenta: "Achei esplêndida a idéia de vocês fundarem uma revista aí. Isso de morrer não tem importância, o importante é viver um pouco agitando e encantando a vida".

Firmando o instante vivido, as cartas traduzem o "exercício hermenêutico da conversa" que vai construindo o caráter mutante do modernismo. Em carta a Prudente, Mário observava:

(...) quando vocês dizem que o modernismo é um estado de espírito e não uma escola, uma orientação estética, acho que descobriram a pólvora. Está certo. E agora é que a gente pode perceber bem porque muito modernismo é passadista e muito passadismo é moderno. Hei de me aproveitar da frase de vocês quando puder.52

No fluxo inexorável do tempo, é necessário materializar a energia criadora através dos conceitos e das obras literárias, mesmo sabendo-os transitórios. Essa seria uma das preocupações centrais nessa escrita compartilhada com os amigos.



O difícil equilíbrio – algumas notas de conclusão

Entre 1925-27, quando está em curso o processo de reorganização de uma esfera pública literária, Mário de Andrade apresenta-se como um dos mais sofisticados e conscienciosos elaboradores de um "código da intimidade". Na sua escrita, dedica-se a refletir sobre a sensível defasagem entre o universo público e a interioridade.

É unindo, poeticamente, a arte de viver à de pensar, que, nas cartas, consegue redimensionar a amizade como fenômeno social e forma de intervenção na nacionalidade. A amizade não é apenas um sentimento de ordem subjetiva, mas, sobretudo, trabalho da inteligência. Não apenas prazer pessoal, mas aprendizado em direção ao coletivo.

Falando sobre a influência de Mário de Andrade em sua vida, Prudente de Moraes afirmara que "mesmo nas cartas sinto que o Autor influiu mais do que o amigo".53 Carlos Drumond de Andrade e Manuel Bandeira compartilham o mesmo ponto-de-vista ao se queixarem da falta de um convívio mais próximo.

Na sua concepção de amizade e, também, na forma de vivenciá-la, Mário privilegiou, claramente, o papel organizador da vida social, estabelecendo limites à intimidade. O artista tem como destino o exercício da mediação no processo de nacionalização da arte e da cultura.

Mário buscou construir novos sentidos a temas como verdade, solidão, amor e aventura, articulando-os ao núcleo duro do domínio público.

A correspondência modernista, principalmente na década de 1920, revela o difícil exercício de equilíbrio entre razão e sensibilidade. Para Mário, sem dúvida, essa questão se constituiu em um dos fundamentos do seu projeto estético e da sua percepção sobre a amizade.

A linguagem ocupa lugar central nessa discussão. Ela se apresenta como a mediação estratégica para o Brasil apresentar-se no contexto internacional. A discussão entre Mário de Andrade e o seu jovem amigo Prudente de Moraes se insere nesse contexto. Revelam-se aí duas percepções da nacionalidade, oriundas de distintas linguagens: a experimental (inspirada no inconsciente, no domínio dos sonhos) e a construtivista (ancorada na razão crítico-reflexiva e na busca de síntese).

Mário, sensível à dimensão do sonho, firma pacto com a vigília, considerando-a verdadeira missão social.

É nesse cenário que podemos ver o poeta tentando orquestrar a complexa sintonia entre razão e sentimento: "É o que conforta e enrija, esses olhares de deus que a amizade põe na vida da gente".

* Este texto foi apresentado na "III Jornée d'Histoire des sensibilitées – Histoires singuliéres et sensibilitées", realizado na EHESS, em Paris, março de 2006. Devo a Marcos Guedes Veneu a leitura cuidadosa deste texto.
1 Carta a Carlos Drumond de Andrade, 10/3/1926.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-77042009000100011&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

Revista Tempo - UFF

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