An America unknown
Susani Silveira Lemos França
Professora Doutora - Departamento de História - Faculdade de História, Direito e Serviço Social - UNESP - 14409-160 - Franca - SP - Brasil. E-mail: susanilemos@uol.com.br
Susani Silveira Lemos França
Professora Doutora - Departamento de História - Faculdade de História, Direito e Serviço Social - UNESP - 14409-160 - Franca - SP - Brasil. E-mail: susanilemos@uol.com.br
RESUMO
Se os cronistas espanhóis inventaram paulatinamente o que viria a ser a América, como O' Gorman propôs, os cronistas portugueses da primeira metade do século XVI foram bem mais cautelosos na construção de uma identidade para os territórios do ultramar visitados por Colombo e por Cabral. Esses cronistas quinhentistas, com os olhos na Ásia, só tardiamente deixaram de pensar esse "quase um outro mundo" como lugar de passagem para pensá-lo como lugar de parada. Embora distanciando-se do tom de espanto que marca cartas e relatos utilizados como fontes e revelando uma preocupação em atribuir um lugar específico para a viagem de Cabral na construção da história portuguesa, as peripécias dos navegadores sobressaem às peculiaridades das terras e gentes que viriam futuramente a merecer dos seus congêneres uma atenção especial. Neste ensaio, o alvo visado é o lugar, na cronística portuguesa quinhentista, conferido a esses territórios de pouco prestígio, melhor, o lugar que lhe é concedido na memória portuguesa desses primeiros tempos.
Palavras-chave: Cronistas; Expansão portuguesa; Século XVI.
ABSTRACT
If we consider that the Spanish chroniclers had gradually invented what eventually became America, as O'Gorman proposed, the Portuguese chroniclers of the first half of the 16th century were even more cautious in building an identity for the overseas territories visited by Columbus and Cabral. These sixteenth century chroniclers, focusing on Asia, only later ceased to think of this "almost other world" as a place of passage, to think of it as a place to stop. Disregarding the surprised tone of the letters and reports used as sources, and showing concern in giving Cabral's travels a specific place in the construction of Portuguese history, the explorers' adventures highlight the peculiarities of the lands and peoples that would later come to deserve special attention from their congeners. It is the place that the Portuguese sixteenth century chronicler has given to these territories, and the place that was fixed in the memory of the 16th century Portuguese, which are the aspects covered in this text.
Keywords: Chroniclers; Portuguese discoveries; 16th century.
Não foram poucos os historiadores que indagaram os relatos dos viajantes europeus em busca de destacar os elementos principais que compuseram a imagem que esses, e seus leitores, forjaram da América e de seus habitantes. Por trás dessa interrogação, estava a vontade ora de desmontar a relação entre os fatos observados e sua interpretação1, ora de levantar os referentes culturais que participaram na sua construção do mundo do ultramar2, ora de traçar o perfil daqueles que fizeram deslocamentos concretos ou registraram a experiência de outros3, ora, ainda, para ficarmos nuns poucos exemplos, de mapear os tópicos e as especificidades da imagem que estes forjaram dos lugares e gentes da América4.
Quando, porém, a interrogação parte para um gênero que se alimentou dessas narrativas para pensar esses mesmos lugares, a história-crônica, o jogo entre o passado narrado e o presente dos cronistas5,aos quais foi encomendada a tarefa de fixar um certo passado, bem como as implicações das mediações que utilizaram, demanda que se interrogue não apenas de onde falam, mas também onde se enquadra o seu discurso no longo processo de tomada de conhecimento da América pelos europeus. Na obra dos cronistas portugueses do início do século XVI, ou seja, daqueles que escreveram quando ainda eram recentes as grandes descobertas, já é possível perceber, diferentemente da obra de Zurara, escrita no século anterior, uma perspectivação de conjunto, uma visão global6 dos feitos e efeitos expansionistas, ainda que desprovida de adiantamentos sobre o significado cultural do alargamento do mundo7. Phillipe Bonnichon, a esse propósito, em Des Cannibales aux Castors. Les découvertes françaises de l'Amérique (1503-1788), considera que, embora tenham sido os ibéricos os primeiros a pisar a América, os descobrimentos só se cumprem culturalmente quando retornam à Europa. Em suas palavras, a descoberta prolonga-se para muito além do primeiro golpe, prolonga-se no espaço e na duração, porque demanda ida e vinda, feito e publicidade; demanda, em suma, que as novidades encontradas retornem às nações conquistadoras e suas vizinhas e irmãs8.
Levando em conta a importância desse retorno, interessa aqui menos pensar as conhecidas fases da concretização da expansão, como fixaram, entre outros, Pierre Chaunu9, Fréderic Mauro10 e Oliveira Marques11 - fases que contemplam desde a expansão interna européia até a externa, ou apenas à expansão portuguesa -, e mais refletir sobre as voltas tortuosas da expansão da notícia sobre os descobrimentos, nomeadamente do descobrimento da América. A pergunta específica, pois, a ser respondida nos limites deste ensaio é: como e onde se enquadra o pensamento dos cronistas portugueses que escreveram quando eram recentes as grandes viagens ultramarinas e as grandes descobertas? Questão cuja relevância está ligada ao fato de que, se a descoberta não é apenas espacial ou geográfica mas principalmente histórico-cultural, importa saber o papel que esses cronistas, da nacionalidade daqueles que desencadearam com suas viagens um processo que integraria todo o globo terrestre, tiveram na construção histórica do descobrimento da América. E tal questão emerge quando se leva em conta que, se não é questionável a anterioridade da chegada dos portugueses ao Brasil - ou dos espanhóis às Antilhas, mesmo que não sejam negligenciados possíveis antecedentes de Colombo e de Cabral12 -, não teria sido tão impactante o papel dos portugueses, ao menos dos cronistas, no processo continuado de invenção e divulgação dos lugares encontrados.
Acerca do saber histórico desta primeira metade do século XVI, vale lembrar, de saída, que, no caso de Portugal, embora esse se desloque do compromisso direto com a legitimação da dinastia de Avis13 ou com a formação de reis e nobres para a expansão ultramarina, o empenho em pintar um passado honroso indica o peso da herança ciceroniana, que propunha fazer da escrita do passado "testemunha dos tempos", "luz da verdade" e instrutora dos tempos vindouros. Cícero entendia a história como "mestra da vida" e esse seu caráter edificante justificava as imortalizações que empreendia. Nesse sentido, a história devia constituir-se num repertório de exemplos políticos e morais, pois era a "verdade ética" que deveria estar na mira do historiador14. Idéia que se encontra na base da leitura de S. Agostinho, especialmente no que diz respeito à moralização da memória e ao entendimento dela como uma parte da "virtude da prudência", considerada pelos medievais, e ainda persistente no século XVI, como uma das virtudes maiores, ao lado da coragem, da justiça e da temperança15. João de Barros, nas suas décadas da Ásia, define a história nos seguintes termos:
[...] a historia he hum ágro & cãpo onde está semeada toda a doctrina, diuinal, moral, racional & jnstrumental: quem pastar o seu fructo, cõuertello há em forças de jntendimento & memoria, pera vso de justa & perfecta vida, cõ que apraz a Deus & aos homes.16
Caráter pedagógico igualmente corroborado por Castanheda, que destaca o louvável costume dos reis do Egito de:
terem cada dia lição das historias: não soomente de seus antecessores: mas doutros reys estrangeiros, pera que delas tomassem doctrina de como auião de gouernar seus reynos na paz, & na guerra. Costume de grande louuor, & muyto digno de ser notado: & que os reys & principes ainda agora auião de goardar, porque os que gouernão bem, ho farião de cadauez melhor, & os que mal, se enmendarião (pois nas historias se achão os melhores exemplos que podem ser pera qualquer estado de vida) & por isso deuião eles de ter cada dia lição delas, principalmente das de seus antecessores...17
Mas a atualização dessa herança, no início do século XVI, é conduzida pela expansão ultramarina: seus alvos, sua importância, suas configurações e vicissitudes, o desempenho dos homens que a empreenderam e, ainda abreviadamente, a apresentação e o mapeamento dos lugares e gentes do ultramar visitado. Desse modo, se as bases da história que elaboraram os cronistas do século XV tinham sido as histórias de outros historiadores, os documentos oficiais, os testemunhos dos grandes homens que viveram os acontecimentos narrados e, em casos mais raros, a própria observação direta18, os cronistas dos descobrimentos tiveram de alimentar-se sobretudo das narrativas de viagens. De onde a familiaridade entre os dois gêneros, pois, apesar de toda a produção escrita medieval ser caracterizada pelo compromisso de verdade assumido pelos autores dos mais diferentes gêneros, os relatos de viagem e as crônicas mais diretamente conjugam a preocupação de veracidade e de testemunho19. As crônicas, por sua função de preservação, dão ênfase à sua intenção de permitir que se alcançasse o conhecimento da verdade; como afirma o referido Castanheda: "se me eu detiue vinte tantos annos em escreuer esta historia, foy porque a fizese como auia de ser, principalm½te na verdade." Do mesmo modo, nos relatos, aparecem passagens onde o compromisso de veracidade é igualmente declarado, como no relato iniciado em 1505, Esmeraldo de Situs Orbis, em que o cosmógrafo português Duarte Pacheco Pereira declara a D. Manuel que "todas essas cousas, sereníssimo Príncipe, são verdade [...]."20
Já no que diz respeito à função testemunhal comum aos dois conjuntos discursivos, embora no século XVI os cronistas apelem a ela de forma mais ostensiva21, graças ao peso crescente que o conhecimento por experiência começa a ganhar na afirmação da verdade22, não se pode dizer que ela ganhe o mesmo peso que nos relatos dos viajantes na autenticação da verdade, dado que o recurso a fontes consideradas legítimas, a outras histórias, aos testemunhos de terceiros e às autoridades desempenha igual valor na fixação da verdade. Nos relatos, conquanto a mesma busca da realidade notável nas crônicas caracterize a preocupação de veracidade23, a unidade do mundo que o viajante procura restituir é fundada explicitamente na empiria, e não tanto na conjugação entre a idéia de espelho do passado, o apelo às autoridades antigas e medievais e o recurso às verdades consolidadas em outros escritos. Mesmo que também os relatos sejam alimentados pelos referentes culturais dos viajantes antecessores e, em vários casos, sejam também eles construídos sobre escritos do passado, à base da compilação, é o testemunho direto, a afirmação da busca da realidade sem intermediações que os sustenta. Isso, entretanto, não deve nos levar a cair na armadilha da função documental desses textos, nem tampouco das crônicas. Igualmente, não podemos cair na tentação oposta de desmenti-los, pois o que importa é atentar para como recorreram a classes de verdade que pareceram tão convincentes para seus contemporâneos, ao ponto de se apresentarem como espelho do mundo24. E, no caso dessas crônicas do século XVI, esse espelho do mundo é alimentado sobretudo pelas narrativas de viagens.
Tais narrativas de viagens, caracterizadas como documentos de "primeira mão", amparados na experiência pessoal25, eram, contudo, poucas no início do século XVI e, no que diz respeito à América, esquivas, já que os olhares ainda continuavam treinados para ver sobretudo o Oriente. Em sua maioria sem grande trabalho de elaboração e, à moda da época, sem grande preocupação com a originalidade, elas interessaram aos cronistas - assim como mais tarde a outros leitores - pelo quanto de informações que conseguiam reunir e por serem testemunhos sobre terras, homens e sociedades que eles próprios não puderam visitar. Era nesse testemunho direto, a propósito, que os cronistas julgavam que poderiam encontrar a aclamada autenticidade que buscavam nos seus próprios relatos históricos.
Se, porém, os cronistas quinhentistas26 procuraram, nessas dispersas reportagens do passado, um melhor conhecimento de gentes e terras desconhecidas, no que diz respeito à América, que tanto veio a interessar seus sucessores, apenas colaboraram para manter o vazio na divulgação das imagens do lugar nos primeiros tempos de descobertas geográficas e históricas. O passado que fixaram sobre a América, como se verá, parece não ser nem aquele dos humanistas curiosos com a novidade, nem muito menos o daqueles homens movidos pelo interesse filosófico ou científico, como foi o dos homens do século das Luzes. Nesses textos históricos portugueses do século XVI, portanto, a América apresentada é uma América que está longe de interessar por si mesma; por um lado, porque o que importava eram os feitos dos grandes homens da expansão; por outro, porque, como têm notado vários historiadores, ela era ainda, neste momento, lugar de passagem para uma conquista mais promissora: as Índias Orientais.
No que diz respeito ao primeiro aspecto, é possível notar que João de Barros27, em sua Ásia, além de incluir um subtítulo que denuncia a tendência marcante da sua história, "os feitos que os portugueses fizeram no descobrimento e conquista dos mares e terras do oriente", apresenta como ponto de partida de seu projeto de registro do passado - em décadas, à moda dos antigos - os feitos militares portugueses nos quatro continentes, um ponto de partida que, porém, acabou por não ter continuidade, pois Barros não pôde realizar a proposta de compor uma parte geográfica e uma parte dedicada às relações e aos produtos comerciais28. Restringiu-se, assim, o historiador a pensar os feitos pelo mérito daqueles que o empreenderam. Talvez por isso louve, no prólogo da Segunda Década, os quatro príncipes que, em momentos diferentes, alicerçaram os descobrimentos: D. Henrique, que lançou as "pedras rústicas" da conquista da Guiné, D. Afonso V e D. João II, porque acrescentaram ao que aquele tinha começado, e D. Manuel, porque, na visão do cronista, deu a conhecer à Europa o descobrimento da Índia e despertou interesse por ela29. O cronista, pois, no seu compromisso de "encomendar as cousas à custódia das letras" e preencher o vazio que seus antecessores e contemporâneos portugueses deixaram acerca dos descobrimentos, só se refere à parte oriental das descobertas e não contempla que, no que diz respeito à parte ocidental, ele próprio ampliará o vazio -30 talvez porque a sua fonte principal tenha sido a Relação do Piloto Anônimo. As matérias tratadas por Barros voltam-se também sobretudo para o oriente. Da ação e das peripécias do Infante D. Henrique e seus servidores - Gil Eanes, Gonçalo de Sintra, Nuno Tristão, Gomes Pires, Diogo Gil e outros - às iniciativas exitosas de D. Manuel, levadas adiante pelos famigerados Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Afonso de Albuquerque, Francisco de Albuquerque, Francisco de Sá, Henrique de Meneses, Pêro Mascarenhas, e outros, passando pelo arrendamento a Fernão Gomes por D. Afonso V e pelo impulso dado às conquistas por D. João II.
Também Castanheda atenta mais para a dominação dos portugueses na Índia - "seus feitos notáveis", suas "façanhas" - do que propriamente para os costumes dos reis e povos do Oriente ou para as características dos lugares; uns e outros descritos acima de tudo com a finalidade de compor melhor a grandeza dos feitos portugueses31. E mesmo Gaspar Correia, que se distinguiu de Damião de Góis por não tomar o rei D. Manuel como figura central de sua narrativa, declara que não escreveria "nada das terras, gente, e trato", mas apenas se ocuparia dos "nobres feitos" daqueles portugueses atuantes nas partes da Índia32.
Se, pois, o alvo de engrandecimento dos portugueses que militaram no ultramar se sobrepunha à descrição dos lugares da Índia, no que diz respeito à futura América, a ausência de nuances sobre os lugares e gentes é ainda mais notável. Segundo Mollat33, os navegadores dos tempos de Colombo procuravam Catai e encontraram a América, portanto, levou tempo para que a consideração da América por ela mesma viesse a se efetivar, pois o objetivo permanecia Catai. Desse modo, nas primeiras décadas do século XVI, o extremo ocidente descoberto, além de surgir nos escritos como reminiscência do extremo oriente34, aparece como interposto. Não é, pois, de admirar que aquele que foi o cronista português mais traduzido, Fernão Lopes de Castanheda35, quando sintetiza os grandes feitos dos portugueses, abrindo mares e mundos, ressalte apenas a África, o Cabo da Boa Esperança, a Etiópia, a Arábia, a Pérsia, a China e as ilhas Molucas36.
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Revista História - UNESP
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