sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

O nascimento da América portuguesa no contexto imperial lusitano


O nascimento da América portuguesa no contexto imperial lusitano. Considerações teóricas a partir das diferenças entre a historiografia recente e o ensino de História

Lucília Siqueira


Professora Doutora - Departamento de História - PUC-SP - 05014-901 - São Paulo - SP - Brasil. E-mail: lucilia-siqueira@uol.com.br

RESUMO

O artigo estrutura-se sobre a comparação entre o que é trazido pela produção historiográfica recente e o que os livros didáticos e o ensino de História do Brasil oferecem acerca do início de nosso período colonial. Os temas aqui tratados são a formação da monarquia e do Estado em Portugal, os antecedentes e as causas da expansão marítima, o significado da viagem de Cabral e, por fim, a dinâmica imperial lusitana até a metade do século XVI. Os fenômenos e processos históricos discutidos servem como indício de uma concepção histórica que está como pano de fundo na maneira de tratar a história do Brasil e de estruturar os livros didáticos.

Palavras-chave: Historiografia brasileira; América portuguesa; Brasil colonial; Ensino de História; Livros didáticos de História.

ABSTRACT

This article deals with the comparison between what is discussed by recent historiographical production and what History textbooks offer concerning Brazil's Colonial Period. The themes include the formation of the Monarchy and the State in Portugal, the antecedents and causes of overseas expansion, the significance of Cabral's travels and, lastly, the Portuguese Imperial dynamics up to the mid-16th century. The historical phenomena and processes brought up here can be considered as pointing toward a historical conception which works as a backdrop to the way in which the history of Brazil is dealt with and how textbooks are organized.

Keywords: Brazilian historiography; Portuguese America; Colonial Brazil; History teaching; History textbooks.


Entre os anos de 2003 e 2006, ministramos no curso de História da PUC-SP a disciplina Brasil I: Introdução à Historiografia Brasileira1, cujo conteúdo era, essencialmente, a montagem do Império português no início do período moderno. Além de focalizar o Reino de Portugal desde sua formação até os meados do século XVI, chegando perto de se constituir num curso de história ibérica, a disciplina promovia uma reflexão acerca da historiografia brasileira e, em vista disso, buscamos organizar o programa com uma bibliografia inovadora, em grande parte publicada há menos de dez anos.2

Sucedeu com os estudantes de História do 1º ano, recém-chegados do Ensino Médio, um estranhamento maior do que esperávamos, pois a cada leitura traziam as diferenças espantosas que encontravam em relação às informações e à abordagem com que tinham lidado ao longo de sua escolarização anterior. O clamor por discutir tais diferenças nos fez transformar um dos instrumentos avaliatórios do curso numa comparação entre os autores que ora estudavam e o que lhes fora apresentado nos anos de ensino de História, principalmente por meio de livros didáticos. Estes últimos seriam da escolha dos alunos, podiam ser novos ou publicados há mais tempo e podiam, ainda, ser do Ensino Fundamental ou do Médio.

Dessa maneira nasceu o texto que segue, estruturado sobre a comparação entre o conhecimento que era trazido pelos alunos do 1º ano de História da PUC-SP acerca do início de nosso período colonial - incluídos os livros didáticos com que estudaram - e o que é apresentado pela produção historiográfica recente.

Estão aqui apontadas muitas das obras historiográficas que compunham a bibliografia de Brasil I, mas os livros didáticos não estão discriminados, nem seus autores e nem seus títulos, embora estivessem disponíveis nos papers entregues pelos que cursaram a disciplina. Os alunos perceberam que muitas das idéias que traziam consolidadas dos tempos anteriores à universidade não estavam propriamente nos livros didáticos com que trabalharam, mas na fala dos professores de História, na "explicação que faziam do processo colonial" - como disse certa vez um aluno; isto é, os alunos perceberam que, para além do texto do livro didático, havia a interpretação do passado lusitano e colonial que era veiculada pelos docentes na intenção de promover a compreensão do passado entre o alunado.

Assim, o modo como este ensino de História do Brasil se abriga na sala de aula e nos textos didáticos configura-se, neste artigo, como uma superfície indefinida sobre a qual dispomos as diferenças que intentamos apresentar. Os processos e acontecimentos históricos que discutiremos abaixo pretendem seguir na vereda dos traços mais fortes que vemos apresentados nos textos acadêmicos. Os temas aqui tratados são a formação da monarquia e do Estado em Portugal, os antecedentes e as causas da expansão marítima, o significado da viagem de 1500 de Pedro Álvares Cabral e, por fim, a dinâmica imperial lusitana até a metade do século XVI.

O incremento dos programas de pós-graduação no país, o aumento na quantidade de pesquisadores brasileiros e a abertura crescente dos arquivos em várias partes do mundo têm tornado possível uma apreensão mais concreta das especificidades da história da América portuguesa e têm acrescentado bastante ao modo como entendíamos o nascimento da sociedade colonial. Tais novidades tornam necessário, como em muitos outros momentos vividos pelo ensino de História, uma reflexão acerca das balizas que estruturam o que é ensinado nos bancos escolares.

Como este artigo não quer ser uma nova cartilha para a seleção de conteúdos em História do Brasil, os fenômenos e processos históricos discutidos servem como indício de algo que cremos ser muito maior, isto é, uma concepção histórica que está como pano de fundo na maneira de tratar a história do Brasil na sala de aula e de compor os livros didáticos.



A formação da monarquia e do Estado em Portugal

Ainda que outros domínios ultramarinos já estivessem presentes na visão de alguns historiadores das décadas de 1960 e 1970 - como Amaral Lapa, Charles Boxer e Magalhães Godinho, por exemplo -, um dos traços mais fortes na maneira atual de escrever a história colonial do Brasil é a sua inserção no contexto imperial português. Se, de um lado, isso afasta os anacronismos, pois se entende que foi com o passar do tempo que os portugueses foram incorporando partes do território americano e que o Brasil ainda não existia como unidade territorial, conjunto cultural ou político nos primeiros séculos do tempo moderno, de outro lado, deixa ver como a América portuguesa participava das relações mercantis, políticas e culturais que se criavam entre as gentes que viviam nos Oceanos Índico e Atlântico; isto é, passamos a vislumbrar a porção oriental da América do Sul como parte, até mesmo pouco importante, do Império que incluía Ásia e África (ALENCASTRO, 2000).

A ampliação que permite ver além da colônia brasileira faz companhia para um alargamento já existente no tratamento da história de Portugal, cujos autores introduzem no ambiente mundial a formação do Reino e do Estado português, as navegações oceânicas, a montagem do Império, as redes de comércio e as de poder. Os processos históricos lusitanos do esgarçar da medievalidade e da composição do período moderno são pesquisados hoje nos arquivos de Portugal, da Índia, da China, do Brasil, da Espanha, da Itália, da Holanda, etc., de modo que podem ser vislumbradas as faces de uma história que não foi protagonizada apenas por portugueses.

Para compreender a construção do Império ultramarino é preciso conhecer o processo de constituição da monarquia portuguesa, do surgimento do Reino de Portugal no século XII, do aumento crescente do poder régio e da especificidade com que se estruturou o Estado lusitano ao longo dos séculos seguintes. Nos Ensinos Fundamental e Médio, o estudo da formação e do fortalecimento da monarquia portuguesa na sua peculiaridade poderia contribuir para que se compreendesse melhor o processo de crise do feudalismo e de formação das monarquias nacionais na Europa como um todo.

Na tentativa de explicar as grandes navegações que ocasionaram o "aparecimento do Brasil na história", os livros didáticos costumam apresentar para Portugal moderno uma situação modelar em que, como em outras regiões européias, a burguesia comercial derrotou o feudalismo em aliança com o rei lusitano e, com o Estado moderno constituído, juntos empreenderam a expansão marítima. Nos textos didáticos é usual que a Revolução de Avis (1383) - quando a dinastia de Borgonha foi substituída pela de Avis - seja o acontecimento central na explicação do surgimento do Estado moderno português. Na maioria dessas obras, a revolução se constituiu na vitória da nação portuguesa contra a tentativa de tomada do trono pelos estrangeiros de Castela; além disso, o movimento liderado por D.João de Avis teria garantido à burguesia o ingresso no aparelho estatal.

É preciso notar, como apontou Boxer há 40 anos, que em Portugal do Quatrocentos não existia propriamente uma burguesia, mas um número reduzido de comerciantes instalados em algumas das principais cidades costeiras (BOXER, 2002: 22-23). O mais importante nesta troca dos vocábulos de "burguesia comercial" para "comerciantes" está na abertura que proporciona ao entendimento de que se tratava de um grupo social que, aos poucos, foi se aperfeiçoando no mercadejar, conseguiu alguma entrada nos espaços políticos e, mais adiante, participou com vários outros segmentos nas primeiras viagens oceânicas que, entre outras metas, propiciavam lucros por meio das atividades mercantis. Assim, não se tratava de uma classe social com um projeto acabado de desenvolvimento do capitalismo comercial, que desde o seu surgimento sabia o que lhe seria mais vantajoso do ponto de vista político e econômico e, por isso, associou-se à Coroa e a fez implantar uma política econômica mercantil. Formula-se desse modo uma história em que outros estratos - políticos, culturais, religiosos - não estiveram submetidos à força motriz do grupo econômico que tencionava comerciar.

No segundo volume da obra História de Portugal, intitulado "A monarquia feudal (1096-1480)", José Mattoso e Armindo de Sousa mostram como o processo de concentração de poder político pelo rei fez-se ancorado em valores e práticas feudais, ou seja, ao invés do modelo "rei-aniquila-poder-dos-senhores-feudais", temos que o rei se fortalecia na medida em que se tornava um senhor com mais poder - de caráter senhorial - do que os outros, um primus inter pares, como assinalam os autores. Pouco a pouco, os historiadores revelam como, nos séculos XIII e XIV, o rei assumia crescentemente as funções "públicas", retirando-as dos senhores, ou seja, o rei trazia para si um poder já existente, atribuições que ele não inventara3. Fazia-o amparado numa estratégia política que ao mesmo tempo erigia a singularidade do poder régio e reservava aos nobres um espaço de prestígio e de atuação junto à Coroa, por concessões de privilégios e de prerrogativas, como a tarefa de arrecadar certos tributos, por exemplo (MATTOSO, s/d.: 269-309).

Segundo Mattoso e Sousa, as funções estatais em Portugal desenvolveram-se, de fato, com Afonso III (1248-1279). Para a organização estatal, foi preciso, ao longo dos séculos XIII e XIV, organizar as finanças régias, fortalecer o tribunal e a lei régia em detrimento das justiças locais, criar um corpo de funcionários burocráticos e, ainda, fazer surgir um complexo de regras de cortesia, uma maneira de viver em torno da Coroa, de prestar vassalagem ao rei.

O principal instrumento de que se serviram os reis da dinastia de Borgonha para superarem os senhores foi a guerra externa, cuja liderança lhes possibilitava conquistar terras para o Reino. E, para construir o Estado, o mais importante foi o papel que a justiça régia adquiriu sobre as jurisdições locais, nas diferentes regiões do Reino; se a Coroa não dispunha de aparelho administrativo e funcionários para cada setor da administração pública, possuía, entretanto, os juízes que trabalhavam pela Coroa por todo o reino, fazendo valer a lei régia sobre os ditames locais que vigoravam anteriormente e que variavam bastante nas distintas partes do território. Nas leis régias, estavam dispostos os princípios da Coroa para lidar com os crimes, tributos, atividades de agricultura, de pesca, de produções artesanais, de uso das benfeitorias comuns e dos recursos naturais, etc.

No século XV, quando se iniciaram as navegações oceânicas, o rei de Portugal já tinha poder inquestionável, absoluto. Importa, no entanto, saber o que isso significava naquela época. Segundo Humberto Baquero Moreno, "(...) pelo menos desde o século XIII ninguém põe em causa a autoridade absoluta do monarca (...). Em muitos aspectos o caráter absoluto da monarquia afigura-se mais propriamente teórico do que real." (MORENO, 2001: 47). Adiante, o autor explica que o poder do rei atingia de maneira desigual as regiões do Reino, muitas inacessíveis em alguns períodos do ano. Algumas áreas não dispunham de rede viária que permitisse seu acesso pelo monarca ou seus funcionários, que existiam em número bem reduzido. Com efeito, a Coroa não dispunha de verbas que sustentassem os órgãos que seriam necessários a um poder centralizado, e o rei exercia seu poder sobretudo com dois tipos de funcionários: os arrecadadores de impostos e os juízes.

Estudar a história do nascimento de Portugal dessa maneira possibilitaria, em sala de aula, apreender a concretude e a especificidade de certos processos históricos, como aquele que os livros didáticos chamam de "formação das monarquias nacionais". Descartando a explicação esquemática que dá conta de todas as regiões da Europa no começo da modernidade, podemos trabalhar, simultaneamente, com o que é específico de Portugal e o que diz respeito à história de outros povos europeus no mesmo período; pode-se estabelecer para os estudantes o que é comum e o que é diferente; o que é histórico, porque único e não recorrente, do que é conceitual, porque criado por nós para entender as semelhanças, os contornos mais gerais das sociedades do passado. Pode-se compreender, então, que "monarquia", "rei", "absolutismo", "Estado" e outros conceitos, embora carreguem idéias matrizes muito importantes no uso da linguagem política, têm conteúdo próprio a cada tempo e a cada gente.

Em Portugal, como se vê pelo que foi exposto, primeiramente surgiu a monarquia, depois o Estado. Quanto à nação, conforme José Mattoso, só terminou de ser construída no século XIX, quando as populações que viviam no território português não apenas assumiam a autoridade régia - o que já se dava há muito tempo -, mas quando elas se viam identificadas entre si, como uma comunidade diferente dos demais povos, e identificadas com direitos e deveres comuns, com símbolos onde o Estado se materializava. Para tanto, foi preciso, inclusive, que a maioria da população portuguesa pudesse passar por escolarização, o que somente ocorreu na metade do século XX (MATTOSO, 2001: 31-41).

Diferentemente do que a orientação nacionalista sempre tendeu a expor para muitos países, é essencial mostrar aos estudantes que, em Portugal, a nação não precedeu o Estado e que este, portanto, não se legitimou sobre a anterioridade daquela. Assim como se verá no Oitocentos no Brasil, o Estado português não foi criado para atender uma demanda da nação já existente. Parece-nos precioso para a formação dos cidadãos de hoje o aprendizado de que poder político, Estado e nação são fenômenos construídos historicamente e em momentos não coincidentes.



Os antecedentes e as causas da expansão marítima

É evidente que para nós o estudo da construção do Estado lusitano tem como fim primordial constituir-se numa introdução para a história do Brasil; e não é mau que seja assim. Investigando Portugal no alvorecer da modernidade, os estudiosos da história brasileira pretendem a compreensão do início da sociedade colonial, ainda que saibam da existência anterior de inúmeras populações nativas e da diversidade que caracterizou o território da América portuguesa. Isto é, sabemos que as terras americanas visitadas, exploradas e por vezes povoadas pelos portugueses na primeira metade do século XVI não se configuravam propriamente no Brasil, mas é fundamental conhecê-las neste período - porque dizem respeito ao nosso passado - tendo sempre em mente que seu destino poderia não ter sido tornar-se um Estado e um território único no século XIX (NOVAIS, 2000).

Atados a uma perspectiva nacional de história para o Brasil e também para Portugal - mesmo sem o saber -, os livros didáticos fazem a explanação das grandes navegações realçando a atuação do sujeito Portugal, consolidado num Estado de administração centralizada que gerencia o grande empreendimento marítimo; emergem expressões como "Portugal toma posse do Brasil", intitulando o trecho em que a viagem de Pedro Cabral é narrada. Um dos eixos em torno do qual se organizam os capítulos sobre os descobrimentos é o do pioneirismo português. Além da capacidade estatal empreendedora que teima em ignorar a precariedade da organização administrativa da Coroa lusitana, os didáticos mostram a situação geográfica do Reino, na extremidade ocidental da Europa, voltado para o Atlântico, como um dos fatores que fizeram dos portugueses o primeiro povo europeu a ultrapassar as navegações mais próximas da costa. Charles Boxer rejeita o argumento da contigüidade com o Atlântico logo na introdução de O império marítimo português. Adverte o autor que a costa portuguesa não se presta naturalmente a bons portos e, aos que referem a tradição pesqueira como um facilitador da navegação que se iniciou no século XV, Boxer responde que os portugueses eram principalmente agricultores e que os pescadores eram uma pequeníssima parte da população reinol, cujas embarcações e arte de navegar em nada serviam ao que era empregado nas expedições oceânicas, onde era preciso contestar os ventos, desprezar as marés e afastar-se da costa. (BOXER, 2002: 27-28)

Dar relevo à questão do pioneirismo lusitano promove a idéia da "genialidade" daquele povo, enquanto os historiadores atualmente acentuam a internacionalidade das grandes navegações, enfatizando que as primeiras viagens oceânicas contaram com homens castelhanos, mercadores e financiadores da Península Itálica, navegadores e "cientistas" árabes, gente nascida em outros cantos do mundo e, principalmente, de variados segmentos sociais (GODINHO, s/d.: 57-152).

Luís Adão da Fonseca, em De Vasco a Cabral, expõe de modo bastante esclarecedor o movimento navegatório na virada do século XV para o XVI, construindo internacionalmente o cenário cultural, tecnológico, político e diplomático no qual se realizaram as expedições de Vasco da Gama em 1497 e 1502, e a de Cabral, em 1500. Conforme o autor, dentro e fora das fronteiras do Reino português fabricou-se um novo modelo europeu de navegação que já não era o mediterrânico, que até então respeitava os ventos e exigia que a embarcação estivesse próxima da terra para conseguir se localizar (FONSECA, 2001). Magalhães Godinho alerta para o fato de que não se tratava ainda de uma mentalidade científica, mas de uma "náutica prática sistemática", onde se confrontavam observação e mitos, onde se anotavam os ventos, as correntes e as funduras; pouco depois, por volta de 1480, viria a "náutica astronômica", extraída em grande parte dos conhecimentos judaico-muçulmanos (GODINHO, s/d.: 57-152).

Com a caravela portuguesa, que permitiu navegar prescindindo da direção determinada dos ventos, e com a bússola e o astrolábio, instrumentos com que os navegadores puderam se orientar mesmo distantes da costa, os europeus alcançaram os elementos centrais da tecnologia para navegar em mar alto. Ao que se acrescentou a instalação de artilharia a bordo, proporcionando a imposição de sua presença nos mares em que não fossem bem-vindos.

No final da década de 1470, as coroas de Portugal e de Castela acordavam, no Tratado de Alcáçovas-Toledo, que o Oceano Atlântico seria separado em duas áreas de influência: ao norte das Canárias, seria navegável por Castela, e ao sul deste arquipélago, ficaria sob controle lusitano. Para Adão da Fonseca, este tratado de 1479 revela uma nova visão de mar, pois pela primeira vez o oceano foi tomado como uma superfície geográfica a ser explorada e não somente como o espaço das rotas comerciais (FONSECA, 2001: 16).

Sabedores de que para atingir a região norte da Europa era preciso navegar dando uma volta para oeste, para não tomar de frente as grandes correntes ao longo da costa portuguesa, os navegadores acreditaram que o mesmo mecanismo regia o Atlântico na porção sul; desse modo, Bartolomeu Dias, em 1488, rumando para o sul da África, abriu um grande arco para oeste e, assim, pegou as correntes mais fracas no interior do oceano, dobrou o Cabo das Tormentas e adentrou o Oceano Índico. Ao passarem o cabo do sul da África, que então chamaram de Cabo da Boa Esperança, os navegadores consolidavam sua percepção do oceano, pois puderam navegar até o cabo quando apostaram na idéia de que o funcionamento oceânico no hemisfério sul seria o mesmo do norte, de maneira invertida. Adão da Fonseca afirma que a manobra navegatória deste português em 1488 tornou possível conceber o Atlântico "como um espaço unitário, com um funcionamento de tipo mecânico." (FONSECA, 2001: 16-ss).

Distante das noções de nacionalidade que os textos didáticos expõem, a internacionalidade da expansão marítima tem que ver, ainda, com a envergadura européia da dinastia que governava o Reino lusitano. Lembremos que a Casa Real tinha laços de família com outras dinastias da Europa, principalmente com a de Castela. Quando esses laços não estiveram estreitados na medida de seu interesse, a Coroa portuguesa empenhou-se para tanto, como o que se passou com os casamentos de D. Manuel (1495-1521), todos os três com mulheres da família real de Castela.

Este rei, chamado Venturoso, tinha ambições de anexação do Reino castelhano, conforme se vê pelo lugar que concedeu à Ordem de Santiago - milícia religiosa, cruzadista, de dimensão ibérica - nas expedições de Vasco da Gama e de Álvares Cabral, e pela construção em 1501 do Mosteiro dos Jerônimos - ordem eremita espanhola -, feito um monumento ibérico comemorativo das navegações. No encaminhamento de sua política expansionista, D. Manuel sempre marcou posição de modo a firmar as conquistas realizadas sob a bandeira portuguesa; mas, ao mesmo tempo, apresentava-as como empreendimentos em grande parte operados por gente de Castela. Assim, construía uma estratégia em que afirmava suas descobertas como virtualmente capazes de serem apresentadas como ibéricas (FONSECA, 2001: 44-54).

O panorama cultural e político mostrado pela historiografia faz ver que as expedições portuguesas da primeira centúria de expansão marítima - até as primeiras décadas do século XVI - não buscavam a conquista de terras recém-descobertas para Portugal, o que é comumente apresentado pelnos livros didáticos, implícita ou explicitamente. No imaginário daquele tempo, o espaço ignoto abrigava as maravilhas mágicas e o paraíso terrestre; era também o lugar de combater infiéis e o espaço oceânicano sobre o qual se poderiam viabilizar novas rotas comerciais para os produtos originários da África e do Oriente. Nesse emaranhado de fatores e agentes históricos, a dominação imperial ainda não tinha caráter territorial, não se afirmava sobre a posse de novas terras nas porções do planeta a serem descobertas. Contavam muito, entretanto, além das redes mercantis, o engrandecimento do rei que conseguia fincar alguns de seus súditos em pontos longínquos do mundo e a cruzada religiosa que levava a lutar contra os infiéis.

Tanto em Portugal como no Brasil da atualidade, frutificam os estudos acerca da origem social e da trajetória de vida dos que integraram o aparelho administrativo do Império ultramarino. João Paulo Oliveira e Costa, por meio de vastos quadros em que relaciona origem, estatuto - escudeiro, cavaleiro, fidalgo - e cargo administrativo - feitor, recebedor, juiz, almoxarife, escrivão, chanceler etc. - demonstra como a Coroa, ao longo do Quatrocentos, recrutou os membros da baixa nobreza para serem os oficiais do aparelho ultramarino e como este foi o grupo social que mais se beneficiou com a expansão. Para o historiador português, a expansão marítima foi uma das mais eficazes maneiras de garantir a reprodução da nobreza, que no século XV já não tinha as guerras com os vizinhos para atuar e não podia mais almejar a novos privilégios ou cargos em razão da dimensão do Reino lusitano; segundo o autor:

(...) A expansão veio alterar esta situação e permitiu que a nobreza mantivesse o seu modelo social e mental quase inalterado durante mais de século e meio; desfez-se, assim, o bloqueio que parecia que iria asfixiar este grupo social, o que foi possível porque milhares de nobres, desde escudeiros recém-nobilitados a fidalgos proeminentes e de velha cepa, aceitaram o risco de navegar e combater no exterior, passando muitas vezes longuíssimas temporadas fora do Reino. (COSTA, 2001: 89)

Os historiadores constroem um ambiente cultural para o tempo das grandes navegações em que são acolhidos os elementos medievais, fazendo com que os homens das grandes aventuras marítimas sejam vistos por nós, também, como cavaleiros, como cruzados (THOMAZ, 1994). Em vez disso, as obras didáticas realçam os traços que caracterizam a transformação para uma época moderna e impedem nossa compreensão do universo mental europeu do final do Quatrocentos e início do Quinhentos.

Boxer, mais uma vez, parece-nos apresentar uma síntese clara:

(...) os impulsos fundamentais por trás do que se conhece como a 'Era dos Descobrimentos' sem dúvida surgiram de uma mistura de fatores religiosos, econômicos, estratégicos e políticos, é claro que nem sempre dosados nas mesmas proporções.(...)" (BOXER, 2002: 33)

De acordo com o historiador britânico, os motivos principais que inspiraram os comerciantes, nobres, príncipes e reis portugueses foram, cronologicamente: "(...)1.o fervor empenhado na cruzada contra os muçulmanos; 2.o desejo de se apoderar do ouro da Guiné; 3.a procura de Preste João;; 4.a busca de especiarias orientais." (BOXER, 2002: 34).

Boa parte do material didático escrito na última década já menciona a multiplicidade de fatores que motivaram a expansão marítima. No entanto, apresentam-nos de modo a confluírem para o grande conjunto do "capitalismo nascente", ou seja, acima de tudo eram necessários os metais preciosos para que os mercados europeus continuassem a se desenvolver e para comprar as mercadorias orientais. Na memória que os estudantes carregam sobre o período, os impulsos religiosos são tratados mais como uma justificativa fingida para as conquistas ultramarinas do que uma experiência cultural verdadeira para os indivíduos do começo do período moderno. De maneira sutil, constrói-se para o aluno a idéia de que, ao findar do período medieval, era uma contradição ter, simultaneamente, metas econômico-financeiras e impulsos religiosos.

Se a expansão marítima não se constituiu na execução de uma política mercantil traçada pelo Estado português, ou ainda, na realização de um projeto colonial, isso não quer dizer que toda a expansão foi aventuresca, ao sabor do acaso, nem que todas as dezenas de expedições do Quatrocentos partiram na direção do desconhecido sem se preocupar com os riscos financeiros que corriam. Em meados do XV, a lucratividade proporcionada pelas viagens atlânticas fez com que os portugueses prosseguissem com a expansão; o comércio de ouro e de escravos que já se estabelecera com as regiões da costa ocidental africana permitia continuar na busca de novos caminhos para o Oriente. No retorno para as terras européias, os navegadores levavam as informações geográficas e as notícias que obtiveram acerca de oportunidades de comércio em localidades africanas um pouco mais ao sul de onde tinham chegado.
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Revista Historia - UNESP

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