sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Nas franjas do império ultramarino português: a experiência insular de São Tomé e Príncipe no despertar dos oitocentos


Neuma Brilhante

Doutora em História pela Universidade de Brasília. Pesquisadora Associada das Faculdades ESPAM - 73025-040 - Sobradinho - DF - Brasil. E-mail: neumabr@uol.com.br


RESUMO

São Tomé e Príncipe ocupou importante lugar na arquitetura imperial no século XVI. Contudo, a capitania tornou-se cada vez mais periférica no contexto do império português em decorrência de sérios problemas internos e dos deslocamentos do comércio colonial. As iniciativas reformistas experimentadas no início dos oitocentos fracassaram diante das importantes mudanças político-econômicas que envolveram o tráfico atlântico, principalmente, das ações inglesas contra esse comércio.

Palavras-chave: Periferia; Império; São Tomé e Príncipe.


ABSTRACT

Sao Tome and Principe held an important position within the Portuguese Empire in the 16th century. However due to serious internal conflicts and the transfer of priorities in colonial trade, this colonial island was gradually relegated. At the onset of the 19th century, a new administrative reform failed to restore their former affluence because of the consequences of important politico-economic changes concerning transatlantic trade, mainly, the British intervention against this trading.

Keywords: Relegated; Empire; Sao Tome and Principe.

São Tomé e Príncipe: de centro à periferia

O arquipélago de São Tomé e Príncipe foi ocupado pelos portugueses na última década do século XV. A capitania abrangia as ilhas de São Tomé, Príncipe, Fernando Pó e Ano Bom. As duas últimas foram entregues à Coroa espanhola, no contexto dos tratados assinados em 1777 e 1778, sem terem sido exploradas efetivamente pelo governo português.

A exploração daquela possessão insular confunde-se com a abertura dos mares e a formação do império oceânico português. Esse constituiu-se pela articulação de práticas político-econômicas do Antigo Regime luso com realidades sociais, político e econômicas muito diversas, que resultaram em "certas identidades que eram dadas por seus circuitos comerciais transoceânicos, suas formas de acumulação e mais, pelos negociantes que circularam e fizeram fortunas em meio a este mare lusitano." (FRAGOSO, 2002:100).

A proximidade daquelas ilhas com o litoral da África ocidental consequentemente as transformaria em importantes entrepostos comerciais do norte do Atlântico (BOXER, 2008: 110). A ilha de São Tomé serviu como um "laboratório tropical", para usar a expressão de Luís Felipe de Alencastro. Ali, plantas, animais, técnicas agrícolas e homens foram adaptados à realidade dos Trópicos e à produção açucareira escravista (ALENCASTRO, 2000: 63).

A vida econômica do arquipélago viria a ser estimulada pelo fortalecimento do tráfico de escravos. Os navios negreiros fundeavam em seus portos em busca de víveres e de escravos para completar suas cargas. Ainda em meados do século XVI, os moradores foram autorizados, segundo o foral da capitania, a comercializar com navios estrangeiros e com a costa africana.

O tráfico atlântico também estimulou a diversificação da produção. Além do açúcar, diferentes mantimentos usados no abastecimento dos navios e no escambo com a costa africana passaram a ser produzidos na ilha: arroz, milho, mandioca, inhame, banana, azeites, algodão, gengibre, entre outros. Os dividendos desta atividade logo se tornaram bastante atrativos para os habitantes daquelas ilhas e concorreram com os advindos dos engenhos. Alguns moradores possuíam embarcações que se dedicavam, principalmente, ao comércio com o continente africano (NEVES, 1998: 94).

Tal prosperidade levou homens e o interesse do Rei àquela localidade, que se tornou capitania régia em 1522. Três anos depois, sua principal vila, também com o nome de São Tomé, foi elevada à categoria de cidade. Em 1534, foi formado por bula papal o bispado de S.Tomé, que abarcava todas as ilhas do Golfo da Guiné e a costa africana do Congo e de Angola. O bispado viria a ser desmembrado em 1596.

A população livre da capitania era majoritariamente mestiça. Acredita-se que o arquipélago era inabitado quando os portugueses lá chegaram. A primeira sua população foi constituída por poucos homens brancos livres, um grande número de degredados - entre eles, centenas de crianças judias cujos pais haviam sido mortos ou expulsos da Península Ibérica1 - e escravos levados da costa africana. O alto índice de mortalidade, que atingia principalmente a população branca, levou a coroa a conceder ainda nos primeiros anos de ocupação a liberdade às escravas domésticas e aos seus filhos e, dois anos depois, aos homens escravos que primeiro haviam chegado às ilhas.

O pequeno número de brancos e a ascensão da população parda envolvida no tráfico induziram a Coroa a conceder à última o direito de ocupar cargos nos ofícios do concelho, desde que fossem homens de bem e casados. A ascendência escrava não fora colocada como impedimento legal. Flexibilizava-se assim a exigência da pureza de sangue para a ocupação dos cargos régios. A complexidade das sociedades mestiças criadas no mundo colonial e a pequena população do Reino de Portugal exigiram a adaptação das normas lusas e sua adequação às diversas realidades locais (BICALHO, 2001:189-221).

A prosperidade da capitania, contudo, não foi duradoura. Os graves embates das elites locais, e entre essas e os funcionários régios, o alto índice de mortandade causada por diferentes febres, as mudanças nas rotas do tráfico e a concorrência com a América portuguesa contribuíram para sua decadência.

Em meados dos seiscentos, as disputas locais já alcançaram níveis muito altos de violência. Os primeiros choques envolveram os senhores de engenho brancos e os pardos que haviam ascendido socialmente. Graves também foram os conflitos entre os capitães-mores e o bispado. As disputas entre elites facilitaram a rebelião escrava. Segundo Luiz Felipe de Alencastro, ocorreu ali a "primeira revolta escrava de grande monte no ultramar", cujos desdobramentos "desperta[ra]m no colonato um pânico similar àquele gerado dois séculos mais tarde pela Revolução do Haiti (1791)." (ALENCASTRO, 2000: 66). A situação foi agravada pela ação dos angolares: comunidade negra que vivia isolada na ilha de São Tomé e que atacava fazendas e engenhos, roubava mantimentos e mulheres2.

O mais célebre dos levantes escravos ocorreu em 1595, sob o comando de um escravo chamado Amador. Ele liderou quatro mil negros que destruíram mais de setenta engenhos e tomou parte considerável da ilha. No calor dos eventos, em meados daquele ano, Amador foi proclamado rei da ilha pelos revoltosos. A Coroa portuguesa reaveria o controle da ilha apenas no início do ano seguinte, quando Amador foi preso e executado.3

A sensação de insegurança foi intensificada pelas invasões estrangeiras. Primeiro, as holandesas ocorridas no século XVII, quando a ilha de São Tomé foi incorporada à área de atuação da Companhia das Índias Ocidentais. Essa pretendia garantir o abastecimento de mão-de-obra escrava para Pernambuco e demais regiões da América sob seu controle. Após a reconquista do arquipélago pelos portugueses, em grande parte, oriundos da América, São Tomé e Príncipe ainda sofreria com a ação de corsários, principalmente franceses. A insegurança das ilhas e a diminuição de sua importância nos interesses coloniais portugueses levaram muitos de seus habitantes a se transferirem para as colônias da América.

Alterações nas rotas do tráfico também prejudicaram a capitania. As ilhas passaram a ter papel cada vez mais periférico no comércio colonial à medida que o foco do tráfico português de escravos transferiu-se para o outro lado do Atlântico.

A carta régia de 4 de janeiro de 1710 parece ter minorado temporariamente as difíceis condições econômicas das ilhas e favoreceu os contatos entre elas e as partes centrais do domínio português. Ela determinava a obrigatoriedade da escala em São Tomé, tanto na ida quanto no retorno, de todos os navios oriundos do Brasil que tivessem comércio com a Costa da Mina, para que fossem cobrados os respectivos direitos. Os recursos arrecadados deveriam ser usados no pagamento dos agentes régios. Tal procedimento "incentivou a natureza genuinamente colonial da ocupação lusitana do território insular." (FLORENTINO, RIBEIRO, SILVA, 2004: 125).

O descumprimento sistemático de tal ordem, no entanto, reforçava a situação periférica da capitania e cada vez menos os portos da ilha eram frequentados por navios portugueses. Isso resultou no aumento da importância do comércio estabelecido com embarcações inglesas, francesas e norte-americanas. O risco da perda daquela possessão era mencionado na correspondência entre os agentes régios e a Coroa.

A decadência da capitania parece ter acirrado as disputas locais, muitas delas com desdobramentos violentos. Como em quase todas as partes do mundo português, os grupos envolvidos eram formados com base na lógica de alianças familiares e de clientelas. Organizadas em torno de disputas de poder, as alianças entre os grupos eram feitas e desfeitas de acordo com as circunstâncias. Os funcionários régios, mal chegavam, viam-se envolvidos em tais disputas:

Já a intriga naquelas idades [séc. XVII] vomitava a infernal peçonha com que infeccionou os novos colonos e os seus sucessores, tanto assim, que repetiam queixas sobre queixas aos pés do real trono, acusando-se reciprocamente dos mais atrozes crimes... Mortes, incêndios, assaltos, raptos, roubos, forças contra os oficiais públicos, desprezo contra os governadores ou capitães, tudo era posto em prática pelos poderosos habitantes de S. Tomé, verdadeiros régulos e tiranos do seu país. (MATTOS, 1916:11)

O senado da câmara de São Tomé tornou-se um importante corpo político. Em 1548, passou a exercer o governo da capitania no caso da ausência do capitão-mor. Ao longo de aproximadamente dois séculos, a câmara respondeu pela administração daquela possessão em dez ocasiões, durante períodos que variaram de meses a alguns anos. Em outras três circunstâncias, teria indicado governadores interinos. A capacidade de articulação dos homens bons da ilha de São Tomé foi tamanha que expulsaram três governadores (MATTOS, 1916).

Aquela câmara viu-se destituída de tal privilégio em 1753, quando a sede do governo da capitania foi transferida para a ilha do Príncipe. A transferência justificou-se pela situação pouco sadia da cidade de São Tomé, o que teria levado à morte ou à doença os bispos, governadores e ministros enviados para seu governo, impedindo o cumprimento de suas obrigações4. Não parece haver, contudo, diferenças em termos de salubridade entre aquelas duas ilhas. Efetivamente, os documentos mostram que os governadores preferiram manter-se em São Tomé, a despeito da determinação régia5. Esse dado permite supor que Raimundo José da Cunha Mattos estava correto ao afirmar que a transferência da capital objetivava diminuir o poder da câmara de São Tomé, medida que fora sugerida por José Caetano Souto Maior, um dos governadores expulsos por ela (MATTOS, 1916).

A transferência da sede não trouxe, contudo, tranquilidades para a administração da capitania. Os conflitos de competência entre as autoridades da capitania eram reforçados sempre que o Senado da Câmara governava (NEVES, 1998: 50). Esse privilégio findaria apenas com o alvará de 12 de dezembro de 1770, que deu nova disposição à sucessão administrativa nas colônias: na ausência ou no impedimento dos vice-reis, governadores ou capitães-generais, o governo seria exercido, sucessivamente, pelo bispo ou deão, pelo ouvidor e pelo oficial de maior patente. Encerrava-se, assim, uma tradição de dois séculos da capitania de São Tomé e Príncipe.

Esse enfraquecimento das Câmaras não significou, contudo, o fim dos conflitos, nem tão pouco o afastamento dos moradores na governança da capitania. Muitos cargos régios eram ocupados interinamente por locais em decorrência, principalmente, da morte prematura dos seus titulares enviados pela Coroa. Esse fator mantinha as disputas e envolvia os funcionários régios logo que chegavam.



São Tomé e Príncipe em inícios dos oitocentos

A capitania de São Tomé e Príncipe encontrava-se em situação de franca decadência econômica e populacional quando D. Rodrigo de Souza Coutinho assumiu a Secretaria de Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos. D. Rodrigo considerava a reforma da administração ultramarina essencial para o engrandecimento de Portugal. Era preciso encontrar alternativas econômicas para as periferias do império e promover a racionalização da administração, com especial atenção para a Fazenda Régia.

O primeiro governador de São Tomé e Príncipe indicado durante a administração de D. Rodrigo foi João Baptista e Silva, em 1799. Essa escolha fundamentara-se em seus esforços para melhorar a agricultura da ilha de São Tomé enquanto lá esteve como capitão-mor. Então, ele havia mobilizado os moradores para o aproveitamento dos pés de canela mandados plantar em 1758 e introduzira mudas de café e de cacau para serem aclimatadas na ilha. Levou para São Tomé "38 folhetos pertencentes à Agricultura e mais providências que S. Majestade manda aplicar nas Ilhas do Príncipe e S. Tomé", atividade da qual dependia "a felicidade dos povos e o aumento dos Reais direitos". (AHU, São Tomé e Príncipe, caixa 29)6.

Durante o curto tempo de seu governo, Baptista e Silva procurou aplicar as orientações da Secretaria. O então secretário D. Rodrigo de Sousa Coutinho buscou reforçar o projeto reformista pombalino para o ultramar. Desde meados dos setecentos, tentava-se implementar uma nova lógica e retórica administrativas baseadas na produção e disponibilização racional de informações sobre os territórios ultramarinos, o que permitiria a elaboração de projetos para o império luso. A correspondência oficial dos agentes régios representou um importante veículo para a divulgação de informações sobre os diferentes espaços portugueses. Havia, assim, um saber sobre os domínios coloniais "depositado nos arquivos e chancelarias régios" (SANTOS, 2005: 58).

Eram poucos, contudo, os funcionários régios envolvidos na administração colonial capacitados para inventariar a natureza, a população e o território. Tais atribuições demandavam conhecimentos invulgares e uma identificação com as propostas reformistas.

Nesse sentido, a associação entre a formação militar e a divulgação e execução das reformas administrativas era um caminho já conhecido nos espaços ultramarinos. Aulas de Fortificação e Arquitetura Militar foram criadas em diferentes colônias desde os últimos anos dos seiscentos. Francisco de Sousa Coutinho, pai de D. Rodrigo, fundou em Luanda uma Aula de Geometria e Fortificação, em 1764 - já sob a influência das reformas militares portuguesas conduzidas pelo Conde Lippe, entre os anos de 1762 e 1777 - com o objetivo de "formar engenheiros e, assim, através deles, chegar à realização das reformas projetadas pelo Estado. A idéia que sobressai é a de um Estado que faz reformas, através dos seus militares." (SANTOS, 2005: 448). João Baptista e Silva e seus sucessores - Antônio Gabriel Franco de Castro e Luís Joaquim Lisboa - eram oficiais da Artilharia.

As propostas reformistas, contudo, não eram bem compreendidas - nem pelos locais, nem por grande parte dos agentes régios. A sua efetivação significava a intervenção nas formas tradicionais de vida, nas relações de poder e nos interesses dos habitantes. Isso necessariamente levava a conflitos. Impunha-se o estabelecimento do estado de polícia entre homens formados sob o valor da justiça, traço tradicional na cultura política do Antigo Regime. Era o embate de diferentes lógicas de governo.

Além disso, os interesses pessoais eram conflitantes e a política local impedia o sucesso de algumas iniciativas. Um caso exemplar envolveu o governador Antonio Gabriel e o representante de uma casa de comércio lisboeta.

João Baptista e Silva, enquanto esteve em Lisboa negociando sua indicação, apresentou ao Conselho Ultramarino propostas para o desenvolvimento da ilha. A mais significativa era a criação de uma rota comercial direta entre a capitania e Lisboa. Tal medida garantiria o escoamento da produção local e o fortalecimento da governança. Essa idéia contou com todo o apoio de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, que envolveu a Real Mesa do Comércio de Lisboa e a Junta da Real Fazenda da Bahia em tal projeto (AHU, São Tomé, caixa 33).

José Antônio Pereira, negociante lisboeta, aceitou o desafio. Seu projeto foi encaminhado ao Conselho Ultramarino pelo poderoso intendente geral de polícia Pina Manique. José Pereira comprometeu-se a estimular a agricultura da capitania e a retomar o comércio naquelas ilhas, que estaria, segundo ele, "abandonado quase de todo às Nações Estrangeiras". A falta de navios portugueses na região levavam os lavradores e comerciantes locais - envolvidos no comércio de cabotagem com o continente - a vender seus produtos a preços mínimos aos estrangeiros que lá aportavam (AHU, São Tomé, caixa 35): azeite de palma, farinha de pau, café, goma, algodão, canela e diversas madeiras estavam entre os produtos a serem comprados diretamente por Lisboa.

O Conselho Ultramarino aprovou a proposta. Contudo, observou que sua implementação não seria fácil. O proponente desconsiderara algumas particularidades da capitania, especialmente o que dizia respeito ao clima insalubre e à ausência de pessoas aptas para a administração do negócio. Foram então enviadas ordens ao governador para que ele apoiasse em tudo e por tudo os feitores do suplicante. A casa de negócios contaria com privilégios, tais como o direito de desembarcar as fazendas e os gêneros destinados ao comércio com a costa sem que lhes fossem cobrados os direitos. Esses recairiam exclusivamente sobre os produtos destinados à capitania.

A casa de negócios de José Antônio Pereira foi aberta na ilha de São Tomé em 1802, poucos meses antes da substituição de João Baptista e Silva por Gabriel Antônio de Castro no governo daquela capitania. Esse governador e o feitor José Francisco Camacho desentenderam-se quanto à abrangência da isenção de direitos de parte do comércio efetivado por aquele estabelecimento.

As desavenças levaram o governador a confiscar todos os gêneros depositados na alfândega pertencentes àquela casa de comércio. Gabriel de Franco e Castro entendia que o feitor interpretara de modo demasiado franco o Aviso Régio, o que estava prejudicando a capitania. O caso foi parar nos tribunais lisboetas.

O governador foi acusado de agir em oposição aos interesses régios e de atuar de modo despótico contra o comerciante. Para esse último, a pobreza daquelas ilhas decorria dos descasos dos governadores que se aproveitavam da distância para defender exclusivamente seus interesses pessoais, espalhando a injustiça. No seu caso específico, argumentaria o comerciante, o desenvolvimento de sua casa de negócios era prejudicado pelas ações egoístas do governador Castro, trazendo não apenas sua ruína pessoal como da capitania como um todo. A resolução do Conselho Ultramarino foi favorável ao comerciante José Antônio Pereira. Os valores cobrados indevidamente foram devolvidos pelo governador, assim como os produtos confiscados.

As atividades da casa de comércio, contudo, não alcançaram os resultados esperados, mesmo com o afastamento de Castro em meados de 1805. O comércio direto com Lisboa logo ficou reduzido a uma viagem anual e, com as invasões francesas, foi suspensa. Os navios do negociante promoveram, todavia, a ligação entre a costa ocidental africana, aquelas ilhas atlânticas e a região de Pernambuco e Maranhão. A casa manteria suas atividades por anos, mas essas se restringiram ao comércio. Os prometidos investimentos na agricultura não se concretizaram.

O governador Antônio Gabriel Franco viu-se envolvido em muitos outros conflitos na ilha. As ações do novo governador focaram-se no conhecimento e no controle da população local. Determinou o agrupamento dos "moradores dispersos pelos Campos" nas vilas, que deveriam ter "as ruas limpas e ruas direitas espaçosas, pondo-se sempre batidas para melhor Polícia destas." (AHU, São Tomé, caixa 37). Pretendeu também criar nas vilas escolas de ler e de escrever. Um dos atos mais controversos foi a reorganização das milícias.

A documentação trabalhada não esclarece, contudo, o quanto de seus planos foi implantado. O fato é que seu governo sofreu oposição desde os primeiros meses, principalmente em relação às interferências na fazenda real e ao seu comportamento cotidiano, considerados excessivos, injustos e violentos pela população local. Este descontentamento resultou no envio de numerosas reclamações ao Rei. Sua defesa consistiu em afirmar que apenas cumpria as determinações régias.

Os demais governadores tentaram contemporizar as propostas da administração ativa e os interesses locais, optando pela conciliação. No caso de Joaquim Lisboa (1805-1815), o uso político das nomeações interinas para os ofícios régios parece ter sido uma estratégia bem sucedida para a cooptação das elites locais e dos grupos de clientela a elas relacionados.

É possível supor que outro fator tenha contribuído para que essas elites dessem seu apoio a Joaquim Lisboa: o medo. A ocorrência de levantes escravos fazia parte da história da capitania. Como mencionado anteriormente, a história de São Tomé e Príncipe possuía exemplos de violentas revoltas negras.

Os medos do imaginário são-tomenses foram reforçados pela Revolução Francesa e seus desdobramentos, principalmente a sangrenta independência do Haiti. Os paralelos entre esse e São Tomé eram muitos: sua condição periférica e insular, o grande número de escravos e a existência de tropas majoritariamente constituída por negros. Os soldados e oficiais subalternos seriam os principais agentes de contestação da administração de Luís Joaquim Lisboa.

Se as condições internas à capitania dificultavam sua recuperação econômica, o complicado panorama internacional e a profunda mudança na arquitetura do império, que se tornava luso-brasileiro, a inviabilizariam. O primeiro desses choques ocorreu em 1807, quando a Grã-Bretanha e Estados Unidos proibiram o tráfico de escravos. A demanda pela produção da ilha diminuiu drasticamente.



Repercussões da Transferência da Corte nas Ilhas

Era esse o quadro geral de São Tomé quando as graves notícias da invasão francesa ali chegaram. A primeira autoridade da capitania a se pronunciar sobre o tema, segundo os documentos encontrados, foi o ouvidor geral interino da comarca da ilha do Príncipe, Pedro Lagrange. Nascido em Portugal, mas estabelecido há décadas naquelas ilhas, ele era um dos principais nomes da capitania e exerceu interinamente o governo da ilha do Príncipe durante diversas ocasiões. Lagrange escreveu no dia 24 de agosto de 1808 uma "carta congratulatória" a D. João VI por sua chegada, e de toda a família real, a Salvador.

Ele mostrou estar a par das circunstâncias da saída real da Europa e fez uso das informações e da interpretação dadas pelo Príncipe Regente no decreto de vinte e seis de novembro de 1807. O abandono de Lisboa fora retratado por Lagrange como um sacrifício do rei em nome de seus vassalos, que sofreriam sobremaneira se os inimigos do trono português alcançassem o rei. O povo seria duplamente sacrificado: primeiro, com o derramamento de sangue e, em segundo, pela inevitável derrota portuguesa e pela destituição de dona Maria I, e do seu príncipe regente, do trono (AHU, São Tomé, caixa 43).

Se a felicidade de saber que o soberano se encontrava em segurança havia tomado todos os vassalos portugueses, declarava o ouvidor geral, certamente ainda mais felizes estavam os habitantes do "novo e feliz Reino", que fora honrado com a "Real Presença". Pedro Lagrange parece ter entendido, portanto, que a mudança da Corte e a presença real implicavam necessariamente na elevação imediata da nova sede do governo à dignidade de Reino. Ele, entretanto, não ousou especificar de qual reino se tratava: a capitania da Bahia ou a do Rio de Janeiro? O vice-reino do Brasil?

A outra autoridade insular a referir-se oficialmente sobre o assunto foi o governador Luís Joaquim Lisboa. Ele parece ter aguardado as notícias oficiais para se pronunciar sobre o assunto. Em setembro de 1808, enviou ao Rio de Janeiro um breve ofício no qual lamentava a invasão franco-hispânica, que impusera ao Príncipe o fim de sua política de neutralidade e a sua ida para a cidade do Rio de Janeiro, onde fixara "por ora o seu Trono" (AHU, São Tomé, caixa 43). O caráter provisório da drástica medida da transferência da Corte para o outro lado do Atlântico destaca-se nesse brevíssimo documento de Luís Joaquim Lisboa.

Se esse importante acontecimento foi representado com aparente frieza, o mesmo não ocorreu quando das notícias da primeira expulsão dos franceses. Aquela periférica capitania só foi informada sobre o assunto em março de 1809, por ofício do Capitão General da Capitania de Pernambuco.

A euforia de Joaquim Lisboa era explícita. Ele explicou aquele evento como resultado da dedicação dos "moradores no Reino de Portugal (...), que quase geralmente se levantaram contra os injustos opressores da Liberdade da sua Pátria". A iniciativa dos fiéis vassalos teria colocado aos pés de seu soberano "os estandartes" da "Tirania pérfida" que avançara contra Portugal, cujo objetivo principal era a "ruína" da pessoa do Príncipe Regente. A defesa do reino, afirmaria ainda Luís Joaquim Lisboa, era decorrente do reconhecimento de D. João como soberano legítimo de Portugal:

(...) V. A. R. é Legítimo Herdeiro dos Imortais Soberanos Senhores Reis D. João IV e D. João, o Primeiro, que V. A. R. Governa os seus dilatados Domínios pelo Direito de Representação, que V. A. R. não é menos virtuoso que aqueles seus Augustos Avós (...).(AHU, São Tomé, caixa 43).

O documento associava D. João VI aos dois soberanos portugueses tradicionalmente evocados pelos defensores da doutrina da soberania inicial do povo, o dito "direito de representação" (CALAFATE, 2001:48). Ou seja, pelos que defendiam que o poder do rei era originário do pacto efetivado entre a sociedade e o seu soberano, e não do direito de conquista ou diretamente de Deus.

O governador continuou sua carta expondo que, se o soberano provava ser merecedor do poder a ele confiado, o seu povo igualmente demonstrara seu valor ao defender os direitos deste mesmo senhor. A expulsão dos franceses podia ser interpretada como a atualização do pacto existente entre o Rei e o seu povo, o que seria consumado com o retorno de D. João a Portugal:

Queira o Céu que assim como tivemos a indizível felicidade de ver a Vossa Alteza Real publicamente aclamado pelos seus fiéis vassalos, domadores dos tiranos das Nações, assim tenhamos a satisfação de ver com brevidade a V. A. R. adorado dos seus mesmos vassalos no excelso Trono dos Seus Gloriosíssimos Maiores no Campo da honra, tantas vezes regado pelo precioso sangue de recomendáveis heróis que morreram nos braços da vitória...

Este tema foi retomado em ofício de 30 de junho de 1810, na resposta do governador à carta régia de seis de janeiro do ano anterior, que informava quanto às circunstâncias da expulsão dos franceses e solicitava a organização de cerimônias comemorativas. A resposta do governador foi muito próxima da anterior, contudo, algumas diferenças merecem ser observadas (AHU, São Tomé e Príncipe, caixa 44).

O tom da segunda carta é mais contido. A "restauração" do reino foi explicada então como resultado da "Lealdade Portuguesa coadjuvada pela bravura e heroicidade dos Ingleses e Castelhanos". Deixava, portanto, de ser fruto da vontade e iniciativa dos vassalos, e era relacionada a articulações políticas efetivadas pelo próprio soberano e por seus agentes.

O papel do soberano fora destacado. O rei continuava a ser a cabeça da monarquia a despeito da distância e das condições em que se encontrava e a ação dos "povos portugueses" decorria do amor e da fidelidade dos seus vassalos. O valor de D. João não era reafirmado, posto ser um dado incontestável. A concepção pactualista do poder régio continuava presente - como indica a referência a D. João I e a D. João IV -, no entanto, aquele momento perdia o sentido de atualização do pacto. A carta não trouxe também referências quanto às expectativas de retorno da Corte para Portugal.

Também é possível perceber nesta correspondência a presença de palavras e expressões que fariam parte do vocabulário político das discussões dos anos vinte daquele século no mundo português: "ecos da liberdade", "grilhões da tirania", patriotismo, pátria, entre outros.

O uso corrente para a palavra pátria, por exemplo, era o de lugar de nascimento. Contudo, o documento sugere o uso deste vocábulo em sentido mais próximo ao do moderno. Na primeira correspondência, Joaquim Lisboa usou o termo referindo-se ao conjunto dos moradores do Reino de Portugal que "se levantaram contra os injustos opressores da Liberdade da sua Pátria". Na segunda carta, o sentido seria ainda mais largo, envolvendo portugueses de diferentes partes do império:

Os corações e as vozes de todos os fiéis vassalos de Vossa Alteza Real habitantes nestas Colônias [São Tomé e Príncipe] já tinham patenteado toda a extensão da Sua alegria quando por primeira vez fizeram os feriram os seus ouvidos os ecos da liberdade da Pátria... (AHU, São Tomé e Príncipe, caixa 44)

As investidas napoleônicas na Península Ibérica instigaram o uso de expressões pertencentes ao vocabulário revolucionário de então. Cerca de "2.000 panfletos, folhas volantes, caricaturas e proclamações circularam em Portugal durante a ocupação francesa, e vários eram traduções de obras espanholas." (ARAÚJO, 1998, 43). Um exemplo desses folhetos foi o Catecismo civil que circulou em Lisboa em 1808, ano em que fora publicado na Espanha.

Tal escrito apregoava que o espanhol deveria ser conduzido pela sua "sábia mãe, a pátria", definida como "o ajuntamento ou congregação de muitos Povos regidos por El Rei e governados por umas mesmas leis", cujos interesses deveriam dizer respeito a todos os povos que a constituíam, em decorrência da "obrigação natural que têm todos de amparar-se, ajudar-se e defender-se reciprocamente." O combate aos invasores caberia aos filhos dessa "mãe", que deveriam fazer uso, inclusive, das armas com o objetivo de salvar a "Pátria", defender o "Estado" e os "irmãos" e alcançar a "glória imortal da Nação". Nessa comunidade, o "melhor e mais nobre" filho seria aquele que suportasse os sacrifícios por ela "com mais honra, valor e desinteresse próprio, seja quem for".7

Outra provável fonte de contato com o vocabulário revolucionário era, nos termos do governador Luis Lisboa, o "imenso número de navios Ingleses e Americanos que diária e sucessivamente" aportavam na capitania até finais de 1807 (AHU, caixa 43).

As correspondências que se seguiram não mencionaram os desdobramentos da Guerra Peninsular. No entanto, logo a capitania sentiria algumas consequências do deslocamento do poder do império rumo ao ocidente e o aumento do poder das elites brasileiras.

Duas medidas tomadas ainda em Salvador por D. João atingiam a capitania. Primeiro, decidiu-se pelo fim da obrigação dos navios que comercializavam com a Costa da Mina de aportarem em São Tomé. Essa norma comumente era descumprida por ser considerada pelos homens de negócios da Praça de Salvador como muito onerosa em decorrência do aumento do tempo de viagem e dos riscos de contaminação dos escravos pelas famosas moléstias daquelas ilhas (NEVES, 1998: 101). Efetivamente, a taxa de mortandade dos escravos provenientes dos portos da capitania era o dobro dos demais portos da África Ocidental (FLORENTINO, RIBEIRO, SILVA, 2004: 108).

A lei de 1808 manteve a obrigatoriedade do pagamento dos direitos destinados àquelas ilhas, mas os mesmos seriam efetivados na Bahia. A renda obtida seria remetida ao governador de São Tomé pela Junta da Fazenda da Bahia. Contudo, tais envios eram demorados e irregulares.

O governador Luís Joaquim Lisboa lamentou profundamente tal decisão. Ele a considerou como um golpe violento para a manutenção das ilhas, capaz de levá-las à completa ruína. A capitania ficaria ainda mais isolada do resto do império e faltariam recursos para o pagamento dos diferentes agentes régios. A governabilidade das ilhas estava em risco. Os resgates de escravos na costa, usados na agricultura local, também seriam prejudicados pela falta de mercadorias usadas nesse comércio. Por fim, os produtores locais perdiam importantes compradores de víveres usados no tráfico de escravos.

Efetivamente, apenas no final de novembro de 1811 chegaria a São Tomé uma remessa mais significativa de dinheiro para a capitania: cinco contos de réis em moedas de três patacas de cobre provincial para servir de giro ao comércio.

A segunda medida tomada ainda em janeiro de 1808 dizia respeito à proibição do comércio com estrangeiros na ilha. A prática desse comércio se dava desde os quinhentos, como autorizava o foral da ilha. O governador argumentou que os dízimos recolhidos pelo comércio com ingleses e norte-americanos - estes últimos compravam principalmente café - constituíam-se na principal renda do governo local. Os navios portugueses raramente ali aportavam e, quando o faziam, não traziam dinheiro e pagavam os tributos na Bahia. Apelou então para a legitimidade daquela prática, que contava então com quase três séculos e fora determinada por "ordens repetidas e nunca alteradas".
Matéria completa no endereço
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-90742009000100003&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt


Revista Historia - UNESP

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