Por Michael Finkel
"Viva respeitado ou morra como mártir", dizem as letras vermelhas no capuz da Frente Pembela Islam. Todo ano, antes e durante o sagrado mês do Ramadã, esses autonomeados guardiões se reúnem em bairros de Jacarta para intimidar os "fornecedores do vício", entre eles donos de bares e prostitutas. Em 2008, seu líder foi preso por incitar a violência.
Foto de James Nachtwey
Exceto, talvez, em Aceh, que parece acelerar sua islamização e até delibera sobre a amputação cirúrgica de mãos como pena corânica por roubo. Devi acha uma boa ideia. A lei sharia, garante ela, tornou Banda Aceh mais reverente e bem mais segura. Ela torce por uma expansão dessas leis. "Decepar mãos nas circunstâncias certas serviria de lição a outros", diz ela. "A criminalidade diminuiria muito." O apedrejamento por adultério também seria bem-vindo. "Quem aceita o Islã tem de aceitar todas as leis", arremata ela.
O islã fundamentalista é uma importação mais ou menos recente na Indonésia, onde por muito tempo predominou uma forma de religião menos rígida mas não menos fervorosa. "Islã Sorridente", é como muitos a chamam. O islamismo chegou à Indonésia pelo mar. O solo vulcânico é ideal ao cultivo de especiarias; e, no século 12, a maioria dos mercadores que levavam a pimenta, a noz-moscada e o cravo-da-índia indonésios ao Ocidente era muçulmana do Oriente Médio. Para os produtores indonésios, era vantajoso converter-se ao islamismo: os parceiros de negócios davam preferência aos correligionários.
A difusão do islamismo foi gradual e pacífica. O que levou um frenético século com muito derramamento de sangue no Oriente Médio demorou tranquilos 500 anos na Indonésia. Espalhadas por quase 5 mil quilômetros de oceano, as ilhas abrigavam centenas de grupos étnicos e práticas religiosas. O islamismo ajudou a integrar povos antes separados em uma única cultura regional. Na época em que a Companhia Holandesa das Índias Orientais assumiu o controle do comércio de especiarias no século 17, a religião disseminara-se por quase todas as sociedades costeiras. "Aqui, o Islã penetrou com tanto êxito porque se conciliou com a cultura e as religiões existentes", diz Syafii Anwar, diretor executivo do Centro Internacional para o Islã e o Pluralismo em Jacarta.
Mas, quando o realinhamento global ao fim da Segunda Guerra Mundial abriu caminho para que a Indonésia se libertasse da Holanda, o primeiro presidente do país, Sukarno, preferiu não instituir nenhuma religião oficial. Achava que criar uma república islâmica desagradaria à minoria não muçulmana. Ele próprio era filho de pai muçulmano e tinha antepassados hinduístas balineses do lado materno. O segundo presidente, Suharto, assumiu o poder, em 1966, após uma explosiva violência anticomunista que matou 500 mil pessoas. Por algum tempo, ele foi capaz de reprimir as hostilidades e promover o crescimento econômico. Mas seu regime era repressivo e militarizado. Sua renúncia, em 1998, foi desencadeada por um movimento de alguns milhões de ativistas pró-democracia liderado por estudantes, a maioria muçulmana - evento que historiadores consideram fundamental no Islã contemporâneo.
Mas o fim do regime de Suharto também aprofundou na comunidade muçulmana uma cisão entre, de um lado, os que apoiavam a tradicional fusão indonésia do islamismo com crenças locais e, de outro, os que desejavam "purificar o islamismo" despojando-o de influências regionais. O embate prossegue até hoje, insuflado em parte por ideias e práticas derivadas do rígido wahabismo da Arábia Saudita, que fundou universidades e internatos islâmicos por toda Indonésia.
Mas, na maior parte do país, o islamismo continua fundido a numerosas crenças e tradições. Em muitos locais, o chamado à oração muçulmano é precedido de batidas de tambor, antes associadas a cerimônias nativas. Um grupo islâmico da ilha de Lombok toma um tradicional vinho feito de uma palmeira em suas celebrações, embora o Corão condene a ingestão de álcool.
A expressão mais representativa do Islã Sorridente talvez esteja em Jacarta, a caótica e agitada capital onde estão sendo construídos shoppings e cinemas faraônicos com nomes como Hypermart e Blitzmegaplex e onde arranha-céus de luxo convivem com favelas lotadas. Ali, numa ruazinha de cascalho, Ki Demit instalou seu empoeirado e atravancado escritório. Ki é um título honorífico dado a místicos indonésios. Ki Demit tem 28 anos e seu nome significa "Pequeno Fantasma". Ele é filho de outro ki - o Grande Fantasma - e neto e bisneto de místicos. "Venho da linhagem mais mágica da Indonésia", diz.
Na maior parte do Oriente Médio, uma afirmação dessas seria uma heresia: qualquer paranormalidade não atribuída a Alá é proibida no Islã. Mas, na sala de espera de Ki Demit, lê-se o menu de seus feitiços. Dentre as opções: santet (encantamento), pelet (conquistar pessoa amada), kekebalan (invulnerabilidade contra ferimentos) e kejantanan (ótimo desempenho sexual). Uma das paredes está coberta com fotos de celebridades - uma atriz de novela, um cantor, um comediante - que solicitaram os préstimos de Ki Demit ou de seu pai.
Os clientes de Ki Demit sentam-se diante dele no chão, de pernas cruzadas. Um ventilador geme no teto da sala abarrotada de velas, frascos de perfume, contas de oração e facas antigas. "Posso ler a mente das pessoas e ver o futuro", diz. "Mas não quero competir com Deus. Sou apenas o mediador Dele." Na conclusão de muitas de suas sessões ele dá ao cliente um punhado de flores desidratadas que diz estarem imbuídas de poderes sobrenaturais. Assim que a pessoa toma um banho de imersão com aquelas flores, ele instrui, a magia começa a fazer efeito. "Sou um bom muçulmano, ciente das leis", garante Ki Demit. "É claro que oro cinco vezes ao dia. É claro que observo o Ramadã. Mas muito antes de o Islã chegar à Indonésia meus ancestrais já praticavam esses rituais. Meu pai preparou-me para ser um ki, e quando eu tiver um filho o prepararei também. "Sigo o islamismo com seriedade, mas não abro mão dos meus poderes. Não se pode brincar com esse poder."
Do outro lado da cidade situa-se o estúdio de televisão onde a cantora e apresentadora Dorce Gamalama gravava seu programa diário. Ela é a Oprah Winfrey da Indonésia, e é mais conhecida por seu apelido, Bunda, que significa "mãe". Gravava o programa com uma plateia de estúdio composta sobretudo de mulheres de meia-idade de lenço na cabeça. As muçulmanas conservadoras parecem ser suas maiores fãs, pois, debaixo daquela esfuziante energia e dos sorrisos fulgentes, Dorce é também uma muçulmana fervorosa. Construiu sua própria mesquita perto de casa, em Jacarta.
E tem mais: Dorce nasceu homem. Ela é transexual. Viveu com seu "problema", como ela o chama, a vida toda, até que, na casa dos 20 anos de idade, finalmente se submeteu a uma cirurgia de mudança de sexo. Foi casada duas vezes, com homens. Possui 300 pares de sapato e mil perucas. Ela canta, dança e conta piadas um tanto apimentadas. E de vez em quando se permite cometer alguma gafe hilária.
Seu talk-show, com participação de artistas de cinema, músicos e atletas, ditava os assuntos do momento na Indonésia. De certa forma, sua condição peculiar lhe permitia expressar abertamente o que em geral talvez ficasse sem ser dito. Ela tagarelava sobre problemas conjugais, falava com franqueza sobre sexo. ("Mulheres, se vocês querem fazer amor, não esperem seu homem convidar. Tomem a iniciativa, peçam.")
No camarim depois do programa, ela tirava os sapatos e recebia uma avalanche de admiradores. Um rapaz de 19 anos lhe disse: "Gosto de seu programa porque você é uma gata". Uma senhora de 90 anos pediu: "Só quero lhe dar um beijo". Ela fala quase sem parar, relembra seus velhos tempos no mundo artístico, quando seu trabalho era entreter os passageiros em voos fretados para Meca. Só mesmo na Indonésia um trovador transexual poderia ser considerado uma diversão apropriada para peregrinos na hajj.
"Sou uma pessoa normal", diz ela. "Eu me comporto como mulher. E até pudica eu sou! Comigo, nada de sexo antes do casamento." Pergunto se sua fé vem antes da carreira, e ela fica indignada. "Minha vida é para Deus", responde.
É isso que todos dizem: o ativista, o místico, a patrulheira da sharia, a estrela de TV. Unidos em sua devoção a Deus, divididos na opinião de como se deve expressar tal devoção. A versão do islamismo que conquistar a mente da geração seguinte - o tolerante Islã Sorridente ou a vertente austera e por vezes violenta defendida pelos extremistas - poderá determinar o caminho trilhado pela Indonésia e, talvez, servir de modelo ao futuro do islamismo no mundo. Um bom lugar para avaliar os rumos são os internatos islâmicos do país, em especial o situado no fim de uma alameda bucólica em Ngruki, onde Abu Bakar Baasyir leciona.
O colégio é até bonito, com suas construções de tijolo pintadas de branco e telhas vermelhas e azuis na cobertura. Do lado de fora, no portão, um homem vende suco de gengibre num carrinho puxado por bicicleta. Na frente da mesquita da escola, bem no centro da propriedade, uma multicolorida profusão de sandálias de dedo aguarda em escaninhos de madeira. Gritos ecoam pela quadra de basquete. Cerca de 1,5 mil alunos, com ligeira predominância numérica de meninas, frequentam esse colégio que fornece educação equivalente ao segundo ciclo do ensino fundamental e ao ensino médio. Os alunos vivem em alojamentos, onde 20 ou 30 dormem em colchões no chão em cada quarto.
Noor Huda Ismail, de 36 anos, é especialista em assuntos de segurança no Sudeste Asiático e ex-aluno de Ngruki. Contratei-o para auxiliar na elaboração de entrevistas para esta reportagem. Depois da primeira explosão em Bali, o governo indonésio enviou uma equipe de investigadores para Ngruki. Os resultados foram inconclusivos. "Não havia nada de terrorismo no currículo", diz ele. "A face pública de Ngruki era como a de qualquer outra escola. Não havia nada clandestino - a menos que você fosse 'escolhido'."
Pois, quando estudava em Ngruki, Ismail foi escolhido. "Minha doutrinação ocorreu fora da sala de aula", conta ele. "Começou com pequenas reuniões, encontros de professores e alunos durante a prática de esportes e caminhadas fora da escola. Disseram-me que nossos inimigos são fortes." Ele era um candidato ideal, pensa, porque sabia falar inglês e árabe.
"Pouco antes de me formar, fui convidado a ir à casa de um dos professores", relata ele. "Sentei-me em um tapete no chão. Havia pouca luz. Éramos três estudantes presentes. A mensagem foi que o Islã é nossa única salvação possível, e que, se eu quisesse ir para o céu, precisava entrar para o esquadrão. Eu tinha 15 anos." Um dos colegas de quarto de Ismail era Hutumo Pamungkas, que hoje cumpre pena de prisão perpétua por ter participado nas explosões em Bali. "É espantoso que mais dos nossos não tenham aderido ao extremismo", diz Ismail.
Robert W. Hefner, antropólogo que estudou política muçulmana na Indonésia, acredita que o extremismo muçulmano perdeu boa parte do ímpeto, embora talvez seja impossível impedir todos os ataques. Crédito seja dado à polícia indonésia, que não só prendeu centenas de islamitas violentos mas também conseguiu "desradicalizar" alguns ativistas detidos em troca de permissão para visitas conjugais e bolsas de estudo para os filhos. Mas essa mudança também resulta de um esforço de décadas por parte de educadores islâmicos para implementar reformas em suas escolas. Desde 2004, os estudantes que ingressam no sistema de ensino islâmico do Estado são obrigados a ter aulas de educação cívica, direitos humanos e democracia. Até Ngruki aceita as diretrizes do governo.
No fundo, talvez o que aconteça é que a Indonésia é grande e diversificada demais para aderir a qualquer definição estreita do islamismo. Até algo tão mundano quanto uma imitação indonésia do programa American Idol pode ser uma plataforma para a variedade islâmica. Durante temporada recente, as duas mulheres finalistas eram muçulmanas. Uma usava o véu; a outra, não. Ninguém pareceu se importar. Afinal, o lema nacional da Indonésia é "Bhinneka tunggal ika" - Unidade na diversidade.
"O islamismo na Indonésia é uma imensa tenda sob a qual todas as vozes podem falar umas com as outras", diz Robin Bush, da ONG Asia Foundation. Grupos marginais podem receber atenção desproporcional da mídia e deixar as pessoas com medo de denunciá-los, ressalta ela. Podem até mandar homens-bomba atacar hotéis. Mas seu alcance não chegou às urnas eleitorais.
Isso pode mudar. Contínua corrupção no governo, outro líder como Suharto, um imã que consiga congregar os insatisfeitos, qualquer dessas situações pode fazer a balança pender para o outro lado na Indonésia. "Se nosso governo secular não mostrar competência, a Jemaah Islamiyah terá mais recrutas a escolher”, diz Ismail. Creio que oscilaremos sempre", acrescenta ele. "Quando as influências ocidentais forem fortes demais, os elementos islâmicos erguerão a voz. Quando o islamismo falar muito alto, vozes mais seculares se farão ouvir. Será sempre assim. Sobe e desce, sobe e desce. Bem-vindo à Indonésia."
National Geographic Brasil
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