Por Michael Finkel
Foto de James Nachtwey
A tradição exige que as meninas andem cobertas em Pesantren Sunanul Husna, escola fundamentalista em Jacarta. A tendência a um islamismo mais rigoroso não se traduz em apoio a militantes.
Ele mesmo abre a porta. Sem guardas armados, sem sumiço. Abu Bakar Baasyir vive numa casa térrea simples no terreno do internato que ele ajudou a fundar em Ngruki, um pacato vilarejo no interior montanhoso de Java, a principal ilha da Indonésia. Magro como um caniço, de cavanhaque branco e atilados olhos escuros magnificados por óculos de aros dourados, Baasyir, de 71 anos, é o presumido líder espiri-tual do grupo ativista islâmico Jemaah Islamiyah. O grupo foi associado a no mínimo seis atentados a bomba na Indonésia na última década, entre eles as devastadoras explosões de discotecas em Bali em 2002 e, talvez, o ataque de homens-bomba a hotéis de luxo em Jacarta em julho passado.
Baasyir nega envolvimento na violência e evita ligações comprováveis com quaisquer ataques. Já esteve preso - duas breves temporadas de menos de quatro anos no total - por acusações menos graves, sem relação direta com as explosões. Mas o internato islâmico que fundou foi o eixo de uma rede jihadista decidida a criar um Estado islâmico no Sudeste Asiático, e vários diplomados de Ngruki foram condenados por participar de grandes atentados. Sem dúvida, os ensinamentos de Baasyir têm inspirado a centenas, talvez milhares, de mortes e a ataques contra grupos muçulmanos "dissidentes" que não seguem a corrente islâmica predominante. Ainda assim, ele vem em pessoa abrir a porta. "Entre", diz ele em bahasa indonesia, a língua oficial do país. "Tome um suco."
Baasyir usa barrete, uma camisa comprida e larga e um alentado relógio de pulso. Na sala de estar não há cadeiras nem ornamentos, só paredes brancas, um vaso de planta e uma mesa baixa com uma vasilha de plástico com biscoitos de gergelim. Senta-se no chão, descalço, sobre um tapete verde. Seu filho adulto, Abdul Rahim, serve suco de melão em copos transparentes.
"Não existe violência no Islã", diz Baasyr com voz grave e rouca e meneios de maestro na mão esquerda. "Mas, diante de obstáculos impostos pelos inimigos, temos o direito de responder com violência. É o que chamamos de jihad. Não há maior nobreza na vida do que morrer como mártir pela jihad." Ele enaltece o atentado de 11 de setembro nos Estados Unidos e as explosões em Bali. Não foram atos terroristas, garante. Foram "reações ao que fizeram os inimigos do Islã".
A Indonésia ocupa um canto remoto do mapa-múndi com suas miríades de ilhas ao norte da Austrália, mas a violência ali perpetrada pode ter repercussões globais. É o mais populoso dos países islâmicos, com 207 milhões de muçulmanos - 36 milhões a mais que a segunda maior nação do Islã, o Paquistão, e dois terços a mais que todos os países do Oriente Médio juntos. É uma nação devotíssima. Também é uma florescente democracia, a terceira maior do mundo depois de Índia e Estados Unidos.
Mas é uma democracia jovem, pouco mais de uma década após a deposição do despótico Suharto. O fim do poder ditatorial deu aos indonésios nova liberdade de expressão, mas também afrouxou as rédeas de radicais, como Baasyr, que havia apurado suas ideias extremistas durante um longo exílio na Malásia, para onde fugira depois de ser preso por fazer oposição a Suharto. Um ano após as explosões de Bali em 2002, uma outra atingiu o hotel J.W. Marriott em Jacarta, seguida em 2004 por um ataque à embaixada australiana e por um triplo atentado suicida em 2005, em Bali. Há apenas alguns meses, após um longo hiato que levou muitos especialistas a supor que a ameaça do terrorismo se reduzira, foram bombardeados o hotel Ritz-Carlton e mais uma vez o J.W. Marriott. Apesar de serem eventos esparsos em um país vasto, vale um provérbio local que se traduz mais ou menos assim: "Basta uma gota de veneno para estragar todo o leite".
Por vezes, as 17,5 mil ilhas da Indonésia lembram uma porção de bolinhas de gude numa mesa bamba: à menor inclinação saem todas rolando na mesma direção. Em 2005, a Indonésia parecia pender para o radicalismo islâmico, fomentando no Ocidente o temor de que o país se transformasse em reduto de terroristas. Por várias décadas, a sociedade indonésia vinha se tornando mais declaradamente islâmica. Fiéis passaram a lotar as mesquitas, e o modo de vestir muçulmano entrou em voga. Nos anos 1990, um número crescente de governos distritais começou a impor regulamentações inspiradas na sharia, a lei islâmica, e o apoio a partidos políticos islâmicos cresceu. Cada vez mais, grupos ativistas islâmicos adeptos da luta violenta para remoldar a Indonésia como uma república islâmica pareciam abafar as vozes da maioria dos muçulmanos indonésios para quem sua fé pode coexistir com a modernidade e os valores democráticos.
Nestes últimos anos, porém, embora os indonésios continuem a abraçar a fé islâmica, evidenciou-se que a maioria não quer nenhuma religião imposta pela esfera política. "Muita gente identifica devoção muçulmana com radicalismo", explica Sidney Jones, especialista em Indonésia da ONG International Crisis Group. "A Indonésia está cheia de exemplos que refutam essa ideia." Diante de medidas de políticos islâmicos para regulamentar o vestuário feminino e proibir práticas como a ioga, vozes moderadas começaram a se manifestar. Nas eleições parlamentares em abril passado, os candidatos apoiados por organizações muçulmanas receberam menos de 23% dos votos, em comparação com 38% em 2004.
Apesar dos reveses dos ataques a bomba recentes, a Indonésia vem sendo vista como uma história de sucesso na repressão do extremismo violento. Autoridades prenderam no mínimo 200 membros da Jemaah Islamiyah nos últimos anos, embora alguns fugitivos permaneçam à solta. Muitos radicais deixaram de apoiar atentados terroristas para defender a aplicação da lei islâmica. Até Abu Bakar Baasyir, desde que saiu da prisão em 2006, distanciou-se das facções mais militantes da Jemaah Islamiyah e começou a preconizar a luta pela sharia como o caminho para os islamitas atingirem seu objetivo de transformar o país democrático numa república islâmica.
Ele acredita que qualquer corpo legislativo criado pelo homem - uma assembleia legislativa, uma corte de Justiça - é uma afronta à soberania de Deus. "Alá enviou um manual para o modo de tratar os seres humanos", diz ele. "O manual é o Corão." Não há, segundo ele, necessidade de nenhum outro código legal. "Islamismo e democracia não podem coexistir", conclui. Agora que Suharto perdeu o poder e o governo centralizado está enfraquecido, cada distrito pode decidir sobre a adoção de regulamentações baseadas na sharia. Onde ela foi imposta, diz Baasyr, tudo melhorou e muito. "Vá ver e comprove", sugere.
A província de Aceh, na proa ocidental do arquipélago indonésio, hoje talvez seja mais conhecida por ter sido atingida em cheio pelo tsunami de dezembro de 2004, que matou mais de 160 mil indonésios. Mas por séculos a região de Aceh foi célebre como uma das áreas muçulmanas mais devotas de toda Ásia. Diz-se de Aceh que é a "varanda de Meca", e muitos de seus habitantes parecem viver sentados de costas para o resto da Indonésia, seguindo um islamismo mais próximo àquele do outro lado do oceano, na península Arábica. Em Aceh, mais que em qualquer outra parte das ilhas indonésias, observa-se um rigoroso código de conduta islâmico. Em 1999, o governo nacional preparou o caminho para que Aceh se tornasse a primeira província do país a instituir a sharia como lei criminal.
Devi Faradila, de 35 anos, é uma elegante mãe de dois filhos e parlamentar da província de Aceh. Lidera a unidade feminina da Patrulha da Sharia em Banda Aceh, uma força municipal incumbida de fiscalizar a obediência às regras locais na capital da província. Numa sexta-feira típica - dia em que, pela lei de Aceh, todos os homens muçulmanos devem ir à mesquita -, Devi prepara sua unidade para o cumprimento do dever mandando parar um jogo de pingue-pongue no posto da patrulha e chamando a atenção de duas funcionárias que estão mandando mensagens de texto pelo celular.
Devi e 13 patrulheiras completam com um boné preto sua farda - sapato preto, calça preta, blusa preta e lenço verde-limão na cabeça - e se espremem numa picape equipada com alto-falantes. Devi, no banco do motorista, calça luvas de couro, retoca o batom e põe óculos de sol espelhados. O veículo percorre a cidade lentamente, com Devi transmitindo uma constante torrente de avisos pelos alto-falantes: "Homens, apressem-se! As orações de sexta-feira começarão logo". "Parem todas as atividades. É hora da prece." Os homens nas ruas ou lojas viram a cabeça e fitam o carro. Alguns olham o relógio. "É sexta-feira. Orar é obrigatório para os homens."
Aceh é a única província indonésia com uma unidade da Patrulha da Sharia. Oitocentos patrulheiros, a maioria homem, policiam a região dia e noite. Mas ao meio-dia de sexta-feira, o sabá muçulmano, a imposição da sharia é deixada para as mulheres, que podem orar em casa. Devi circunda a grande mesquita de cinco domos no centro da cidade e segue para a beira-mar - um cenário deslumbrante, de montanhas verdejantes erguendo-se do oceano, mas ao mesmo tempo pungente, com vastos trechos transformados em pântano pelo tsunami. Uma patrulheira na boleia avista uma adolescente na calçada com a cabeça descoberta - uma temeridade nessa cidade em que quase toda mulher muçulmana anda coberta. A picape freia de pronto. "Véu! Véu! Véu!", gritam as patrulheiras, severas. A garota parece apavorada. Indica com gestos que se cobrirá, e a picape prossegue seu caminho.
Aproxima-se o momento da oração, e as recomendações de Devi agora são menos polidas. "Feche a loja!" "Procure a mesquita mais próxima!" O veículo estaciona na frente de uma construção de dois andares que abriga um mercado de peixe e um ateliê de artista. O grupo salta da picape - um misto de As Panteras e milícia talibã. Dois homens são interpelados. São peixeiros, alegam, e estão fedendo demais para entrar numa mesquita lotada. As mulheres dão-lhes uma intimação mesmo assim.
Um livreto amplamente distribuído, o Resumo da Sharia Islâmica em Aceh, cuja capa mostra um homem sendo açoitado, delineia as regras. Ser pego jogando: de seis a 12 chibatadas. Misturar-se impropriamente ao sexo oposto: de três a nove chibatadas. Ingerir álcool: 40 chibatadas. Faltar às orações por três sextas-feiras seguidas: três chibatadas. O chicote, segundo o livreto, deve ser feito de ratã e ter cerca de 6 a 8 milímetros de espessura. No posto da Patrulha da Sharia em Banda Aceh, dois chicotes do comprimento de uma bengala e flexíveis como um mata-moscas estão à mostra. Um álbum de fotos exibe inúmeras imagens de açoitamentos: mais de 100 desde 2005. O homem que os aplica usa túnica marrom-avermelhada, luvas brancas e um capuz que lhe esconde a cabeça. As multidões são enormes. Pesquisas de opinião indicam que, embora a maioria dos indonésios afirme querer a sharia como alicerce da vida pública, eles se incomodam com a imposição desses castigos físicos. Fora de Aceh, a adoção de regulamentações de bases religiosas tem sido esparsa. Alguns distritos proíbem o jogo ou a bebida ou exigem o uso de véu pelas mulheres. Mas, em geral, tais regras são impostas por políticos laicos, que as veem como um modo de agradar a eleitores devotos ou desviar a atenção da corrupção. No futuro, dizem especialistas, apelar para o Islã poderá não ter a mesma força populista dos anos anteriores.
National Geographic Brasil
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