quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Escravos na roça, anjos na escola*

Elizabeth Ferreira Linhares
RESUMO

Baseado em um estudo de caso, este artigo trata do processo de mudança e da construção dos diferentes contextos sociais e os respectivos significados da infância e da escola para um grupo de antigos colonos da cafeicultura fluminense, atualmente beneficiário de um assentamento rural na região serrana do estado. Considerando o desenvolvimento histórico e social do colonato e a progressiva desconstrução das relações que o constituíam, são analisadas as condições vividas pelas crianças de diferentes gerações, com ênfase especial nas mudanças operadas no papel desempenhado e no significado da escola para este grupo, e suas implicações para a vida cotidiana das crianças e para as próprias representações sobre a infância.

Palavras-chave: Colonato; Reforma agrária; Infância; Escolarização.

Introdução

O presente artigo tem por objetivo analisar os significados da infância e da escolarização para um grupo de ex-colonos da cafeicultura fluminense atualmente assentados em Santo Inácio, região serrana do Rio de Janeiro, considerando o processo de mudança social por que passaram em sua trajetória recente. Entre os diversos fatores participantes desse processo, destacam-se o atual acesso à escolarização continuada por parte das novas gerações, a ampliação das redes de sociabilidade do grupo e as mudanças operadas na sua organização intradoméstica, sobretudo no que diz respeito às relações intergeracionais. Trata-se de considerar, de um lado, as novas e diferentes condições enfrentadas pelas crianças e o modo como essas condições podem se relacionar ou produzir alterações significativas no processo de socialização, no ciclo de desenvolvimento e, portanto, nas concepções de infância encontradas junto ao grupo; e, de outro lado, como essas mudanças são percebidas pelos adultos e o que representam para as condições vividas por eles no assentamento, ou seja, a partir da reforma agrária.

O assentamento Santo Inácio foi criado em 1987, com a desapropriação de parte de uma antiga fazenda do município de Trajano de Moraes, após um longo e intenso período de conflitos entre os trabalhadores e o fazendeiro – processo que envolveu diferentes níveis de enfrentamento e por meio do qual se fez a organização do movimento sindical no município. A quase totalidade das famílias assentadas é oriunda do colonato dessa antiga região cafeicultora, particularmente do próprio município de Trajano. Entre elas, uma grande parte (66,9%) é composta por antigos colonos da fazenda1, que, no processo de decadência do café e da progressiva ruptura com as condições impostas pelo colonato, permaneceu na terra, resistindo às diversas tentativas de expulsão promovidas pelo fazendeiro2.

Ao reunirmos, ou designarmos, esse grupo de trabalhadores sob as categorias de "ex-colonos" e "assentados", podemos ser levados a supor, equivocadamente, um conjunto de indivíduos com origens, trajetórias sociais e referenciais culturais rigorosamente comuns. Na verdade, esse grupo guarda importantes diferenças em suas origens históricas, e, dependendo do recuo que façamos no tempo a fim de considerar um possível período "inicial", essas diferenças ficarão mais ou menos evidentes3.

A partir da abolição oficial da escravatura, as fazendas cafeicultoras do município reorganizaram sua produção com base no colonato, incorporando trabalhadores de pelo menos três origens distintas: os libertos, ex-escravos de origem africana que permaneceram na região em busca de trabalho após a abolição; imigrantes europeus, principalmente espanhóis e italianos, recém-chegados ao Brasil ou vindos do Espírito Santo, onde alguns já haviam trabalhado na lavoura de café; e ex-pequenos sitiantes, de origens diversas, cujas lavouras se inviabilizaram e foram perdidas com a expansão da lavoura cafeeira de exportação e o predomínio dos grandes latifúndios na região (cf. Stein, 1961; Pinheiro, 1993). Em comum, essencialmente, esses trabalhadores partilhavam, com suas famílias, a condição social de excluídos, de lavradores sem terra para lavrar, e a entrada na condição de colono como única forma, naquele período, de acesso à terra, ao trabalho e, portanto, à sua sobrevivência e reprodução.

A noção de "grupo" aqui utilizada com referência aos ex-colonos não tem em vista portanto o apagamento das suas diferenças internas, mas a sinalização de um conjunto de condições comuns, partilhado por todos aqueles cuja identidade – colono de fazendeiro – se construía pelo pertencimento àquele mundo da fazenda, organizado em torno da (e submetido à) figura central do fazendeiro, ou seja, a partir da condição fundamental de pertencerem a famílias de lavradores, há várias gerações (o que significa tratar-se de famílias cujo capital cultural e técnico se dirigia e se restringia essencialmente à vida e ao trabalho na lavoura), sem terra para lavrar e, portanto, sujeitos às regras e às condições impostas pelos fazendeiros por meio do colonato4. Esse elemento comum, embora não apagasse as diferenças sem dúvida existentes, era em grande parte determinante das condições e do estilo de vida dessas famílias, marcado por uma rotina pesada de serviços e obrigações, na casa e na lavoura, da qual as crianças participavam e eram peças fundamentais; e por um relativo fechamento do grupo, cuja sociabilidade se restringia quase que exclusivamente à sua rede de próximos. A escola, dentro daquele universo, embora progressivamente valorizada, representava um caminho de abertura e era percebida por grande parte dos pais como uma espécie de ameaça, sobretudo para as meninas.



A infância no colonato

A nossa vida foi difícil. Contando, ninguém acredita, só quem viu, né, é que sabe a vida que nós passamos... Eu mesma,eu era a escrava da casa, né? [...] Então, eu era tudo da casa.
DORA, 49 anos

As condições enfrentadas pelas crianças no colonato eram, assim, genericamente marcadas, de um lado, pela precoce participação nos trabalhos domésticos e na lavoura; e, de outro, por um cotidiano quase exclusivamente vivido e gerido no interior do próprio grupo, incluindo-se aspectos da vida relacionados com a alimentação, a saúde, a educação, a religiosidade, o lazer e as diferentes práticas e espaços de sociabilidade cotidiana. Dentro desse quadro, o seu ciclo de vida era essencialmente demarcado, em primeiro lugar, pelo desenvolvimento da sua capacidade de participação e ajuda nas muitas dimensões da vida em que era necessário gerir e produzir para então consumir – nesse período, o que não fosse possível produzir no interior do grupo estava em grande parte fora do seu alcance.

A condição de criança era nesse nível essencialmente identificada com a condição de não ter ainda uma efetiva responsabilidade sobre os serviços cotidianos, da casa ou da lavoura, cuja execução, por parte da criança a partir de uma determinada idade (em torno dos 7 anos), era em princípio percebida como ajuda, e não como trabalho. As crianças, quando maiorzinhas, ajudavam, e esta era a forma por excelência de aprenderem os seus ofícios e serem socializadas nos seus respectivos papéis; e os adultos trabalhavam, o que significava assumir por conta própria a absoluta responsabilidade pelos serviços que lhes fossem atribuídos. Por essa razão, era dentro dessa faixa, e dentro desses limites (entre cerca de 7 e 12 anos), que se aceitava que uma criança permanecesse dividida entre o trabalho e a escola5. Essa era a oposição que em princípio orientava a primeira divisão fundamental relacionada com as classificações do desenvolvimento infantil: crianças ajudavam e adultos trabalhavam. Mas as contingências e as dificuldades vividas pelo grupo naqueles tempos impunham uma participação "responsável" precoce das crianças nos trabalhos, e portanto (e na mesma medida) uma maior flexibilidade classificatória. A categoria grandinho, referida a crianças de cerca de 12 a 15 anos, representa, de certa forma, essa flexibilidade.

Do ponto de vista do trabalho, os grandinhos já não são crianças, ou seja, já pegaram a sua idade e se tornaram inteiramente responsáveis pelos serviços que assumem, seja na casa ou na lavoura, sendo em muitos casos remunerados em valores equivalentes aos de um adulto (sobretudo os meninos trabalhando pra fora, como diaristas na roça). Essa fase representa uma espécie de exercício da responsabilidade plena sobre os serviços assumidos. Mas, do ponto de vista sexual – e esse é o segundo fator demarcador do seu ciclo de desenvolvimento –, os grandinhos ainda não são considerados amadurecidos e são, nesse sentido, percebidos como crianças. Isso explica o caráter ambíguo da categoria "grande" no diminutivo; grandinho equivale de certo modo a um "adultinho", ou seja, é grande o suficiente para trabalhar, mas muito criança ainda para namorar ou ter qualquer outro interesse de caráter sexual. Muito chão eles terão ainda que percorrer até chegar ao ponto em que se torne possível pensar em se desligar da casa paterna para assumir uma ligação sexual, um casamento e a sua própria casa.

A partir de cerca de 15 anos, considerando-se os dois fatores mencionados (trabalho e sexo), rapazes e moças não são mais crianças. Do ponto de vista do trabalho, tornam-se de certo modo (e em graus variados) independentes; muitos nessa idade emigraram, em busca de emprego em cidades maiores; algumas moças passaram a trabalhar em casa de família, como domésticas; outros permaneceram, passando a fazer lavouras de meia em outras áreas, além de continuar a trabalhar nas lavouras paternas; mas a grande maioria, de um modo ou de outro, manteve a ligação, o compromisso e a contribuição permanente com o orçamento paterno. Do ponto de vista sexual, a partir dessa idade estão autorizados a namorar. As moças, em princípio consideradas "prontas" para assumir um casamento e a própria casa; os rapazes, embora "prontos" do ponto de vista da sua socialização e aprendizado, precisam ainda acumular recursos que lhes permitam assumir um casamento, o que passam aos poucos e na medida do possível (dependendo da composição e das necessidades, sempre priorizadas, do seu grupo doméstico) a fazer a partir dessa idade6.

Mas, do ponto de vista da sua relação com os pais, e sobretudo do compromisso assumido com a casa paterna – compromisso esse que é peça indispensável para a manutenção, a coesão e o equilíbrio do seu grupo doméstico de origem –, mantém-se uma condição de dominação que só virá a ser rompida a partir do casamento e da responsabilidade assim assumida em direção a um novo grupo doméstico, encerrando desse modo o seu ciclo de desenvolvimento infantil. Nesse aspecto, independentemente da sua idade cronológica, do quanto trabalhem e produzam de rendimentos, e do quanto namorem, escondido ou abertamente, os jovens solteiros permanecerão sendo percebidos e considerados pelos pais como crianças – as suas crianças.

As três condições fundamentais definidoras do ser criança para esse colonato são, portanto, nesses termos: 1) a não responsabilidade em face do trabalho (o que permitiu a algumas, nessa condição e dentro desse limite, permanecerem divididas entre o trabalho e a escola); 2) a imaturidade sexual; e 3) a dominação exercida pelo mundo adulto, especialmente representado pelos pais. Essas condições se superpõem e definem as subseqüentes etapas do desenvolvimento infantil nesse período, sendo as diferentes categorias classificatórias acionadas de acordo com o discurso e o respectivo tema abordado, resultando em uma pluralidade de referências e uma aparente confusão classificatória. A Tabela 1 procura sistematizar tais classificações.


Do ponto de vista cronológico observa-se uma grande variação no desenvolvimento dessas etapas, decorrente de pelo menos três fatores fundamentais: em primeiro lugar, a origem sociocultural, considerando tratar-se de famílias que viveram, historicamente, sob modelos diferenciados de organização familiar doméstica, seja no regime de escravidão – que já comportava em si mesmo diferentes possibilidades e modelos de vida familiar7; sejam pequenos agricultores imigrantes de origem européia, vindos com suas famílias para o Brasil com a expectativa de que aqui encontrariam condições favoráveis à posse da terra e ao trabalho; sejam pequenos sitiantes expropriados, brasileiros ou europeus de origens diversas, cujas terras foram perdidas com o avanço e o predomínio dos latifúndios cafeicultores na região. Em segundo lugar, a composição efetiva do grupo doméstico, considerando a integridade (ou não) do núcleo familiar composto por pai, mãe e filhos. Em terceiro, a posição ocupada pela própria criança dentro desse núcleo, particularmente em relação à fratria, considerando-se a idade e o sexo. Esses três fatores combinados respondiam pela produção de uma determinada dinâmica doméstica cotidiana, assim como pelo papel que seria assumido pela criança dentro dela, resultando em grandes variações no que se concebia como infância – e no que se esperava e se cobrava de uma criança, independentemente da sua idade cronológica.

Era o caso, por exemplo, de uma menina que aos 7 anos tinha as atribuições e os compromissos de uma criança já grandinha, não sendo portanto, nesse aspecto, percebida e tratada como pequena por sua avó, responsável por sua criação. Resulta daí o forte sentimento apresentado por essa menina de ter sido escravizada e não ter tido infância – o qual se intensificava pela inevitável comparação com as condições e o tratamento recebido por outras crianças da vizinhança, assim como pelos próprios irmãos, particularmente sua irmã caçula (embora seja possível imaginar uma intensidade ainda maior hoje, pela comparação com as condições atualmente vividas pelas crianças)8. Já outra menina, embora tenha assumido certas obrigações em casa a partir dos 7 anos (principalmente cuidar do irmão caçula), somente a partir dos 12 se tornou de fato responsável por parte dos serviços da casa e da lavoura (metade do seu dia era gasto lavando roupa e a outra metade trabalhando na roça com os irmãos). O mesmo acontecia em relação aos meninos, e a comparação entre as condições vividas e o desenvolvimento apresentado pelos diferentes meninos pesquisados mostrou claramente isso.



Entre as coisas de casa e o dever de casa: o significado da escola para o colonato

Porque eu estudava, tinha que estudar, e trabalhava muito. [...] Chegava do colégio tinha que trabalhar. Porque quando eu chegava, minha mãe já estava saindo também, pra roça. Aí ficou... eu tinha que fazer as coisas de casa, fazer dever de casa... O estudo, tudo naquela época, no ginásio, não era igual hoje, era bem rígido, né? Os professores, se você não levasse as coisas... Hoje, as crianças não levam e tudo bem. Naquela época não [...]. Aí então eu fui cansando muito, aí parei.
FÁTIMA, 40 anos

Em primeiro lugar, se havia uma regra geral na vida das crianças durante o colonato, no que diz respeito à relação trabalho versus escola, era a que determinava a absoluta priorização do trabalho. O valor dado por essas famílias à escolarização – ou ao estudo, como se referem – era variável e foi genericamente crescente entre as novas e subseqüentes gerações. Mas na infância das duas gerações aqui consideradas (pais e avós das atuais crianças), ele dificilmente superava o valor e a prioridade dada ao trabalho. Em parte porque não estava em jogo unicamente (ou propriamente) uma questão de valor, mas uma questão de necessidades e urgências cotidianas: os frutos do trabalho eram imprescindíveis para a vida imediata – como sintetiza Dora, uma das mães participantes da pesquisa, se não trabalhasse não comia –, enquanto os frutos do estudo eram não só duvidosos como, de toda forma, projetados para uma vida futura, distante e incerta.

Nessas condições, o limite genericamente aceito para as crianças permanecerem "divididas" entre o trabalho e o estudo (entre aquelas que tiveram alguma chance de estudar) era, como acima mencionado, em torno dos 12 anos de idade. A partir de então, estando já grandinhas, esperava-se delas que assumissem um certo nível de compromisso e uma dedicação via de regra exclusiva aos serviços e às necessidades da casa como um todo – o estudo parecia em certo sentido atender a vontades e interesses de ordem individual e portanto conflitantes com as necessidades sempre priorizadas da casa como espaço coletivo. Na medida em que, nessa época, a idade prescrita pelo sistema escolar para o início da escolarização era em torno dos 7 anos – idade em que, na própria concepção do grupo, já estavam se tornando maiorzinhos –, o período limite de escolarização reconhecido como possível, ou mesmo como legítimo, era a etapa que ia de cerca de 7 aos 12 anos, em que já haviam começado a ajudar em casa, sem ter no entanto ainda assumido uma responsabilidade ou um compromisso, por assim dizer, maior. A divisão vivida por essas crianças entre os compromissos assumidos perante a casa e os compromissos escolares levava, a partir de um certo ponto, ou de um certo nível de dificuldade do aprendizado, a um esgotamento, e respondia, em grande parte dos casos, pela interrupção precoce da escolarização, mesmo entre aquelas que gostavam de estudar, cujos pais incentivavam e cobravam, em princípio, uma possível continuidade. Foi o caso, entre outros, de Fátima, uma das raras crianças da geração atual de pais a ultrapassar a 4ª série primária.

Em contrapartida, mas pelas mesmas razões, a escola podia funcionar como uma espécie de válvula de escape, representando um espaço no qual as crianças se encontravam provisoriamente livres do peso das obrigações às quais eram submetidas no ambiente doméstico. A escola atraía uma grande parcela das crianças, que dentro daquele tempo e espaço viviam um outro mundo, no qual a sua condição de criança era acima de tudo reconhecida: a escola representava não somente um mundo imaginário de conhecimentos muito diferentes daqueles adquiridos por meio de familiares e adultos próximos, mas também um mundo real de sociabilidade infantil que permitia o que nenhum outro espaço possibilitava, a oportunidade de se aproximar de outras crianças que não aquelas da sua rede de parentesco e vizinhança; e de brincar, dentro de um espaço e de um tempo específico – o recreio –, no qual as práticas lúdicas eram não só possíveis, mas autorizadas, legitimadas.

Em segundo lugar, há que se considerar a extrema precariedade da infraestrutura escolar disponível no município nessa época e as pequenas mudanças ocorridas ao longo da infância dessas duas gerações. No período de infância dos atuais avós do assentamento (anos de 1920 a 1940), havia no centro de Trajano uma única escola primária. Além disso, em algumas fazendas existiam escolas improvisadas com turmas únicas, multisseriadas, destinadas ao ensino primário e à alfabetização dos filhos dos trabalhadores. Considerando-se a inexistência de meios públicos de transporte que pudessem facilitar o acesso físico daqueles que moravam distante do centro e de qualquer outro ponto auxiliar de ensino, a escolarização formal se restringia em grande parte, antes de qualquer outro aspecto, a um determinado raio de distância física das moradias com relação ao centro municipal e a esses pontos de turmas multisseriadas. Na medida em que novas escolas foram implantadas no município, não só no centro, mas em diferentes pontos e sedes distritais, a possibilidade de uma escolarização regular se "aproximou" genérica e progressivamente das crianças, até chegar a incluir, hoje, o primeiro e o segundo graus completos. Dona Alzira (60 anos) nos fala dessa precariedade do ensino no seu tempo e das limitações assim impostas às crianças pobres:

Porque hoje em dia tem uma escolinha ali [em um bairro vizinho ao assentamento]. Mas antigamente quem morava aqui só estudava lá em Trajano. Não tinha escola por perto. E quem morava ainda mais longe do que a gente morava lá, ia estudar aonde? Nasceu, criou e morreu sem saber o que é escola.

Na geração seguinte (a dos atuais pais), embora a infra-estrutura escolar municipal estivesse aos poucos melhorando e uma noção valorizadora do estudo e da escolarização viesse progressivamente se impondo, na prática as chances de as crianças estudarem sofreram poucas modificações concretas, uma vez que as limitações impostas pelas condições de vida de suas famílias permaneciam de um modo geral as mesmas. A mudança introduzida nesse período (anos de 1950 a 1970) parece estar muito mais relacionada com um sentimento (novo) de frustração por parte dos pais, que passavam cada vez mais a internalizar a noção que vinculava o estudo a um aumento nas chances de trabalho e a melhorias nas condições de vida dos filhos, sem ter no entanto alcançado, eles próprios, as melhorias que seriam minimamente necessárias para que pudessem proporcionar a seus filhos o que, nesse sentido, gostariam. É preciso, no entanto, relativizar esse discurso – e essa frustração –, e pensá-lo em sua atualidade, ou seja, considerando que essa frustração talvez, ao menos em parte, se produza muito mais diante das condições hoje vividas pelos netos do que como algo sentido e sobretudo sofrido na época mesma da escolarização dos próprios filhos. Estes, por sua vez, que são os atuais pais do assentamento, também produzem um discurso relativizador, mas que em certo sentido "denuncia", por parte de seus pais, o mesmo que estes "denunciavam" com relação à postura dos pais deles9.

A primeira importante mudança no que diz respeito ao acesso dessas crianças à escolarização ocorreu a partir dos anos de 1970, com a introdução da bananicultura e a progressiva substituição das roças de mantimentos por esse novo tipo de cultivo, que se tornaria o principal produto comercial dos colonos, demarcando o início da ruptura em relação às regras impostas pela fazenda10. A bananicultura exige um volume menor de serviços, desencadeando mudanças importantes na dinâmica doméstica cotidiana e permitindo uma relativa e crescente liberação da mão-de-obra feminina e infantil dos serviços da lavoura. A mulher, com essa relativa liberação, pôde assumir uma parcela maior dos serviços da casa, dispensando também cada vez mais as crianças desses serviços, em especial as meninas. Por outro lado, esse período foi marcado por mudanças no sistema de produção e no mercado de mantimentos em geral (principalmente de grãos) no país, disponibilizando a preços compensadores no comércio local uma série crescente de produtos que até então dependiam da própria produção para serem consumidos por famílias de trabalhadores. Finalmente, a partir desse período ocorreu uma efetiva expansão da rede pública de ensino, que afetou de modo especial as crianças da fazenda Santo Inácio, que moravam relativamente próximas ao centro de Trajano.

Mas essas mudanças, desencadeadas aos poucos e a partir dos anos de 1970, atingiram somente "de raspão" a geração de pais aqui considerada. Ou seja, nessa geração, somente os mais jovens – tios das atuais crianças – chegaram a se beneficiar das novas condições de trabalho e tiveram o acesso à escola efetivamente facilitado. Em contrapartida, entre os irmãos mais velhos, já adultos, da atual geração de crianças, encontramos experiências infantis em alguns aspectos similares às experiências dos pais e avós, embora já se prenuncie um processo de mudança fundamental na relação da criança com a casa e seus respectivos compromissos.

Em síntese, podemos dizer que, para a geração dos atuais pais, a importância do estudo escolar e as demais questões relativas a ele já estavam claramente colocadas, sobretudo para aqueles que moravam perto do centro e, portanto, relativamente próximos à escola. Para estes, não ir à escola já começava a produzir um certo sentimento de exclusão, de não estar podendo participar daquilo que uma parte significativa das crianças já usufruía. Na geração anterior, dos avós, o número de crianças na escola parece ter sido bem mais baixo, e nesse sentido, de acordo com os depoimentos, não ir à escola não chegava a produzir esse sentimento de marginalidade, sobretudo para os que estavam distantes do centro. Estes, nas palavras de dona Alzira, "nasciam, criavam e morriam" sem nem "saber o que era escola".



Reforma agrária: mudança, expansão e abertura de mundo

A avó de senhor Ernesto foi escrava, tinha treze anos quando houve a abolição. Segundo seu neto, ela contava que "tinha muita fartura, mas trabalhava muito, dormia na senzala... Dormia tudo preso, junto com os filhos. Os caras prendiam tudo. E de dia saía pra trabalhar. Café, mandiocal, fazia tudo. Depois, trancava na senzala, dormia tudo preso. Igual boi. [...] E trabalhava com gente vigiando, né? Tomando conta. Era igual nós, na fazenda aí, a gente trabalhava com tomador de conta o dia inteiro atrás de nós. Turmeiro, tomando conta de nós, o dia inteiro. [...] Hoje nós estamos numa vida boa demais, minha filha. Não tem ninguém que manda na gente. Mas de primeiro... Essa reforma agrária foi uma boa pra muitas pessoas. Hoje eu já não posso mais aproveitar porque já estou velho, mas pra uma pessoa nova tem criado muita felicidade, essa reforma agrária. Foi muito boa. Esses filhos meus nunca deram turma. Eu, toda quarta-feira, podia estar do jeito que fosse, até de cama mesmo, eu tinha que ir pra turma. Lá em Santo Inácio, roçar pasto. Esses filhos meus nunca deram um dia de turma, criados aí...".
ERNESTO, 68 anos

O nível de esforço, sofrimento e submissão com que esses trabalhadores viviam no colonato faz com que esse período seja percebido por muitos deles como continuidade direta da escravidão, e a reforma agrária, nesse sentido, como um divisor de águas fundamental nas suas vidas, ou seja, como um marco central demarcador da principal inflexão histórica vivida pelo grupo. A liberdade de trabalhar, que começa a ser progressiva e duramente conquistada a partir da ruptura com certas condições impostas pelo colonato, da introdução de novos plantios (como a bananicultura), e no decorrer de todo o período de conflitos com o fazendeiro, culmina com a conquista definitiva da posse da terra, a partir da criação do assentamento, desencadeando uma série de importantes transformações nas condições sociais e econômicas do grupo. Essas transformações "internas", somadas às mudanças em operação, nesse período, na sociedade mais ampla, respondem por um processo de abertura, expansão e crescimento social que viria alterar substancialmente as condições vividas por essas famílias.

Esse processo é percebido pelo grupo como uma significativa melhora em suas condições de vida. A vida melhorou poderíamos dizer que representa uma quase unanimidade entre os antigos colonos da fazenda atualmente assentados em Santo Inácio. Como diz Pedro (40 anos), com muita ênfase, "ih, nem se compara" – sobretudo se consideradas as condições de moradia (87,3% acham que melhorou), de poder de compra (83,5%), de educação (74,6%), de lazer (70,8%) e alimentação (58,0%)11. Mas essas mudanças não dizem respeito somente ao mundo adulto. No decorrer delas, importantes transformações foram operadas nas condições de vida e no processo de socialização das crianças, alterando significativamente o desenvolvimento do seu ciclo de vida e produzindo mudanças nos significados da infância e da escola junto ao grupo.

As mudanças foram, portanto, inicialmente desencadeadas no âmbito do trabalho. A introdução da bananicultura, de um lado, na medida em que libera grande parte da mão-de-obra de adultos e crianças, permitiu aos primeiros o desenvolvimento de atividades diversificadas (incluindo empregos), paralelas e não necessariamente relacionadas com a lavoura, e às crianças, como já referido, uma disponibilidade até então inexistente para a escolarização continuada. Além disso, a comercialização da banana leva à construção de laços comerciais não apenas restritos às vendas locais, mas, pelo contrário, que demandam um progressivo distanciamento em busca de melhores mercados – o que na prática requer habilitações das quais grande parte dessas gerações hoje adultas é ainda desprovida. De outro lado, a cultura da banana foi capaz de produzir um rendimento monetário superior às lavouras anteriormente praticadas, ampliando o circuito de trocas do qual esses trabalhadores passam a participar. A bananicultura favorece assim, em diferentes aspectos, uma relativa expansão do seu mundo econômico e social.

A reforma agrária vem somar a esse quadro uma série de mudanças ainda mais marcantes. Não só do ponto de vista econômico, embora esse tenha sido um aspecto fundamental de mudança, mas sobretudo do ponto de vista social. Embora os laços de submissão à fazenda já tivessem sido na prática rompidos pela grande maioria dos trabalhadores, nada lhes garantia, de fato, a permanência naquelas terras. Essa condição, independentemente dos retornos monetários que pudessem estar sendo auferidos pela cultura da banana, era como que obscurecida pela incerteza fundamental que os rondava, trazendo inevitáveis implicações, inclusive em termos dos investimentos a serem realizados nos seus respectivos sítios. A estabilidade trazida com a reforma agrária e a criação do assentamento é o que de fato corta definitivamente os "grilhões" que lhes impediam o crescimento, dando às melhorias econômicas também obtidas uma outra dimensão. Não vamos detalhar aqui os muitos aspectos envolvidos nesse processo, mas somente assinalar que um conjunto complexo de fatores – dos quais a reforma ocupa sem dúvida um lugar central, mas entre os quais se encontram outros que nada têm a ver diretamente com a vida interna do grupo – produz mudanças importantes do ponto de vista econômico, social e cultural, desencadeando mudanças relevantes nas relações internas e externas do grupo.

O colonato era marcado por uma extrema centralização do poder, constituído em torno do fazendeiro e de seus representantes; por uma grande ausência do poder público, no que toca aos mais diferentes âmbitos da vida (segurança, saúde, educação, transporte etc.); por um inevitável e grande isolamento do grupo, a quem cabia gerir as diferentes dimensões para as quais só contava, em princípio, consigo mesmo (desconsiderando-se as possíveis mas pontuais contrapartidas negociadas com o fazendeiro); e pelo que resulta da somatória de todos esses fatores: a formação de amplas redes de grande proximidade. A densidade do tecido social constituído pelo colonato nesse período pode ser aproximadamente avaliada pelos depoimentos referentes ao aspecto das perdas vividas nesse sentido. Ainda que se desconte o caráter saudosista e os vieses marcados pela recuperação de uma memória de tal valor afetivo, sobretudo por relacionar-se à juventude dessa geração, pela análise e o cruzamento dos diferentes depoimentos, assim como pela observação direta das atuais redes (somada aos depoimentos obtidos sobre as relações hoje estabelecidas), torna-se visível o teor das mudanças operadas junto ao grupo.

Acho que... sei lá, o pessoal não quer colaborar mais, não sei... Aí tem um negócio, que a pessoa se acha melhorzinho um mucadinho um pouco, já acha que... já passa pela gente não cumprimenta, já acha que a pessoa é boba [...] Antigamente era todo mundo trabalhando, todo mundo numa irmandade só. Hoje não (Marquinhos, 35 anos).

A abertura e a diversidade de situações e arranjos domésticos atualmente encontrados no assentamento tendem a acentuar diferenças já existentes no interior do grupo desde os tempos do colonato. Mas, naquela época, essas diferenças eram em parte minimizadas pela força das dificuldades que, de um modo ou de outro, todos partilhavam. Além disso, era fundamental para aquelas famílias estar inseridas em uma estreita rede de relações de interdependência, sem as quais a sua própria sobrevivência poderia estar em algum nível ameaçada. A grande proximidade e o isolamento vividos pelos colonos eram condições que se alimentavam reciprocamente, favorecendo um sentimento geral de igualdade, identificação e afetividade – a irmandade referida por Marquinhos, um dos pais participantes da pesquisa –, apesar das diferenças certamente já existentes.

A ruptura das relações de colonato e a entrada em cena do poder público, fortemente presente sobretudo a partir do assentamento, parecem então permitir, de um lado, que se "afrouxem" em parte os laços de proximidade e que se restrinjam, progressivamente, aqueles com quem se manterá tal estreiteza (o que surge sob a forma do esvaziamento de certas práticas internas de sociabilidade do grupo); e, de outro, tende a exacerbar algumas diferenças, tanto porque esse processo incide sobre condições já diferenciadas entre as famílias, como por ser ele próprio produtor de diferenças (por meio dos critérios de divisão, distribuição e titularização da terra, entre outros). A perda em termos de coesão interna do grupo, a partir do momento em que não mais exerce suas funções de controle e proteção, foi estudada por Elias (1994a; 1994b) como um dos aspectos centrais do processo de individualização em operação no mundo ocidental, à medida que essas funções vão sendo transferidas para os Estados altamente centralizados e cada vez mais urbanizados; e por Castel (1995), que estuda particularmente o papel do Estado nesse processo. Aumenta assim a possibilidade de mobilidade espacial e social das pessoas, e diminui, relativamente, o seu grau de envolvimento e dependência com relação aos próximos. O pessoal antigamente era mais unido, era mais ligado, expressa o sentimento das perdas nesse sentido vividas pelo grupo. Essas perdas dizem respeito às mudanças ocorridas nas suas relações de dependência, antes basicamente restritas ao interior da sua rede de próximos, que passam a se dirigir a um círculo cada vez mais amplo e distanciado.

Por outro lado, a abertura de mundo e a diversificação das atividades para além da lavoura (e sobretudo a expectativa dessa diversificação) atribuem um novo valor e abrem um espaço nunca antes existente, junto ao grupo, para a escolarização das crianças. A noção de um futuro melhor relacionado com essa possível diversificação e com atividades em princípio desvinculadas da lavoura (sobretudo da lavoura tal como foi historicamente praticada pelo grupo) resultou em um deslocamento das cobranças exercidas sobre as crianças, que hoje não se dirigem mais aos serviços, sejam da casa ou da lavoura, mas aos seus compromissos escolares, priorizados ao máximo e dentro dos limites socioeconômicos nos quais vivem essas famílias de um modo geral. A especialização e a formação prolongada que eles supõem requerem uma extensão equivalente do período da infância, nem sempre possível para as crianças desse grupo social. Mas as mudanças operadas nas suas redes sociais e nos valores fundamentais que os orientam, ainda que em grande parte sob a forma (talvez provisória) de expectativas, já produziram, nesses termos, importantes alterações no processo de socialização das crianças e nas diferentes etapas do seu ciclo de desenvolvimento.



Os novos significados da infância

Que vocês não tiveram a vida que eu tive, né? Que a vida de vocês hoje é muito boa. Porque eu tive uma vida muito difícil. Muito difícil mesmo. Eu falo diariamente com eles. Meus filhos, vocês têm uma vida de anjo. Que é uma coisa que nós nunca tivemos.
DORA, 49 anos

Do ponto de vista das atuais crianças, essa abertura e ampliação de mundo, e o contato, agora cotidiano, com padrões de vida socialmente diferenciados (seja por meio da escola, das informações que ela lhes traz e do convívio, por ela propiciado, com crianças de diferentes origens sociais; seja por meio dos modelos veiculados pela televisão) produzem uma diversificação das possibilidades e sobretudo das expectativas assim geradas, e, como resultado, o exercício da escolha, algo completamente ausente da infância das gerações anteriores. A possibilidade, o exercício e uma certa liberdade de escolha – do que vai comer, do que vai vestir, da festa que deseja ir etc. – , ainda que limitados pelas condições concretamente vividas por suas famílias, representam uma profunda mudança nos termos em que essas crianças vêm sendo socializadas.

Entre os mais velhos da faixa aqui pesquisada (cerca de 15 anos), começa a surgir, no entanto, a percepção de que essa abertura de mundo, para crianças com as suas condições socioeconômicas e culturais de origem, é em grande parte imaginária, virtual e relativamente pouco integrada à realidade social da qual de fato fazem parte. Essa percepção participa certamente do abandono da escola por um número significativo de jovens (adolescentes) a partir de uma determinada idade, quando, além de se darem conta dos mecanismos de exclusão e do caráter injusto da cadeia de trocas inerentes ao paradigma educacional dominante – conhecimento por qualificações, atividade qualificada por melhores salários, e salários por bens e serviços (cf. Willis, 1991) –, são estimulados a se dedicar exclusivamente ao trabalho a fim de fazer frente às necessidades de consumo produzidas por esse mesmo processo de abertura (particularmente relacionadas com o que buscam hoje em termos de apresentação pessoal)12. Mas, de todo modo, a abertura em nível imaginário nos parece a primeira condição para a busca da sua realização, ou seja, não seria a partir das condições do anterior fechamento em que vivia o grupo que se poderia pensar em mudanças efetivas em suas condições sociais, econômicas e culturais. Nesse sentido, aprender a escolher, ou aprender que alguma escolha é possível, por mais que limitada, parece constituir um dos aspectos centrais e promissores das mudanças em operação no processo de socialização das novas gerações.

Escolher supõe, por outro lado, a abertura de algum espaço para a vontade individual, que passa a ser exercitada nos pequenos detalhes da vida cotidiana das crianças, nos quais essa abertura seja possível (considerando não só as limitações socioeconômicas em que vivem, mas os padrões de segurança, em diferentes aspectos, impostos pelos adultos). Entre as escolhas, possíveis ou virtuais, a profissional representa uma das mais importantes, e se relaciona aos investimentos feitos para uma escolarização, o mais continuada possível, das crianças. A casa, como coletivo familiar, sai assim do centro das prioridades cotidianas do grupo doméstico. E na medida das possibilidades de cada família, que permitirão um maior ou menor prolongamento do descompromisso da criança em relação a ela, a escola será priorizada em seu lugar. A escolarização abre portanto um espaço ao indivíduo, à sua formação pessoal e a expectativas de um futuro melhor para si que seria impensável em outros tempos.

O relativo afastamento simbólico das crianças em relação à casa começa hoje cada vez mais cedo, não só por seu nascimento fora do espaço doméstico, mas sobretudo pela disponibilidade da pré-escola, que algumas crianças com menos de dois anos já começam a freqüentar. Em contrapartida, o "sair" precocemente de casa amplia os espaços por onde as crianças passam a circular com relativa segurança, assim como o capital cultural (e até certo ponto social) por elas detido. O sentimento, por parte dos atuais adultos, de que as crianças de hoje são muito espertas e sabidas, se comparadas às de antigamente, que eram acanhadas e bobas, expressa essa ampliação de mundo, ao mesmo tempo cultural e social, da criança. A percepção da atual sabedoria das crianças expressa ainda a profundidade da mudança de valores aí operada, no sentido de uma progressiva desqualificação dos conhecimentos adquiridos no meio familiar, relacionados com as práticas da lavoura e da casa, paralelamente a uma crescente valorização dos conhecimentos escolares, relacionados com diferentes práticas especializadas e empregos nesse sentido "qualificados". Considerar hoje como bobas crianças que, tão precocemente (algumas a partir de 6 ou 7 anos), eram capacitadas ao exercício e à responsabilidade de diferentes práticas de trabalho nos parece expressar com exatidão a dimensão dessa mudança13.

As mudanças ocorridas nas relações intradomésticas, na organização da casa e em sua dinâmica cotidiana produziram, como vimos, uma maior disponibilidade das crianças para o estudo e para o brinquedo. Essa disponibilidade representa um elemento fundamental das melhoras ocorridas especificamente no que diz respeito às condições de infância, sendo percebida pelos atuais adultos em termos de uma maior liberdade das crianças de hoje em comparação às condições vividas pelas gerações anteriores, pensadas, no limite, em termos de escravidão. As crianças antigamente eram escravizadas e hoje são livres e vivem como anjos poderíamos dizer que sintetiza a percepção atual de grande parte dos adultos do grupo sobre as melhoras ocorridas nas suas condições de infância. Somandose essa liberdade à observada valorização da escolarização e às melhorias operadas na rede escolar municipal, resulta que hoje se prolonga o período em que as crianças permanecem de fato sem maiores compromissos com a sua casa ou com qualquer questão de ordem econômica ou orçamentária do grupo doméstico, ou seja, prolonga-se, neste aspecto, a sua condição de criança.

Por outro lado, a divulgação dos significados da infância pelo meio escolar, assim como pelos diferentes meios de divulgação de uma cultura, nesse sentido, dominante, se soma às mudanças de valor em operação junto ao grupo, produzindo em torno da criança uma especificidade e uma legitimidade próprias à sua condição até então inexistentes. É como se a criança "crescesse" dentro de casa, sendo agora identificada como alguém que tem vontade própria e necessidades específicas, ou seja, diferenciadas das necessidades dos adultos. A condição de criança passa a ser assim reconhecida como legítima e diferenciada, estendendo-se esse reconhecimento a faixas etárias nas quais, em outros tempos, as crianças eram chamadas a cumprir funções e assumir compromissos equivalentes aos de um adulto. Determinadas orientações relacionadas com a psicologia infantil chegam assim ao grupo, disseminando, entre outras, a noção de que criança precisa brincar para ter um desenvolvimento físico e psicológico saudável.

Finalmente, o processo de abertura pelo qual passa o grupo traz para as novas gerações padrões de comportamento sexual oriundos de outras realidades sociais, particularmente por intermédio da televisão. O casamento, embora permaneça um marco fundamental no ciclo de vida do grupo e seja importante objeto do desejo de moças e rapazes de um modo geral, perdeu a exclusividade anteriormente detida em termos de perspectiva futura de vida. Da parte dos pais, embora todos desejem ver seus filhos futuramente casados e com família, a perspectiva de um bom emprego e a correlata necessidade de uma escolarização prolongada (ou o mais prolongada possível) deslocam a conquista de bons futuros maridos ou esposas para seus filhos do centro das prioridades familiares. Ou seja, o casamento será idealmente adiado sempre que possível, para que os jovens possam dar continuidade aos estudos, aumentando assim suas chances de melhores colocações futuras no mercado de trabalho. As mudanças decorrentes desse processo para o ciclo de desenvolvimento das crianças e para os significados da infância junto ao grupo estão resumidas na Tabela 2.



As categorias classificatórias acima referidas são aquelas ainda utilizadas pelos pais e avós do assentamento. No âmbito da responsabilidade e do trabalho, a mudança diz respeito ao prolongamento da faixa mínima reconhecida (ou admitida) pelo grupo como idade em que o estudo deve ser priorizado em detrimento do trabalho; prolonga-se assim a condição de criança, identificada nesse aspecto como uma condição de não-responsabilidade e completa dependência (não só afetiva e social, mas também econômica) em relação à família, particularmente ao grupo doméstico. Uma pequena parte dos rapazes e moças do assentamento parou de estudar por volta dos 15 anos, para se dedicar exclusivamente ao trabalho; alguns ainda se esforçam para dar continuidade aos estudos, assumindo não sem dificuldades uma dupla jornada de estudo e trabalho. Mas dificilmente se encontram jovens no assentamento a partir dessa idade sem algum tipo de atividade remunerada – os que ainda não têm estão em geral começando a buscar. O casamento e a responsabilidade assumida em relação ao grupo doméstico assim criado pelo próprio jovem permanecem demarcando, nesse âmbito, uma passagem inquestionável e definitiva para a condição de adulto.

Do ponto de vista sexual, observa-se, inversamente, uma maior precocidade no desenvolvimento infantil, se comparado ao desenvolvimento em épocas anteriores. A noção de adolescência está sendo incorporada aos poucos por todas as gerações, mas é entre as próprias crianças que ela ganha especial importância, na medida em que legitima, a partir de cerca de 12 anos, o interesse pelo sexo oposto e, sobretudo, um interesse que se justifica por si mesmo, desvinculado, em princípio, de qualquer compromisso ou expectativas relacionadas com a perspectiva de um futuro casamento. As crianças hoje, em grande parte, namoram, ou ficam, pelo prazer em si de namorar, independentemente de qualquer expectativa ou projeto de vida. E a adolescência, cuja demarcação etária inicial está fortemente vinculada a aspectos biológicos e à aproximação da puberdade, fornece os subsídios culturais necessários e legitimadores dos novos valores instaurados.

Para os mais velhos, avós das atuais crianças, mais distantes dos acontecimentos por meio dos quais as novas noções vão sendo aos poucos difundidas, internalizadas e legitimadas (por exemplo nas reuniões escolares com os pais), uma menina aos 12 anos pensar em namorar representa um total absurdo. Neste aspecto, apesar da maior precocidade inicialmente observada, o casamento, oficial ou não, permanece como um marco definidor do encerramento dessa transição, sobretudo por ainda relacionar-se, ao menos idealmente, com o início da vida sexual plena e à gravidez.

Quanto à relação de dominação dos pais sobre os filhos, as mudanças observadas referem-se a uma perda de nitidez da passagem pela qual os filhos deixam de ser, neste aspecto, crianças – e portanto dominados – aos olhos dos pais. Essa passagem, anteriormente tão bem marcada pelo casamento, hoje é variável e, em certos casos, relativamente sutil. Isso porque, na medida em que o casamento perde parte da centralidade absoluta antes detida como perspectiva futura dos jovens, e passa a competir com diferentes projetos relacionados com o trabalho e as possibilidades de um maior crescimento escolar e profissional, o alcance de uma condição independente, no sentido de não mais subordinada aos pais, passa a vincular-se, em certos casos, a um conjunto variado de condições. A independência econômica representa sem dúvida uma condição central, mas ela não dá conta de uma efetiva mudança na relação entre pais e filhos. A liberação dos filhos, por parte dos pais, no sentido do reconhecimento da legitimidade do seu direito de cuidar da própria vida, a partir do momento em que consigam se sustentar e investir por conta própria na busca de um futuro melhor (como fazem alguns rapazes que trabalham e estudam em Macaé), é o que de fato muda essa relação14.



Considerações finais

Esse modelo de desenvolvimento infantil resulta em grande parte do processo de expansão, crescimento social e individualização acima discutido, e pode ser encontrado genericamente junto ao grupo hoje assentado. Esse processo atinge a todos e resulta em mudanças profundas nos seus valores e representações sobre a infância. Mas, como mencionado, ele incide sobre um grupo que já comportava desigualdades em seu interior, além de ser, ele próprio, produtor de diferenças.

Às diferenças observadas nas condições de vida das famílias assentadas correspondem diferenças nas condições em que vivem as suas crianças, assim como nas classificações relativas ao seu desenvolvimento. Em outras palavras, a possibilidade de uma criança ser ou não percebida como tal depende estreitamente das condições em que vive com seus familiares, de modo até certo ponto independente da sua idade cronológica. As variações nesse sentido observadas no interior do grupo são decorrentes dos mesmos fatores relacionados com as classificações da infância no período do colonato: em primeiro lugar, a origem sociocultural da família e os diferentes modelos de relações intrafamiliares possivelmente herdados, sublinhando-se o caráter preliminar de tais observações, na medida em que a pesquisa, até o ponto em que foi desenvolvida, não permitiu o aprofundamento necessário para afirmações conclusivas15. Em segundo lugar, a composição efetiva do grupo doméstico, chamando atenção a especial sobrecarga vivida pelas crianças, seja no colonato seja no assentamento, cujas casas se encontravam "desfalcadas" da presença constante de um dos adultos em princípio responsáveis por elas. As mudanças nesse sentido operadas nas condições do assentamento, em comparação com o período do colonato, são muito importantes. Destacam-se assim os papéis fundamentais exercidos pela escola (sobretudo a pré-escola) e pela proximidade física de parentes próximos (especialmente os avós) no assentamento, no apoio e na participação constante nas dinâmicas domésticas cotidianas das casas geridas, por exemplo, por mães viúvas ou separadas. Em terceiro lugar, a posição ocupada pela criança na fratria, considerando-se as diferenças de sexo e idade. Observa-se de um modo geral, tanto no colonato como no assentamento (guardadas as respectivas condições e as diferenças produzidas pela mudança histórica), uma especial sobrecarga e maior precocidade das crianças mais velhas, em comparação aos caçulas, mais paparicados e via de regra aliviados das obrigações cotidianas da casa (em sentido mais abrangente, incluindo-se a lavoura); e, entre estas, particularmente as meninas mais velhas, em tudo o que se refere ao cotidiano doméstico.

As diferenças hoje encontradas no assentamento não são novas. Elas reproduzem, como já observado, diferenças existentes entre essas famílias desde o período do colonato. Mas, naquela época, a dureza das condições era generalizada, todos viviam em grande proximidade, em uma irmandade só, como diz um dos pais da pesquisa, e as crianças eram, de um modo geral, precocemente chamadas a participar dos trabalhos e das dinâmicas domésticas cotidianas. Ou seja, ressalvando-se as diferenças sem dúvida existentes (orientadas pelos mesmos fatores de variação ainda hoje observados), poderíamos dizer, como uma das mães da pesquisa, que as crianças viviam todas, nesse sentido, escravizadas. O processo de mudança vivido pelo grupo, na medida em que propiciou importantes melhoras em suas condições de vida, tendeu a acentuar diferenças que talvez, em outros tempos, permanecessem mais facilmente dissimuladas pelo peso das dificuldades genericamente enfrentadas. Hoje, no assentamento, apesar de todo o crescimento social do grupo e das inquestionáveis melhorias nas condições vividas por suas crianças – estando todas, sem exceção, na escola –, nem todas elas vivem, ainda, exatamente como anjos. E as diferenças encontradas entre seus anjos e escravos tornaram-se indiscutivelmente mais visíveis.

Elizabeth Ferreira Linhares é mestre em Antropologia da Arte (EBAUFRJ), doutora em Antropologia (IFCSUFRJ) e, atualmente, pesquisadora do Programa de Implantação do Campus Fiocruz da Mata Atlântica, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro. E-mail: linharesbe@ig.com.br.
* Este artigo apresenta uma síntese parcial da minha tese de doutorado Entre escravos e anjos: condições e significados da infância em um assentamento rural fluminense, defendida em agosto de 2004 no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do IFCS/UFRJ. A análise baseou-se em um conjunto diferenciado de dados quantitativos e qualitativos, obtidos em pesquisa específica para a tese, e em uma ampla base de dados levantados em pesquisa anterior realizada nesse mesmo assentamento, da qual participei como pesquisadora (Assentamentos rurais em perspectiva comparada – ARPC. CPDA/UFRRJ, CRBC/ EHESS E CPD DOC/FGV, 2000-2002). Tomando como ponto de partida o conceito de ciclo de desenvolvimento do grupo doméstico (cf. Fortes, [1ª ed. 1958] 1974), a tese procura analisar as diversas dinâmicas domésticas cotidianas do grupo e a correspondente variabilidade de papéis possivelmente assumidos por crianças ocupando, em princípio, um mesmo "lugar" na estrutura familiar doméstica.
1 ARPC (2002).
2 Na primeira metade do século XX, a cafeicultura trajanense, e a do Rio de Janeiro em geral, decaiu progressivamente, sendo substituída pela criação extensiva de gado. Os fazendeiros passaram a restringir as áreas disponíveis para as lavouras de mantimentos dos colonos, expulsando grande quantidade deles das fazendas. Segundo os arquivos da Fetag- RJ (1981), entre 1966 e 1974 cerca de 4 mil famílias foram despejadas em Trajano de Moraes. Foi por volta desse período que nasceu uma parte significativa dos adultos aqui considerados (pais das atuais crianças), que enfrentaram, ao lado de seus pais (avós das crianças), o longo processo de luta pela posse da terra.
3 Da mesma forma como observado por L. Medeiros e S. Leite (1999) sobre a diversidade dos processos sociais que culminam na criação dos assentamentos (e portanto das populações assentadas), deve ser considerada a diversidade das origens sociais que compunham o colonato fluminense, mesmo quando enfocada uma área de tal delimitação geográfica.
4 As regras fundamentais definidoras desse colonato determinavam, em troca do direito de morar e plantar em terras da fazenda (pequeno sítio em área estipulada pelo fazendeiro), 1) a responsabilidade pelo cultivo do café, do qual auferiam, teoricamente, 50% da colheita – o chamado sistema de meia (na prática a comercialização do café era feita pela fazenda, sem que o colono tivesse qualquer meio de controle sobre os resultados obtidos); 2) a obrigação de dar um ou mais dias de turma por semana, ou seja, dias de trabalho não remunerados, prestando serviços à fazenda; e 3) uma renda sobre as demais lavouras de mantimentos cultivadas, que variavam, segundo os depoimentos, de 10% a 30% da colheita. As principais lavouras dos colonos, além do café, eram o milho e o feijão, seguidas de mandioca, batata-doce e diferentes hortaliças.
5 A introdução da escolarização como fator fundamental para o surgimento da noção de infância prolongada, para além dos 5 ou 6 anos, foi identificada e demonstrada por Ariès (1981) em relação ao mundo europeu a partir do final do século XVII. Nesse período a população infantil teria passado a se dividir entre os que se escolarizavam e os que entravam precocemente na vida adulta. Segundo o autor, essa divisão não correspondia necessariamente a uma divisão social, de classe; a princípio, os excluídos do sistema escolar eram basicamente as meninas, independentemente da sua condição social, que se casavam cedo e não recebiam nenhum tipo de aprendizagem além da doméstica.
6 Em uma família de agricultores familiares, em que a participação e o trabalho de todos os integrantes é a sua própria condição de existência (sejam quais forem as condições de posse da terra), tornase imprescindível a socialização das crianças, tendo sempre na manutenção do grupo a sua maior prioridade. Os estudos realizados no Nordeste por Heredia (1979) e Garcia Jr. (1983) já demonstravam essa direção.
7 Estudos recentes são unânimes quanto à diversidade de formas assumidas pelo regime de escravidão, de acordo com a época (sobretudo antes ou depois do fim do tráfico, em 1850), o perfil do proprietário e o tipo de produção, o tamanho do plantel e diversos outros fatores considerados sobretudo por historiadores, que analisam, dentro dessa variação, as múltiplas formas e possibilidades de vida e estruturação familiar entre os escravos. Essa variedade diz respeito também aos espaços de vida, casados e solteiros, e ao papel das senzalas, nem sempre existentes. Ver Florentino e Góes (1995), Castro (1997), Slenes (1997) e Faria (1998).
8 Vale observar que as categorias diretamente relacionadas com a escravidão (escravos, escravizados, prisioneiros, escravidão, cativeiro) aparecem basicamente nos depoimentos daqueles cuja cor de pele nos leva a supor a descendência, parcial ou integral, de famílias escravas.
9 Os depoimentos de Eugênio e Marquinho, respectivamente pai e filho, são nesse sentido muito interessantes. Segundo Eugênio (72 anos), "[...] naquele tempo era tudo muito sacrificoso" e seu pai "não tinha condição": "Meu pai não pôde me dar nem estudo. Porque nós morava num lugar muito central. Pra nós vir aqui estudar, era muito sacrifício. A lavoura dele era muito grande, nós tinha que estar ali desde pequeno ajudando ele [...]. Não teve condição dele me dar estudo". E Marquinho (35 anos), analisando a situação de seu pai, explica: "coitado, a única coisa que ele teve a maior dificuldade mesmo foi o negócio do estudo pra dar a nós, porque não tinha condição mesmo. Não teve jeito. Ainda assim mesmo ele lutou... depois que abriu essa escolinha, botou nós lá, ainda estudamos um mucado. Tem uma irmã que estudou mais, que já é dessa parte mais nova, agora... Sempre a gente tinha que vir ver pra fazer as coisas na casa, um era ver uma criação, outro já era procurar ver... tomar conta do outro irmão mais pequeno, e era assim...".
10 A bananicultura é considerada bem de raiz e, portanto, elemento possivelmente legitimador da posse da terra. Assim, seu cultivo era interditado pela fazenda e os colonos eram autorizados a plantar somente culturas temporárias, de ciclos curtos. Nessas condições, seu cultivo, por iniciativa dos trabalhadores, representava uma postura de ruptura e enfrentamento ao poder do fazendeiro, que, nessas alturas, já se mostrava visivelmente fragilizado.
11 ARPC, 2002. Vale lembrar que esses percentuais se referem à totalidade dos assentados, em que se incluem trabalhadores de outras procedências. Entre as famílias oriundas do colonato da fazenda, que compuseram a amostra da presente pesquisa, a percepção de uma importante melhora é ainda mais generalizada.
12 Dar-se conta não significa necessariamente uma consciência plena desse mecanismo, que tende a reproduzir as desigualdades sociais já existentes. Estudando o sistema educacional francês, Bourdieu ([1ª ed. 1970] 1992) já demonstrava a importância das qualificações escolares na legitimação e na reprodução das diferenças sociais, na medida em que relacionadas com diferenças culturais previamente instituídas. Paul Willis (1991) define como "penetração" essa categoria específica de percepção, referindose a todo movimento, no interior de uma cultura, em busca da compreensão das suas próprias condições de existência e das posições ocupadas por seus membros no todo social. Em seu estudo sobre jovens de famílias operárias inglesas, Willis observa que uma das mais fortes pressões sofridas pelos rapazes diz respeito à necessidade de ter dinheiro para comprar roupas da moda, fumar, sair à noite e poder fazer programas com as garotas. É como se essa fosse a "verdadeira vida", externa à escola, e perto da qual esta deixa de ter qualquer importância; abandonar o estudo para trabalhar pode representar um acesso mais direto a essas necessidades. Algo semelhante parece ocorrer com os jovens no assentamento (e os índices de evasão escolar a partir dos 15 anos, e sobretudo dos 18, reforçam isso), embora eles sejam orientados, ao que tudo indica, por níveis diferentes de individualização e pelo lugar ainda ocupado pela responsabilidade em relação ao grupo doméstico de origem.
13 O estudo hoje se relaciona com uma habilitação fundamental para o trânsito em mundos mais amplos, e a sua falta é profundamente sentida pelos adultos assentados de um modo geral. Foram eles os que sofreram as mudanças em sua forma mais dura. Instados a participar de um mundo para o qual não foram preparados, não sendo portadores das habilitações mínimas (não só o capital escolar, mas também cultural de modo mais amplo) exigidas para isso, encontram-se cotidianamente constrangidos pelo desafio de administrar as novas condições de vida e de produção, sentindo-se em grande parte despreparados. Isso explica o nível do esforço e do investimento na escolarização das crianças, para que consigam se preparar e tornar-se aptas a transitar com segurança em outros mundos e condições. Assim, para os atuais pais e avós, a maior obrigação, o efetivo compromisso que seus filhos e netos têm hoje – no sentido original que esses termos assumiam desde os tempos do colonato – é com o estudo. Os percentuais de crianças e jovens do assentamento que freqüentam regularmente a escola demonstram isso com clareza: 55,9% das crianças entre 4 e 6 anos; 100% das crianças entre 7 e 14 anos; 81,1% entre 15 e 17 anos; e somente 12,2% entre 18 e 24 anos (ARPC, 2002).
14 Por outro lado, a percepção dos filhos como eternamente crianças, independentemente da idade, das suas condições e do seu momento de vida, observa-se tanto em relação a períodos anteriores, durante o colonato, como no assentamento, e embora relacionada com aspectos de ordem puramente afetiva contribui, sobretudo no atual contexto, para uma passagem nebulosa no que diz respeito ao fim da dominação exercida pelos pais sobre os filhos. É importante considerar que, muito mais sutis do que no plano econômico, as moedas afetivas exercem um papel não menos determinante nas relações de dominação constituídas no meio familiar, particularmente entre pessoas com fortes ligações, como é o caso de pais e filhos (cf. Elias, 1995). As trocas de dons assim operadas no interior da casa, a começar pelo dom inicial relacionado com a amamentação, e os muitos dons que lhe sucedem por parte dos pais em direção aos filhos, são, como demonstra P. Bourdieu (1996), produtores de dívidas que jamais poderão ser pagas e de uma submissão que, nesse sentido, tende a se eternizar.
15 Além do fato, também observado, de esses fatores atuarem em conjunto, tornando muito difícil, no âmbito da presente pesquisa, a sua percepção de forma discriminada.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-20702008000100005&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

Revista Tempo Social

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