Fascinado por torturas, o primeiro czar instaurou um regime de terror em seu país. Ao perseguir a nobreza, Ivã submeteu os diversos principados que deram a um, império governado a partir de Moscou
Ivã Grozny e sua mãe, óleo sobre tela, Karl Venig, c. 1886
O czar e sua mãe, Elena Glinskaya, que o protegeu das intrigas dos nobres russos enquanto ele ainda era uma criança indefesa
Considerado o pai da Rússia moderna, o príncipe Ivã IV de Moscou entrou para a história como um dos mais cruéis governantes de todos os tempos. Tamanha era a violência e imprevisibilidade de seu caráter que o mundo o conheceria como “Ivã, o Terrível”. Até hoje, sua figura divide os historiadores russos: alguns o veem como um dos maiores estadistas do século XVI; outros o descrevem simplesmente como um demente desprovido de moral.
Nenhum pesquisador contesta, porém, a importância do monarca para a história do país: foi ele quem unificou, com mão de ferro, os diversos principados que deram origem a um império governado a partir de Moscou. Para afirmar seu poder, em 1547 Ivã se declarou “czar” de toda a Rússia, versão eslava do “césar” romano. Era o início de uma monarquia autocrática que durou quase quatro séculos e só foi derrubada pela Revolução Russa de 1917.
Ivã IV nasceu em 15 de agosto de 1530 e foi proclamado príncipe da Rússia três anos depois, logo após a morte de seu pai, Vassili III. Aos 17 anos, casou-se com Anastásia Romanovna, mulher doce e inteligente que exerceu uma influência extremamente positiva em sua vida. Graças a Anastásia e aos conselheiros Macário, Silvestre e Adachev, o comportamento cruel que Ivã às vezes demonstrava durante a infância e adolescência foi aplacado.
O czar era então considerado um dos maiores soberanos da Europa. Nos primeiros anos de seu reinado, ele organizou importantes campanhas militares contra os tártaros-mongóis que ainda dominavam partes do que viria a ser a Rússia, conquistando Kazan em 1552 e Astrakan em 1556. Nessa época, Ivã era visto como um monarca trabalhador, justo, bom esposo e pai dedicado.
Tudo mudou, porém, com a morte de Anastásia, em 1560. A transformação no comportamento do czar foi tão profunda que os cronistas da época a descreveram como “uma inexplicável tempestade vomitada pelos infernos para abalar e despedaçar a Rússia”. Começava uma era de terror para o país: Ivã passou a ordenar execuções em série, perseguindo principalmente os grandes proprietários de terra, chamados de boiardos.
Czar Ivã IV, o Terrível, óleo sobre tela, Victor Mikhailovich Vasnetsov, 1897
O sinistro Ivã era assíduo frequentador das salas de tortura do palácio, onde se deleitava com o sofrimento alheio
O tom das descrições do czar mudou radicalmente. O nobre tcheco Daniel Printz von Buchau, contemporâneo de Ivã, dizia que o soberano russo era violento a ponto de “espumar de raiva”.
Segundo o historiador polonês Kazimierz Waliszewski, um dos melhores biógrafos do monarca, a partir de 1561 “o czar passou a comportar-se como um tirano, já não resistindo a seus instintos, a seu impulso de destruição”.
Ivã gostava de torturar pessoas, sentia prazer em ver o sofrimento dos outros. Fazia correr rios de sangue e se deleitava ouvindo os gritos de sofrimento, os soluços de dor, as lágrimas, o barulho surdo do machado que se abatia sobre um pescoço e o som das costas e vértebras que se quebravam. Ele nem chegava a esconder seu fascínio pelo sofrimento alheio e admitia publicamente sua crueldade.
No entanto, esse mesmo tirano que desonrava mulheres na frente dos maridos acorrentados, destroçava milhares de vidas e destruía famílias inteiras se compadecia de sua própria sorte e pedia compaixão no testamento que redigiu em 1572: “Estão me martirizando, usurpando minhas terras! Estou perpetuamente e em todos os lugares correndo perigo!”. O mestre de todos os russos já não se sentia seguro dentro de seu próprio país. O autocrata tão temido, o Terrível, chegou a pedir asilo à rainha Elizabeth I da Inglaterra.
A fonte da crueldade de Ivã era o medo: ele temia por sua vida e via conspirações em toda parte. Para escapar de uma morte hipotética, transformou-se em assassino. O czar sacrificava milhares de inocentes pelo temor de um dia ser apunhalado por algum deles. Esse medo vinha da infância, quando testemunhou inúmeras intrigas, complôs e crimes de boiardos. Na época, o jovem príncipe vivia angustiado, com medo da morte. Desse período, guardou uma desconfiança excessiva, anormal. Ao se tornar adulto, decidiu se vingar do sofrimento que vivera quando ainda era indefeso.
Inúmeros príncipes e boiardos, executados sem que houvesse nenhum tipo de denúncia ou suspeita contra eles, foram vítimas do rancor que Ivã nutria desde sua infância. Medo, desconfiança, ódio, gosto pelo sofrimento e hábitos sanguinários: um sentimento levava a outro. Sua atitude não era a de um
soberano confiante em sua força, mas a de um fraco que precisava provar seu poder.
Os oprichniki na corte de Ivã IV, óleo sobre tela, Nikolai Vasilievich Nevrev, século XIX
O soberano russo com a elite de sua guarda pessoal, um grupo de 300 homens armados que fazia da corte uma fortaleza de segurança máxima
Para se proteger desse mundo terrivelmente ameaçador no qual imaginava viver, Ivã recrutou, em janeiro de 1565, um grupo de guarda-costas responsável por sua segurança pessoal, os oprichniki. Inicialmente esse destacamento era composto por mil homens, número que depois subiu para 6 mil.
A partir de então, as execuções passaram a ser realizadas na praça Vermelha de Moscou, diante das portas do Kremlin e ao lado da recém-construída catedral de São Basílio. Famílias inteiras de nobres foram sacrificadas, pois a maior parte dos chefes dos clãs havia se recusado a jurar lealdade ao filho de Ivã quando o czar adoeceu, em 1553.
O soberano tinha enorme prazer em acompanhar os martírios impostos aos adversários. Seus lugares preferidos eram a sala de tortura e a praça Vermelha. Ao sair da missa, o czar assistia durante horas às súplicas, aos vômitos de dor e ao arregalar dos olhos das vítimas. Saboreava os gritos, os gemidos e o barulho das costelas se quebrando. Aspirava com gosto o cheiro de sangue e de carne queimada. Quando escutava o último suspiro, irritava-se com a rapidez com que os condenados deixavam o mundo e interrompiam seu prazer de vê-los agonizar.
Para se proteger de eventuais inimigos, Ivã mandou construir um palácio no meio da floresta, na vila de Sloboda Alexandrovskaia, onde instalou sua corte. Era dessa pequena vila, 120 km a noroeste de Moscou, que partiam as ordens de execução.
Ao combater o poder dos grandes proprietários, o czar passou a concentrar cada vez mais terra em suas mãos. O território sob seu controle direto, chamado de oprichinina, estendia-se pelo país, abarcando metade da Rússia. A ruína dos proprietários era completa. Os camponeses fugiam para o sul, onde o regime de exceção ainda não havia sido imposto. Os moradores das cidades se trancavam em casa. Em Moscou, o silêncio da noite era interrompido apenas pelos gritos sinistros das vítimas de tortura.
A conquista de Kazan em 1552, óleo sobre tela, Grigoriy Ivanovich Ugryumov, séc. XIX
Nos primeiros anos de seu reinado, Ivã conquistou os reinos tártaro-mongóis de Kazan e Astrakan, o que fez dele um monarca admirado pelos russos
Por mais paradoxal que possa parecer, Ivã era guiado por um profundo sentimento religioso. Imbuído desse fervor espiritual, o czar transformou a residência de Alexandrovskaia em um mosteiro, onde criou uma espécie de seita religiosa formada por 300 oprichniki selecionados entre os mais devotos. O abade era o próprio czar.
Todos os dias, às 4 horas da madrugada, o reverendo Ivã, vestido com um hábito preto e uma capa, tocava o sino que convocava os bons monges ao ofício. Os irmãos apareciam com seus barretes e vestimentas negras. Na vasta capela decorada com antigas imagens, o abade dava o exemplo de piedade: prostrava-se, descia ao chão com tanta força que a pedra fazia seu semblante sangrar. Os irmãos o imitavam.
Às 10 horas, famintos, sedentos, mas com a alma em paz, os irmãos se sentavam em torno da mesa repleta de cabeças de peixe ao alho, lebres ao óleo de girassol, rins ao gengibre, frango au poivre, vinhos, hidromel e vodca. O abade comia enquanto falava de teologia. Alguns condenados eram trazidos pelos algozes para serem torturados diante dos comensais.
Era a sobremesa.
Além de religioso, Ivã era muito preocupado com a sua sucessão. Dos três filhos que Anastásia lhe dera, ele escolheu o mais velho, também chamado Ivã, para herdar o Império Russo. Em 1581, o príncipe de 27 anos se destacava por sua força física, inteligência e educação. O czar, que o amava sinceramente, criava-o à sua maneira. Fazia-o assistir às sessões do Conselho, às audiências solenes de tortura, aos massacres e às orgias.
Ivã e seu filho, óleo sobre tela, Ilya Repin, 1885
Em um de seus acessos de ódio, o czar atacou o próprio filho. Ao se dar conta do que tinha feito, um desesperado Ivã tentou em vão impedir a morte do herdeiro
Com uma criação assim, não é de espantar que o príncipe tivesse uma queda pela imoralidade. Depois de mandar suas duas primeiras esposas para um convento, Ivã filho casou-se com Helena Cheremeteff, por quem era realmente apaixonado. O afeto, porém, não o impedia de trair constantemente a futura rainha.
No fim de 1581, o czar e toda sua família estavam em Sloboda Alexandrovskaia. No dia 15 de novembro, Ivã pai encontrou Helena no palácio. Apesar de sua gravidez avançada, a moça usava apenas um vestido, em vez de muitos, como era o costume. Descontente com a conduta da nora, que considerou indecente, Ivã espancou-a a ponto de provocar um parto prematuro.
De volta ao palácio, o filho do czar censurou vivamente a atitude do pai. De acordo com outras fontes, Ivã filho teria criticado a falta de soldados na região da Livônia, pedindo ao pai mais
tropas para libertar Pskov. Independentemente do motivo, os dois começaram a discutir violentamente. Boris Godunov, um dos principais nobres da corte na época, tentou apaziguá-los.
De repente, tomado por um de seus acessos de raiva implacáveis, o czar levantou de sua cadeira, ergueu seu cetro de metal e golpeou a esmo. O príncipe caiu. Durante alguns instantes, Ivã IV permaneceu de pé, imóvel, como se não tivesse entendido o que havia acabado de acontecer, como se seu filho tivesse caído por alguma razão desconhecida. Em seguida, jogou-se sobre o corpo, afastou a mão que cobria o rosto do herdeiro e viu a profunda ferida na região da têmpora.
Assustado, desesperado, o czar deu um grito: “Matei meu filho! Matei meu filho!”. Boris Godunov correu em busca de socorro. Oficiais e serventes trouxeram panos e água. Soluçando, balbuciando palavras incompreensíveis, o déspota limpou a ferida, mas o sangue continuou escorrendo. “O médico!”, gritou o pai, “por que não está aqui?” “Ele virá!”, respondeu Boris Godunov.
Lentamente, como se voltasse de muito longe, o filho abriu os olhos e lançou ao pai um olhar sem raiva. “Perdão”, disse o czar, entre dois soluços. O ferido sorriu. Havia mais que perdão nesse sorriso: havia amor, ternura, piedade. Em seguida, Ivã filho deu um gemido e perdeu a consciência. Enfim, o médico chegou e fez um prognóstico desolador: “A ferida é profunda, muito profunda... e o ferro de seu bastão seguramente estava sujo. Não há esperança. A menos que haja um milagre...”.
Passaram-se quatro dias e quatro noites. O czar recusava-se a dormir. Como uma fera raivosa, rodava sem parar em torno da cama do filho. Às vezes falava sozinho, em voz baixa; às vezes chorava, sem lágrimas, com espasmos. Então, aproximava-se do leito e escutava ansiosamente. Seu filho ainda respirava! Por quanto tempo? A extrema unção já havia sido ministrada pelo clérigo.
“A menos que haja um milagre.” A frase do médico ressoava nos ouvidos do czar. Então Ivã se prostrou e suplicou a Deus que lhe concedesse esse milagre. Prometeu libertar os prisioneiros, esvaziar as salas de tortura e absolver os condenados à pena de morte. Como não obteve resposta, continuou: prometia construir uma nova catedral, fazer doações generosas a mosteiros e pobres, badalar todos os sinos alegremente como na Páscoa. Nenhuma resposta. Deus não aceitava fazer negócio com ele.
Desesperado, o assassino se levantou. Seu semblante se franziu, seus cabelos embranqueceram: o czar transformou-se em um velho. Ah, se pudesse voltar atrás, retomar a passos rápidos os quatro últimos dias, e estar novamente sentado na sua poltrona, frente a frente com seu filho! Ele lhe abriria os braços e jogaria longe o bastão de ferro, para sempre. “Pai”, chamou o ferido. O czar correu para o leito do filho, ajoelhou-se, tomou-lhe a mão. “Pai, sou o único culpado”, murmurou Ivã filho. “Morro como seu filho dedicado, o mais submisso de seus súditos...”
Fortaleza de
A vila de Sloboda Alexandrovskaia, onde Ivã instalou sua corte,
As chamas das velas vacilaram, uma delas se apagou. Os padres fizeram suas últimas preces. O grande sino da basílica começou a bater. Um após o outro, os sinos do Kremlin responderam. Não eram as badaladas alegres da Páscoa, mas sim as que anunciam a morte. De joelhos ao lado do cadáver, um homem soluçava inconsolável. Um pai que matou seu filho. Um soberano que matou seu herdeiro. Os dias seguintes foram de luto em toda a Rússia.
No dia 22 de novembro de 1581, Ivã IV – vestido como o mais humilde de seus escudeiros – seguiu a pé o cortejo. Ao longo do trajeto, soluçava, suplicava em voz alta o perdão de sua vítima, gesticulava, estrebuchava. Ao chegar à igreja de São Miguel Arcanjo gritou, jogou-se ao chão e feriu o rosto, que começou a sangrar. No fim da cerimônia, foi preciso arrancá-lo de perto do caixão.
Alguns dias depois do trágico episódio, o czar juntou forças e informou que iria abdicar, acrescentando que seus dois outros filhos não poderiam sucedê-lo: Fedor era incapaz e Dimitri ainda era uma criança. Pediu então que os nobres escolhessem um sucessor.
Os boiardos se lembravam do que havia acontecido em 1553, quando o czar adoeceu. Sabiam que todos aqueles que haviam se pronunciado contra o príncipe tinham morrido de forma cruel.
Pensaram que aquela era uma emboscada, e suplicaram a Ivan que não abdicasse. O soberano consentiu, mas seu reinado duraria apenas mais três anos: o mestre de todos os russos já era um morto-vivo.
Revista História Viva
Nenhum comentário:
Postar um comentário