A política metropolitana em relação aos ciganos era cheia de ambigüidades quanto à sua inclusão no projeto colonial
Andréa Lisly Gonçalves
As Ordenações Manuelinas (1514-21) proibiam que ciganos e seus descendentes ocupassem cargos públicos, eclesiásticos, e recebessem títulos honoríficos em Portugal. Essas proibições tornaram-se ainda mais vigorosas nas Ordenações Filipinas (1603), que, no seu Livro V, título 69, estabelecem “que não entrem no Reino ciganos, armênios, árabes, persas nem mouriscos de Granada”.
As proibições se estenderam à América portuguesa pelo menos até fins do século XVII, quando o destino dos ciganos condenados ao degredo pelas autoridades portuguesas era a África. Em 1754, o governador de Angola, o conde da Cunha, defendeu, sem êxito, que a metrópole promovesse a emigração de ciganos que, por sua resistência ao clima, seriam úteis à defesa de Angola, ajudando na concretização de seu projeto de instalação de uma fortificação que serviria de base para a travessia da África.
Mas em 1698 já se registra a chegada da primeira leva de pessoas da etnia Calon ou Kalé ao Maranhão, deportada de Portugal. Essa etnia compunha a maioria do grupo cigano da Península Ibérica. A escolha do Maranhão não era, de modo algum, aleatória: o destino dos degredados seria as áreas menos densamente ocupadas pelos colonizadores, nas quais o espaço seria disputado com os índios. Ainda que segregados na metrópole, dava-se preferência aos ciganos, e não ao gentio da terra, no processo de ocupação de determinadas áreas da colônia portuguesa na América.
Os primeiros ciganos vindos de Portugal se espalharam rapidamente pelo território brasileiro – há registros da presença de ciganos em Minas Gerais em fins do século XVII. O fato é que a própria política de D. João V, de recrudescer as proibições contra a presença dos ciganos em solo lusitano, resultou na vinda de vários contingentes dessa etnia para o ultramar português, com destaque para o Brasil. Assim, já no ano de 1718 tem-se o registro da presença de várias famílias de ciganos em território mineiro, apesar da oposição da Coroa.
Parece impossível determinar o número de ciganos presentes na capitania de Minas na década de 1730, mas, a se julgar pela preocupação das autoridades em legislar continuamente sobre a necessidade de impor restrições, ou até mesmo de expulsar os ciganos das Minas, é bem provável que sua presença não fosse numericamente insignificante. Por outro lado, e confirmando as ambigüidades da política oficial em relação aos ciganos, não faltaram autoridades que buscaram uma política mais branda em relação ao grupo. Como no caso do governador Gomes Freire de Andrade, que em 1737 recomendava que fossem presos somente os ciganos que cometessem delitos e deixados em paz aqueles que se mostrassem integrados à sociedade.
A insistência com que o governador interino das Minas, José Carvalho de Andrade, defendia junto ao conde de Oeiras, em 1761, o atendimento dos pedidos de alguns ciganos de arrendarem terras e se fixarem na capitania, demonstra que vários ciganos estavam radicados nas Minas Gerais. A contrapartida oferecida pelo grupo seria a de alistarem seus filhos adultos no serviço das milícias, um dos pontos mais sensíveis da administração colonial. No mesmo sentido, apenas um ano antes, em 27 de março, a Câmara de Mariana enviava representação ao rei protestando contra a presença na cidade de uma “casta de gente ... com o título de ciganos tendo só por vida viajarem com toda a sua família de umas para outras comarcas furtando cavalos e tudo o mais que podem por ser assim próprio de semelhante gente” . Mas o documento, após insistir na aplicação de penas severas, inclusive o degredo, aos que fossem surpreendidos na prática de semelhantes crimes, não propõe – diferentemente do que estabelecia o bando de 1732 – que os ciganos fossem “despejados” das Minas. Antes, pedia que fixassem residência, em vez de seguirem errando pelas diversas regiões da capitania.
Ainda que o grupo continuasse identificado com a prática de crimes “contra a propriedade”, várias mudanças foram observadas no tratamento dispensado pelas autoridades e pela população colonial aos ciganos ao longo do tempo. Talvez devido ao papel que alguns de seus representantes vieram a desempenhar no tráfico interno de escravos já no século XVIII. Além disso, muitos senhores de escravos não hesitavam em recorrer ao auxílio dos ciganos para recuperar um cativo fugido de seus plantéis. Afinal, os ciganos eram famosos pelas mais fortes simpatias e orações “para aparecer negro fugido”.
Sobretudo do porto do Rio de Janeiro para as províncias de Minas e São Paulo, tal especialização no tráfico interno de cativos persistiu ao longo do século XIX. Ainda que recaísse sobre os escravos vendidos pelos ciganos – injusta ou justamente – a suspeita de serem produto de furto, o fato é que muitos pequenos proprietários mineiros se abasteceram de mão-de-obra escrava adquirida de comerciantes ciganos. Não é possível saber o vulto das transações realizadas pelos ciganos acusados de comercializarem “carga” roubada, mas surpreendem a ponto de parecer-nos suspeitos, esses sim, os montantes divulgados pelas autoridades. Um documento do ano de 1832 registra “a prisão do cigano Joaquim José de Roiz, suspeito de haver roubado e vendido em Minas e em São Paulo mais de ‘mil escravos’”.
Longe de ser linear, a política metropolitana em relação aos ciganos foi ambígua. As autoridades oscilavam entre proibições as mais abrangentes e a pretensão de incluírem – ainda que de forma instável – esse grupo social nos planos de expansão de seu império colonial.
Andréa Lisly Gonçalves é pós-doutora pela USP e professora do departamento de história da UFOP.
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
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