sexta-feira, 3 de abril de 2009

O bolo dos pelegos


Compulsório e sem fiscalização, o imposto sindical resiste há quase sete décadas. Ninguém consegue derrubá-lo
Ângela de Castro Gomes

Em um de seus livros para crianças, Monteiro Lobato cria uma possibilidade de mudar a realidade social, que certamente responde a desejos não só infantis. Emília, seu personagem mais conhecido, preocupada com a Segunda Guerra Mundial, que atormentava o Sítio do Pica-Pau Amarelo, empreende uma viagem fantástica em busca de uma solução para o conflito. Chega então a uma casa muito especial, pois nela estavam guardadas as chaves que regulavam “tudo aquilo que existia no mundo”. Tentando encontrar a chave que “fecharia” a guerra, Emília acaba mexendo em uma outra: a que alterava as proporções de todas as coisas vivas existentes, podendo fazê-las crescer ou diminuir de uma hora para outra. Ela encontrara a “chave do tamanho”.

Também durante a Segunda Guerra, um grupo de ideólogos e arquitetos do Estado Novo de Getulio Vargas, preocupado com os rumos da organização sindical brasileira, andava em busca de uma chave capaz de “aumentar o tamanho” dos sindicatos, principalmente os de trabalhadores. Queriam fazê-los crescer, tornando-os atraentes e representativos. Vencer as resistências era fundamental, porque o modelo de organização sindical então estabelecido articulava-se a um projeto de Estado autoritário, que tinha no controle das “classes produtoras” um ponto decisivo. Por isso, a organização de “empregados e empregadores” se fazia em torno de dois princípios: o da existência de um só sindicato por categoria profissional (a unicidade) e o caráter “público” do sindicato, expressos no “monopólio da representação” que o Estado garantia.
O grupo “pensou com força”, como fazia Emília, e produziu uma “chave do tamanho”. Ela recebeu o nome de imposto sindical, e – talvez para surpresa até de seus idealizadores, pois já se vão quase 70 anos — seus efeitos mágicos persistem até hoje.

A fórmula era simples. Tratava-se de dotar os sindicatos, as federações e as confederações de “empregados e empregadores” de fartos recursos orçamentários. Não só para garantir sua manutenção interna (prédios, equipamentos, estrutura administrativa etc.), mas também para atrair muitos associados pela prestação de serviços essenciais que não eram oferecidos pelo Estado, como os de assistência jurídica e de lazer.

Como os sindicatos eram órgãos de colaboração do Estado, sendo por ele tutelados, houve fácil acordo para lhes garantir o “direito” de receber “contribuições”, desde que controladas em sua gestão. O desacordo surgiu na hora de saber quem o sindicato poderia tributar. Alguns consideravam que só os associados deveriam ser descontados. Para outros, uma vez que os sindicatos tinham o “monopólio da representação”, todos os “empregados e empregadores”, associados ou não, deveriam contribuir. Nos dois casos, sabia-se que o caixa cresceria enormemente, até porque estavam previstos mecanismos para garantir o pagamento da cobrança.

Esse debate deseja deixar claro que, no momento da criação do imposto sindical, não houve consenso sobre quem deveria pagá-lo. Sobretudo no caso dos “empregados”, que passariam a ter o valor de um dia de trabalho por ano descontado em folha de pagamento. Como a sindicalização era facultativa, embora induzida pelo Estado, houve quem entendesse que, como o sindicato era único, deveria ser obrigado a defender todos os integrantes de sua “categoria profissional”, mesmo os não-associados, ou seja, mesmo os que nele não se inscreviam e pagavam taxas voluntariamente. Algo que iria fortalecer, e não enfraquecer a sindicalização. Mas a tese vencedora foi a de que todos, filiados ou não a um sindicato, deviam pagar. Essa operação deu ao imposto sindical um caráter inteiramente compulsório, além de dotá-lo, pelas grandes somas que arrecada, de um encantamento compreensivelmente duradouro.

O recolhimento dos recursos, originalmente distribuídos entre sindicatos (60%), federações (15%), confederações (5%) e o Ministério do Trabalho (20%), teve início em 1942, um pouco antes e em articulação com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Se a intenção de seus formuladores foi “dar vida” aos sindicatos enchendo-os de associados, seu efeito foi inverso e perverso, pois se a arrecadação de recursos estava garantida, tornou-se desnecessário ampliar o número de filiados para obtê-los. Além disso, quanto mais filiados, maior a competição por recursos/serviços oferecidos, sem falar na competição política pelos cargos de direção, cada vez mais atraentes.

O resultado é que o imposto sindical tornou-se o principal responsável por um processo de burocratização dos sindicatos e também por seu forte assistencialismo, mesmo que se reconheça o valor de tais serviços, em termos materiais e simbólicos.

Alguns desdobramentos dessa cobrança ficaram muito conhecidos. Entre eles, o fortalecimento e a perpetuação de dirigentes sindicais, durante décadas no controle das associações, transitando com desenvoltura pela burocracia dos governos de estados e da União. Mais do que interlocutores no debate de projetos que afetam os interesses de seus representados, essas figuras criaram evidentes oligarquias nos cargos de direção dos sindicatos, quer de trabalhadores, quer de patrões. São os chamados “pelegos” – dirigentes que se aproveitam dos amplos recursos a que têm acesso para defender interesses pessoais. À frente principalmente das federações e confederações, exibindo um estilo conciliador e pouco combativo, aliado a um modo de vida incompatível com o perfil de sua função, os pelegos se tornaram figuras lamentáveis da política brasileira.

Outra conseqüência foi a multiplicação dos “sindicatos de carimbo”, associações que se formam com a intenção explícita de ter acesso aos recursos do imposto ou da “contribuição” sindical – nome recebido durante o regime militar, depois das reformas do governo do general Castelo Branco. A proliferação desse tipo de sindicato, ao lado da figura do “pelego”, só é compreensível se entendermos que a fiscalização do uso dos recursos do imposto, prevista na CLT, na prática nunca existiu, ou nunca foi rigorosa. O que deu margem a escândalos sucessivos, e não esclarecidos, ao longo do tempo.

Além disso, quando existiu, no pós-1964, a fiscalização seguiu critérios políticos. Seu objetivo era “perseguir” direções sindicais consideradas “inimigas”. O dever de fiscalizar o uso de dinheiro público – garantido pelo Estado e compulsoriamente cobrado — acabou vinculado à idéia de intervenção política e indevida nos sindicatos. E isso no momento em que o governo militar atuava de forma violenta ante toda essa estrutura representativa, fechando sindicatos e prendendo seus líderes.

Desde os anos 1950, as reações ao imposto sindical por parte das lideranças são ambivalentes – havia críticas, embora partissem normalmente da oposição aos dirigentes estabelecidos. Esta situação se modifica no pós-64. Como o modelo de organização corporativa passou a ser identificado como a razão principal da falta de “autonomia” dos sindicatos, era preciso, para combater a intervenção do Estado, rejeitar seus fundamentos: a unicidade, a tutela (chamada de “enquadramento”) e o imposto sindical. Porém, durante a elaboração da Constituição de 1988, a discussão sobre a “autonomia” foi bem reduzida: ela defendia a ausência da intervenção direta do Estado nos sindicatos, mas não mexia com a cláusula da unicidade nem com o imposto sindical. Pelo contrário: associações de “empregados e empregadores” se uniram em torno da manutenção desse imposto. Reconheciam até que o tributo era um mal, mas o consideravam um mal ainda necessário, que não podia ser extinto de forma abrupta ou radical. Esse argumento dava a impressão de que o imposto estava com os dias contados e, sem ter defensores explícitos, caminhava para um gradual desaparecimento. Ledo engano.

Embora ao longo de décadas muito se tenha discutido e pesquisado sobre a importância “real” do imposto para a manutenção da estrutura sindical, todas as tentativas para extingui-lo foram vãs. E não foram poucas. A que mais caminhou foi também a mais recente, de 2007, que chegou a ser aprovada na Câmara dos Deputados, mas acabou rejeitada pelo Senado. A emenda, que recebeu forte e compacta oposição de “empregados e empregadores”, também foi atacada pelas centrais sindicais de trabalhadores, até então proibidas pela CLT por não obedecerem ao preceito das “categorias profissionais”. Existentes e poderosas de fato, mas não de direito, desde os anos 1980, as centrais sindicais estão sendo finalmente reconhecidas como parte dessa mesma estrutura. Como tal, elas querem, como sempre se quis, participar da distribuição do bolo do imposto, avaliado em mais de R$ 1 bilhão por ano.

As centrais – que já são cinco, mas devem aumentar em número (a unicidade só se aplica à base, não à cúpula) – sempre foram defensoras da extinção do imposto. Não são mais. Também não desejam que os recursos sejam fiscalizados por quem quer que seja, mantendo-se uma velha e danosa prática de abuso com o dinheiro público.

Estamos, mais uma vez, diante da “casa das chaves”, sem saber se e quando vamos “fechar” o imposto sindical, pois sequer desconfiamos da duração de seus poderes mágicos. E há quem pense que literatura infantil é só para crianças...

Ângela de Castro Gomes é professora titular de História, do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC/FGV) e da UFF, e organizadora do livro Leituras críticas sobre Boris Fausto. Belo Horizonte: Ed. UFMG, São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2008.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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