Correspondência completa de Machado acompanha suas transformações ao longo do tempo
Sergio Paulo Rouanet
Em carta de 21 de abril de 1908, escrita poucos meses antes de sua morte, Machado de Assis autorizava o amigo José Veríssimo a recolher e publicar sua correspondência. A permissão, no entanto, foi dada com um ceticismo tipicamente machadiano: “Não me parece que de tantas cartas que escrevi a amigos e a estranhos se possa apurar nada de interessante, salvo as recordações pessoais que conservarem para alguns... O tempo decorrido e a leitura que fizer da correspondência lhe mostrará que é melhor deixá-la esquecida e calada”.
Obviamente, a posteridade discordou de Machado de Assis nesse ponto, e muitas cartas foram sendo publicadas ao longo dos anos, despertando sempre o interesse de leitores e biógrafos.
A Editora Jackson fez um trabalho pioneiro nessa área, reunindo várias correspondências de e para Machado de Assis, mas segundo um critério altamente seletivo, que deixava de fora inúmeras cartas e a maioria dos correspondentes. A Nova Aguilar teve o mérito inestimável de publicar novas cartas de Machado, mas excluiu a correspondência passiva, o que tem a desvantagem de privar o fluxo epistolar de sua dimensão dialógica. Além desses dois epistolários gerais, foram também publicadas, em livros, jornais e revistas, cartas com interlocutores específicos, como Quintino Bocaiúva, Joaquim Nabuco, Salvador de Mendonça, Joaquim Serra, Miguel de Novaes, Mario de Alencar e Magalhães de Azeredo. O problema é que o privilégio concedido à relação isolada com um interlocutor faz com que se perca a visão de conjunto de um Machado múltiplo, que mantinha, simultaneamente, relações epistolares com muitos outros correspondentes, revelando-se assim ao leitor sob aspectos mais variados do que se lêssemos apenas as cartas trocadas com um determinado missivista. Finalmente, várias cartas foram transcritas em biografias, como Vida e obra de Machado de Assis, de R. Magalhães Júnior, o que tem o inconveniente de que a correspondências passam a ser interpretadas segundo o enfoque específico do biógrafo, impedindo seus autores de falarem por si mesmos.
Por tudo isso, pareceu à Academia Brasileira de Letras que uma das melhores maneiras de homenagear Machado de Assis por ocasião do centenário de sua morte seria publicar, por ordem cronológica, a correspondência completa do nosso maior escritor, tanto a ativa quanto a passiva, tanto a já publicada quanto a inédita. Ainda é cedo para se fazer uma avaliação do que essas cartas possam trazer de novo do ponto de vista da obra de Machado, mas podemos dizer desde já que elas são extremamente interessantes do ponto de vista biográfico. Em particular, as cartas da mocidade, sobretudo as recebidas, contribuem para desconstruir a imagem de Machado como um homem ensimesmado, casmurro, frio nas relações humanas. Elas revelam, ao contrário, um jovem boêmio, namorador, com quem os amigos se abriam e a quem faziam confidências amorosas, no tom ultra-romântico de uma juventude que fizera seu aprendizado literário lendo Musset e Álvares de Azevedo. É só nas cartas da maturidade que vai se consolidando a figura do funcionário sisudo e respeitável. Nelas se vê a transformação do Machadinho em Machado de Assis. Depois da morte de Carolina, em 1904, as cartas mostram o homem desesperado, niilista, que os biógrafos nos habituaram a ver atrás do escritor.
A mediação entre o primeiro Machado e o último é feita por Salvador de Mendonça, um dos seus correspondentes da juventude e o destinatário da que talvez seja sua última carta, escrita três semanas antes da morte. Neste sentido, pode-se dizer que Machado conseguiu, pela correspondência, “atar as duas pontas de sua vida”, objetivo que o destino recusou a Dom Casmurro, incapaz de reencontrar no Engenho Novo o adolescente de Matacavalos.
A ABL fez bem em ignorar o pessimismo do seu primeiro presidente, para quem sua correspondência deveria permanecer “esquecida e calada”: mais do que nunca ela merece ser lembrada e ouvida.
Sergio Paulo Rouanet é diplomata, ensaísta, membro da Academia Brasileira de Letras e autor de Riso e Melancolia. A forma shandiana em Sterne, Diderot, Xavier de Maistre, Almeida Garret e Machado de Assis (Companhia das Letras, 2007).
Cartas reunidas
O projeto dedicado a reunir e publicar a correspondência de Machado, conduzido pela ABL, vem sendo realizado por iniciativa do ex-presidente da casa, Marcos Vilaça, com total apoio do atual, Cícero Sandroni. A equipe coordenada por Sergio Paulo Rouanet percorreu o acervo da ABL e os arquivos de outras instituições, como a Biblioteca Nacional, a Casa de Rui Barbosa, a Fundação Getulio Vargas e o Ministério das Relações Exteriores. O projeto ainda teve a colaboração de particulares. As pesquisadoras Irene Moutinho e Silvia Eleutério ficaram responsáveis pela reunião e pela transcrição de todas as cartas. Segundo Rouanet, uma das novidades dessa edição é o fato de dispor de centenas de notas, com dados sobre inúmeras personagens e sobre episódios da vida política e cultural do Brasil, mencionados nas cartas, mas hoje praticamente desconhecidos. O primeiro volume, de 1860 a 1879, sairá este ano. As cartas seguintes, de 1880 a 1908, deverão ser publicadas em 2009.
Os três Machados
Boêmia juventude
“Machadinho, tenho muita precisão de falar contigo, e, como és um boêmio, incerto em toda a parte, ouso pedir-te que me procures na Praça [do Comércio], hoje, sem falta; melhor seria que lá chegasses antes de começares os teus trabalhos. Entra naquele soberbo edifício, atravessa-o impávido, e encaracola-te por uma escada de caracol que hás-de encontrar adiante do nariz. [...]
Espera-te sem falta, o teu do Coração,
F. X. de Novais”
(Rio de Janeiro, 14 de julho de 1865).
[Faustino Xavier de Novais era poeta e irmão de Carolina, futura esposa de Machado]
Sábia maturidade
“Recebi a carta de Vossa Excelência e o 1.º número da Revista Amazônica. Na carta, manifesta o receio de que a tentativa não corresponda à intenção, e que a Revista não se possa fundar. Não importa; a simples tentativa é já uma honra para Vossa Excelência, para os seus colaboradores e para a Província do Pará, que assim nos dá uma lição à Corte.
Há alguns dias [...] disse esta verdade de La Palisse: que não há revistas, sem um público de revistas. Tal é o caso do Brasil. Não temos ainda a massa de leitores necessária para essa espécie de publicações. [...]
Esta linguagem não é a mais própria para saudar o aparecimento de uma nova tentativa; mas sei que falo a um espírito prático, sabedor das dificuldades, e resoluto a vencê-las ou diminuí-las, ao menos. E realmente a Revista Amazônica pode fazer muito; acho-a bem feita e séria. Pela minha parte, desde que possa enviar-lhe alguma coisa, fá-lo-ei, agradecendo assim a fineza que me fez, convidando-me para seu colaborador”
(A José Veríssimo, Rio de Janeiro, 19 de abril de 1883).
Solitária velhice
“[...] Daqui a pouco a casa Garnier publicará um livro meu [Memorial de Aires], e é o último. A idade não me dá tempo nem força de começar outro. [...] Completei no dia 21 sessenta e nove anos; entro na ordem dos septuagenários. Admira-me como pude viver até hoje, mormente depois do grande golpe que recebi e no meio da solidão em que fiquei, por mais que amigos busquem temperá-la de carinhos [...]”
(A Joaquim Nabuco, Rio de Janeiro, 28 de junho de 1908)
Sergio Paulo Rouanet
Em carta de 21 de abril de 1908, escrita poucos meses antes de sua morte, Machado de Assis autorizava o amigo José Veríssimo a recolher e publicar sua correspondência. A permissão, no entanto, foi dada com um ceticismo tipicamente machadiano: “Não me parece que de tantas cartas que escrevi a amigos e a estranhos se possa apurar nada de interessante, salvo as recordações pessoais que conservarem para alguns... O tempo decorrido e a leitura que fizer da correspondência lhe mostrará que é melhor deixá-la esquecida e calada”.
Obviamente, a posteridade discordou de Machado de Assis nesse ponto, e muitas cartas foram sendo publicadas ao longo dos anos, despertando sempre o interesse de leitores e biógrafos.
A Editora Jackson fez um trabalho pioneiro nessa área, reunindo várias correspondências de e para Machado de Assis, mas segundo um critério altamente seletivo, que deixava de fora inúmeras cartas e a maioria dos correspondentes. A Nova Aguilar teve o mérito inestimável de publicar novas cartas de Machado, mas excluiu a correspondência passiva, o que tem a desvantagem de privar o fluxo epistolar de sua dimensão dialógica. Além desses dois epistolários gerais, foram também publicadas, em livros, jornais e revistas, cartas com interlocutores específicos, como Quintino Bocaiúva, Joaquim Nabuco, Salvador de Mendonça, Joaquim Serra, Miguel de Novaes, Mario de Alencar e Magalhães de Azeredo. O problema é que o privilégio concedido à relação isolada com um interlocutor faz com que se perca a visão de conjunto de um Machado múltiplo, que mantinha, simultaneamente, relações epistolares com muitos outros correspondentes, revelando-se assim ao leitor sob aspectos mais variados do que se lêssemos apenas as cartas trocadas com um determinado missivista. Finalmente, várias cartas foram transcritas em biografias, como Vida e obra de Machado de Assis, de R. Magalhães Júnior, o que tem o inconveniente de que a correspondências passam a ser interpretadas segundo o enfoque específico do biógrafo, impedindo seus autores de falarem por si mesmos.
Por tudo isso, pareceu à Academia Brasileira de Letras que uma das melhores maneiras de homenagear Machado de Assis por ocasião do centenário de sua morte seria publicar, por ordem cronológica, a correspondência completa do nosso maior escritor, tanto a ativa quanto a passiva, tanto a já publicada quanto a inédita. Ainda é cedo para se fazer uma avaliação do que essas cartas possam trazer de novo do ponto de vista da obra de Machado, mas podemos dizer desde já que elas são extremamente interessantes do ponto de vista biográfico. Em particular, as cartas da mocidade, sobretudo as recebidas, contribuem para desconstruir a imagem de Machado como um homem ensimesmado, casmurro, frio nas relações humanas. Elas revelam, ao contrário, um jovem boêmio, namorador, com quem os amigos se abriam e a quem faziam confidências amorosas, no tom ultra-romântico de uma juventude que fizera seu aprendizado literário lendo Musset e Álvares de Azevedo. É só nas cartas da maturidade que vai se consolidando a figura do funcionário sisudo e respeitável. Nelas se vê a transformação do Machadinho em Machado de Assis. Depois da morte de Carolina, em 1904, as cartas mostram o homem desesperado, niilista, que os biógrafos nos habituaram a ver atrás do escritor.
A mediação entre o primeiro Machado e o último é feita por Salvador de Mendonça, um dos seus correspondentes da juventude e o destinatário da que talvez seja sua última carta, escrita três semanas antes da morte. Neste sentido, pode-se dizer que Machado conseguiu, pela correspondência, “atar as duas pontas de sua vida”, objetivo que o destino recusou a Dom Casmurro, incapaz de reencontrar no Engenho Novo o adolescente de Matacavalos.
A ABL fez bem em ignorar o pessimismo do seu primeiro presidente, para quem sua correspondência deveria permanecer “esquecida e calada”: mais do que nunca ela merece ser lembrada e ouvida.
Sergio Paulo Rouanet é diplomata, ensaísta, membro da Academia Brasileira de Letras e autor de Riso e Melancolia. A forma shandiana em Sterne, Diderot, Xavier de Maistre, Almeida Garret e Machado de Assis (Companhia das Letras, 2007).
Cartas reunidas
O projeto dedicado a reunir e publicar a correspondência de Machado, conduzido pela ABL, vem sendo realizado por iniciativa do ex-presidente da casa, Marcos Vilaça, com total apoio do atual, Cícero Sandroni. A equipe coordenada por Sergio Paulo Rouanet percorreu o acervo da ABL e os arquivos de outras instituições, como a Biblioteca Nacional, a Casa de Rui Barbosa, a Fundação Getulio Vargas e o Ministério das Relações Exteriores. O projeto ainda teve a colaboração de particulares. As pesquisadoras Irene Moutinho e Silvia Eleutério ficaram responsáveis pela reunião e pela transcrição de todas as cartas. Segundo Rouanet, uma das novidades dessa edição é o fato de dispor de centenas de notas, com dados sobre inúmeras personagens e sobre episódios da vida política e cultural do Brasil, mencionados nas cartas, mas hoje praticamente desconhecidos. O primeiro volume, de 1860 a 1879, sairá este ano. As cartas seguintes, de 1880 a 1908, deverão ser publicadas em 2009.
Os três Machados
Boêmia juventude
“Machadinho, tenho muita precisão de falar contigo, e, como és um boêmio, incerto em toda a parte, ouso pedir-te que me procures na Praça [do Comércio], hoje, sem falta; melhor seria que lá chegasses antes de começares os teus trabalhos. Entra naquele soberbo edifício, atravessa-o impávido, e encaracola-te por uma escada de caracol que hás-de encontrar adiante do nariz. [...]
Espera-te sem falta, o teu do Coração,
F. X. de Novais”
(Rio de Janeiro, 14 de julho de 1865).
[Faustino Xavier de Novais era poeta e irmão de Carolina, futura esposa de Machado]
Sábia maturidade
“Recebi a carta de Vossa Excelência e o 1.º número da Revista Amazônica. Na carta, manifesta o receio de que a tentativa não corresponda à intenção, e que a Revista não se possa fundar. Não importa; a simples tentativa é já uma honra para Vossa Excelência, para os seus colaboradores e para a Província do Pará, que assim nos dá uma lição à Corte.
Há alguns dias [...] disse esta verdade de La Palisse: que não há revistas, sem um público de revistas. Tal é o caso do Brasil. Não temos ainda a massa de leitores necessária para essa espécie de publicações. [...]
Esta linguagem não é a mais própria para saudar o aparecimento de uma nova tentativa; mas sei que falo a um espírito prático, sabedor das dificuldades, e resoluto a vencê-las ou diminuí-las, ao menos. E realmente a Revista Amazônica pode fazer muito; acho-a bem feita e séria. Pela minha parte, desde que possa enviar-lhe alguma coisa, fá-lo-ei, agradecendo assim a fineza que me fez, convidando-me para seu colaborador”
(A José Veríssimo, Rio de Janeiro, 19 de abril de 1883).
Solitária velhice
“[...] Daqui a pouco a casa Garnier publicará um livro meu [Memorial de Aires], e é o último. A idade não me dá tempo nem força de começar outro. [...] Completei no dia 21 sessenta e nove anos; entro na ordem dos septuagenários. Admira-me como pude viver até hoje, mormente depois do grande golpe que recebi e no meio da solidão em que fiquei, por mais que amigos busquem temperá-la de carinhos [...]”
(A Joaquim Nabuco, Rio de Janeiro, 28 de junho de 1908)
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
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