Discriminadas pelo resto da população, prostitutas de Tocantins afirmam com orgulho sua condição e suas escolhas
Temis Gomes Parente
No dia 8 de agosto último, Marinalva, uma garota de programa, foi gravemente ferida a tesouradas por um empresário na cidade de Palmas (TO). Motivo: a namorada do homem, após descobrir que ele costumava sair com aquela prostituta, lhe pedira uma “prova de amor”, que se materializou na agressão. A violência no cotidiano destas mulheres pode manifestar-se de forma brutal, como no caso de Marinalva, noticiado pelo Jornal do Tocantins, ou de outras garotas de programa espancadas recentemente no Rio de Janeiro e em São Paulo. Ou de maneira mais sutil, por meio do preconceito e da discriminação, que as relegam à condição de seres quase subumanos.
No âmbito de uma pesquisa com as prostitutas de Tocantins para reconstruir a história de algumas cidades coloniais do estado, entrevistamos em 2004 Eva Garcia, que foi, na década de 1970, uma das prostitutas mais conhecidas da cidade de Porto Nacional. Ela morreu em 2005, aos 61 anos, na mesma casa da Rua Bartolomeu Bueno onde exerceu suas atividades de “mulher de vida livre”, expressão que preferia à denominação “prostituta”. Por quê? “Porque faço o que quero, na hora que quero, e não tenho que dar satisfação a ninguém”. Por ter conseguido adquirir o imóvel em que morava, ela foi a única prostituta que conseguiu permanecer na antiga zona de meretrício, transferida, nas três últimas décadas, para áreas mais distantes.
Porto Nacional é uma das poucas cidades de passado colonial do Tocantins. Localiza-se a 60 quilômetros da capital, Palmas, e é considerada o berço da cultura do antigo norte do estado de Goiás. Era também conhecida como a capital intelectual da região, atributo a ela conferido desde o início do século XX, com a chegada dos dominicanos, responsáveis tanto pela educação quanto pela disseminação de preceitos morais e religiosos naquele contexto social.
Nos anos 1970, Porto Nacional era a cidade mais desenvolvida da região. Na época, a zona de prostituição era delimitada por fronteiras imaginárias que não podiam ser ultrapassadas pelas moças respeitáveis nem pelas senhoras casadas. A cidade acabava sendo dividida em duas partes: uma, onde moravam as mulheres de “vida livre”, e a outra – a “cidade deles”, na expressão de Eva Garcia –, habitada por gente “de bem”.
Apesar de conhecidas por todos, as casas de mulheres localizavam-se em ruas pouco movimentadas e distantes dos centros comerciais onde circulava a burguesia. Eva tinha uma percepção clara desses limites. Quando abandonou marido e filhos em Anápolis (GO), foi morar numa dessas casas. Mas as fronteiras que separavam as prostitutas do resto da cidade foram sendo rompidas, paulatinamente, no processo de desenvolvimento urbano.
As famílias reclamavam que o comportamento das “mulheres de vida livre” não condizia com o código moral da comunidade. Os conflitos eram inevitáveis, conforme o relato de Eva Garcia: “Nesse tempo, as pessoas todo dia iam à delegacia dar parte de nós”. Quando era dia de festa religiosa, “a gente fechava as casas e ia à procissão, todo mundo olhava torto, mas nós não ligava, não”.
O preconceito não era manifestado só pelos adultos, mas também pelas crianças, provavelmente induzidas pelo comportamento dos pais. Por circular em locais para ela proibidos, Eva Garcia chegou a ser apedrejada, como a Maria Madalena da Bíblia, por um grupo de meninos: “Nesse tempo, eu tinha cabelo louro e eles gostavam de me chamar de cabeça de guariba [tipo de macaco]: ‘Ei, cabeça de guariba’, e tacavam pedra”.
À medida que as famílias “de bem” iam ocupando os espaços antes destinados às casas de mulheres, as prostitutas se viram obrigadas a recuar para locais cada vez mais distantes, onde não podiam contar com benfeitorias patrocinadas pelo poder público, como energia elétrica e água encanada.
As “mulheres de vida livre” como Eva Garcia tinham, assim, uma percepção do espaço urbano totalmente oposta à do discurso oficial. Enquanto este apontava Porto Nacional como uma cidade progressista, elas viviam em permanente estado de guerra, no seu dia-a-dia, pela sobrevivência. A violência contra as prostitutas não se resume, portanto, à agressão física que vitimou Marinalva, a infortunada garota de programa. Ela se aloja nas fibras da sociedade formal e pode se manifestar também pela omissão e pelo silêncio.
Temis Gomes Parente é professora da Universidade Federal do Tocantins e autora do livro O avesso do silêncio: vivências cotidianas das mulheres do século XIX (Goiânia: Editora UFG, 2006).
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
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