Mário de Andrade acreditava que uma enciclopédia brasileira diminuiria a desigualdade por meio do conhecimento. O ousado projeto foi engavetado por Getulio Vargas
Adriana Facina
Autor de Macunaíma (1928), um dos maiores clássicos da nossa literatura, Mário de Andrade (1893-1945) não conseguiu obter o seu sustento somente com a venda de livros. Assim como a maioria dos escritores brasileiros de sua época, o “papa do Modernismo” teve que recorrer a um emprego no serviço público para garantir certa estabilidade financeira, ingressando em 1939 no Instituto Nacional do Livro como consultor técnico. Conciliando as tarefas burocráticas com o exercício literário, o autor paulistano elaborou, no tempo em que trabalhou para o governo, o esboço de um projeto que poria em prática suas idéias a respeito do uso do conhecimento como uma ferramenta para a democratização do Brasil: a Enciclopédia Brasileira.
Pouco conhecido pelo grande público, o texto é de grande importância para se entender o pensamento de Mário de Andrade e os debates travados por artistas e intelectuais durante o Estado Novo (1937-1945), período ditatorial do governo de Getulio Vargas. Desde o início da década de 1930, o Estado brasileiro passou a reunir intelectuais das mais diversas origens em seus quadros burocráticos. Quando Gustavo Capanema assumiu o Ministério da Educação e Saúde Pública – órgão-chave ao longo de toda a Era Vargas – em 1934, este movimento se intensificou. O ministro teve a seu serviço grande parte da alta intelectualidade da época, reunindo tendências políticas diversas e projetos muito variados. O Instituto Nacional do Livro, onde Mário de Andrade trabalhava, era um órgão subordinado ao Ministério da Educação e Saúde Pública.
Durante o período do Estado Novo, o governo de Getulio Vargas procurou construir uma unidade orgânica no país, que serviria de base para a formação de uma identidade cultural brasileira. Os pensadores do regime se esforçaram para demonstrar que o governo respondia aos anseios de renovação nacional a partir do ideal da brasilidade. Mário de Andrade nunca foi propriamente um defensor do Estado Novo. Sua posição como funcionário público sempre foi complicada, e as cartas que enviou ao ministro Capanema retratam a instabilidade e o desconforto que sentia frente ao poder.
Uma história gloriosa feita de heróis e grandes vultos: esta era a tradição que o Estado Novo pretendia consolidar no Brasil. Por isso, um anti-herói como Macunaíma não era bem-visto, e as idéias modernistas que agradavam ao regime definitivamente não eram aquelas da vertente crítica, à qual Mário de Andrade pertencia. O governo pretendia utilizar a cultura para elaborar a imagem de um Brasil grandioso. Mais identificada com a exaltação da pátria e das glórias nacionais, a visão ufanista do grupo verde-amarelo – liderado pelo político Plínio Salgado e pelo escritor Menotti del Picchia – seria incorporada pelo Estado Novo.
Apesar de terem suas idéias preteridas, os modernistas da vertente progressista, como o próprio Mário de Andrade, não estavam excluídos da colaboração com o governo. O grupo mais inovador se organizava exatamente em torno do Ministério da Educação. O fato de estarem ligados a um órgão oficial limitava um pouco as atuações políticas destes intelectuais, mas, mesmo assim, pode-se dizer que eles trabalhavam com certa margem de autonomia.
Muitas vezes, iniciativas culturais do governo acabavam se confundindo com políticas de propaganda ideológica do Estado Novo. A falta de demarcação entre as duas práticas gerava problemas e ambigüidades na participação dos intelectuais em ações culturais e educacionais. Muitos receavam estar alimentando as ferramentas de propaganda de um regime ao qual se opunham.
O anteprojeto da Enciclopédia Brasileira é concebido, então, em meio a uma realidade muito especial. Como fora elaborado por um funcionário público que escrevia sob encomenda, era inevitável que o material fosse (ou pelo menos parecesse) portador de valores compatíveis com os ideais nacionais do Estado Novo. Mário de Andrade compreendeu que deveria usar no texto uma linguagem menos crítica do que o estilo habitual de sua escrita. O escritor paulistano percebeu ainda que a relação com o poder representava a oportunidade de realizar alguns de seus objetivos. O Estado poderia tornar possível o esclarecimento da classe trabalhadora fazendo a mediação entre materiais elaborados pelos letrados [quer dizer intelectuais?] e sua viabilização e divulgação entre os iletrados ou pouco letrados.
Na redação do anteprojeto, Mário de Andrade justificou a importância de uma Enciclopédia Brasileira com argumentos bastante práticos. O principal deles era o seguinte: a obra representaria uma economia significativa para as famílias brasileiras, já que valeria por uma biblioteca inteira. A enciclopédia deveria ter, em primeiro lugar, um preço acessível. Poucas pessoas no Brasil tinham a possibilidade de adquirir muitos livros sobre os mais variados assuntos, mas o governo poderia subsidiar o acesso da classe trabalhadora ao produto, priorizando a qualidade e não as preocupações comerciais. O investimento financeiro do Estado seria compensado pelo aprimoramento cultural do país. Para Mário de Andrade, o fundamental era que o material fosse difundido entre toda a sociedade, principalmente nas classes populares: “O ideal, neste sentido, será construir-se uma ótima enciclopédia e vendê-la por tal menor preço e com tais facilidades de pagamento, que ela possa viver nos lares operários.”
Antes de elaborar o plano básico da Enciclopédia Brasileira, o autor teria que responder a duas perguntas importantes, essenciais para definir a orientação do material: “A quem deverá ela servir?” e “Qual o seu caráter cultural?” Para respondê-las, ele faria um breve diagnóstico das “circunstâncias” que o país enfrentava no final da década de 1930: “Somos um país de muito pequena elite cultural, larga massa camponesa analfabeta e populações urbanas irregularíssimas em sua cultura. A população dos alfabetizados tende a crescer, sobretudo nas cidades, e faz-se de grande urgência servir-lhe às necessidades gerais e técnicas de conhecimento intelectual.” Mário de Andrade considerava a produção literária – tanto nacional como portuguesa – de livros e manuais técnicos de artes e ofícios quase nula. Artífices e operários em geral não teriam à sua disposição instrumentos teóricos para “alimentar e desenvolver intelectualmente o conhecimento dos seus ofícios, e sequer a sua cultura geral”.
Mas a enciclopédia não deveria ser exclusivamente voltada para um público de trabalhadores: “Parece que o ideal de uma enciclopédia brasileira nossa contemporânea será pretender uma aparentemente ambiciosa multivalência. Criar-se uma obra de caráter misto que possa, conforme o assunto, se dirigir à classe que este assunto diretamente interesse, e a todas as classes ser útil”. Para atingir diferentes tipos de leitor, a enciclopédia deveria primar por um formato francamente objetivo e realista. De acordo com a natureza do verbete, e a quem o assunto interessava, o critério da explicação também poderia ser modificado. Era fundamental que a publicação fosse dotada de “uma geral objetividade realista, nada sentimental, que não dê opiniões nem palpites, nem tome partido.”
O conceito de “multivalência”, citado pelo autor paulistano, seria essencial na Enciclopédia Brasileira, isto é, a tarefa educativa da obra teria de seguir por duas vias complementares: esclarecimento de letrados e de não-letrados. Esta era uma maneira de atingir diferentes segmentos sociais, elaborando um conteúdo de interesse comum que reforçasse uma unidade e evitasse exclusões.
A Enciclopédia Brasileira se filia a uma tradição iluminista, do século XVIII, que acreditava na emancipação do homem, na sua libertação e felicidade, por meio do conhecimento e da razão. Entretanto, o projeto se confrontou com a vontade do Estado Novo de construir e impor sua visão do passado e das tradições nacionais, assim como sua imagem do presente e do futuro do país.
Na tentativa de superar este dilema, Mário de Andrade buscava um caminho mais democrático para o processo de formação de uma cultura brasileira ao enfatizar seu caráter de percurso de mão dupla. A instrução intelectual dos brasileiros não poderia se dar somente de cima para baixo. Se, por um lado, os subalternos deviam aprender a ler e adquirir conhecimentos gerais, por outro, as classes dominantes teriam de conhecer as tradições culturais e os modos de vida das camadas populares da sociedade.
Mário de Andrade dizia ainda que a Enciclopédia Brasileira não poderia ambicionar “a importância cultural universal das grandes enciclopédias existentes nos países mais favorecidos por uma cultura mais tradicional”, referindo-se explicitamente às publicações européias, como a Britannica e a Italiana. Sua importância e sua legitimidade viram do fato de oferecer um grande volume de “conhecimentos a respeito da coisa brasileira”. Por exemplo, o duque de Caxias seria mais importante do que Napoleão Bonaparte, ainda que a relevância do segundo na história universal seja maior. O conhecimento da história nacional deveria estar em destaque em relação aos outros assuntos. A publicação serviria para preencher o vazio que existiria nas enciclopédias estrangeiras a respeito da “coisa nacional” do Brasil.
Por serem assuntos que aproximariam todos os públicos, os temas nacionais deveriam ser enfatizados, o que eliminaria diferenças entre os graus de cultura dos leitores.
Nos termos de Mário de Andrade, tanto as camadas mais pobres quanto as classes dominantes brasileiras teriam uma formação cultural precária. Pois se o analfabetismo e a ignorância a respeito da alta cultura eram problemáticos, o desconhecimento de nosso passado histórico e das tradições culturais populares brasileiras não ficava muito atrás.
Os exemplos utilizados pelo escritor para falar de folclore e de arte colonial deixam clara a sua idéia de que a tradição deveria ser o alicerce de uma cultura brasileira de valor universal. Na sua visão, era de fundamental importância conhecer e relacionar ao presente tanto o passado quanto o presente de outro espaço geográfico: o interior do país, principalmente as regiões Norte e Nordeste, fontes mais ricas para o estudo do folclore brasileiro. O autor de Macunaíma não se refere somente à necessidade de expressar ou dar a conhecer as “coisas nacionais”; mais importante seria alimentar a criação cultural brasileira, dando-lhe método, rigor e coerência. Para tanto, seria indispensável criar autonomia de pensamento, não orientar as idéias dos leitores nem criar preconceitos, e sim permitir que fizessem uso livre da própria razão.
Valorizar a tradição na cultura brasileira significaria propor um projeto de inclusão das mais diversas manifestações das artes e das letras. O artista e o intelectual teriam, neste processo, o papel fundamental de unir dois mundos distintos e ainda muito distantes na realidade do país daquele momento: o mundo da cultura popular e o mundo da cultura erudita.
A aposta de Mário de Andrade perde força com o passar do tempo. O anteprojeto de Enciclopédia Brasileira, engavetado, não chega a concretizar-se. Em “Elegia de Abril”, um texto de 1941, o autor manifesta a sua angústia com o destino dos intelectuais. No diagnóstico que faz, ele condena o conformismo que resultou da participação de letrados e artistas no poder.
Todo o projeto do “Papa do modernismo” para a mudança da realidade brasileira estava baseado em reconciliações que se mostravam cada vez mais utópicas. Sua crença na possibilidade de diminuir as desigualdades sociais por meio do conhecimento, da divulgação e da valorização das tradições populares na vida cultural do país pode ter ficado abalada. Isto porque, durante o Estado Novo, houve políticas culturais que tentaram, mas não conseguiram construir uma sociedade mais igualitária.
A enciclopédia que faria do conhecimento uma arma a favor da cultura, da democracia e do fim da desigualdade nunca ficaria pronta. Mas a missão de Mário de Andrade seria, em parte, bem-sucedida, pois graças aos esforços dos modernistas, os pensadores e artistas brasileiros nos anos 1940 eram muito mais esclarecidos a respeito do folclore e da cultura nacional do que haviam sido nas décadas anteriores.
Adriana Facina é professora do Departamento de História da UFF e autora do livro Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
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