Embora a legislação brasileira tenha se aprimorado, o Estado mostra-se particularmente inábil para lidar com a questão do jovem em conflito com a lei
Paula Miraglia
Foi sob esta manchete – “Menor assalta criança na porta da escola” – que há alguns anos um jornal brasileiro noticiou o assalto praticado por um jovem contra uma criança, pouco mais nova que ele. A aparente contradição da frase expressa uma associação específica entre infância, juventude e violência que se tornou linguagem corrente na sociedade brasileira.
A questão do menor não é tema recente no país. Constantemente associado ao fenômeno da urbanização das cidades, o envolvimento da juventude com o crime – sobretudo da juventude em situação de risco – vem sendo amplamente debatido ao longo dos últimos cem anos no Brasil. A palavra “menor”, quando mencionada em relação a crianças e adolescentes, teve nesse percurso uma variedade de significados.
No final do século XIX, o termo designava a criança pobre e marginalizada pela sociedade. Já na virada do século, “menor” deixou de ser um indicativo apenas de idade e passou a definir a responsabilidade de um indivíduo perante a lei. Mas já então abrangia, além das crianças que cometiam delitos, também as pobres ou abandonadas. Hoje, a expressão “menor infrator” condensa as imagens de pobreza e criminalidade, bem como o medo que esse personagem provoca no dia-a-dia das metrópoles.
Se os jovens aparecem como protagonistas da violência, os números mostram, no entanto, que eles são também suas vítimas primordiais. O aumento das taxas de homicídios no Brasil está imediatamente relacionado ao crescimento do número de crimes praticados contra a juventude, atingindo majoritariamente jovens do sexo masculino e da “cor” ou “raça” negra.
“Criminosos”, “meninos”, “jovens infratores”, “adolescentes”, “menores”, “jovens em conflito com a lei”. A variedade, bem como o desconforto que provoca a nominação, expressa a ambigüidade da sua condição, as particularidades e os desafios das políticas de enfrentamento da violência juvenil no Brasil ao longo da história.
De acordo com o primeiro Código de Menores brasileiro, de 1927, o juiz de menores era a “autoridade competente”, e a ele cabia vigiar e fiscalizar as irregularidades sofridas ou cometidas por crianças e jovens. A partir de 1941, a infância desamparada passou a ser alvo de intervenção do Serviço de Assistência aos Menores (SAM). Em meados dos anos 1960, o SAM foi substituído pela Funabem (Fundação Nacional para o Bem-Estar do Menor).
A Febem (Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor), braço estadual da Funabem, surgiu na década de 1970, durante o regime militar, como uma tentativa de redirecionar as políticas relativas à reabilitação de jovens delinqüentes, vinculando a questão do menor à questão da segurança nacional.
As sucessivas rebeliões nesta instituição, elementos constantes de sua história recente, têm um enredo comum que parece se intensificar a cada episódio: conflitos, fugas, destruições, repressão. Esses eventos contribuíram para que a Febem se tornasse um dos símbolos mais contundentes da violência, da desorganização e do medo que caracterizam o cotidiano da metrópole paulistana. E, além disso, revelam, ao longo de todos esses anos, a ineficácia da proposta educativa do modelo, que falha na sua tarefa de ressocializar.
A ação de movimentos sociais durante toda a década de 1980 permitiu que, na esteira do processo de democratização política pelo qual passava o país, se configurasse uma nova legislação, específica para a infância e a adolescência. A Constituição Federal de 1988 e a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em vigor desde 13 de julho de 1990, são marcos históricos na construção de uma nova idéia de cidadania no que diz respeito à juventude.
O ECA surgiu como um instrumento de desenvolvimento social, e não de controle social da infância e da adolescência, tal qual a legislação anterior. Numa tentativa de desfazer estereótipos criados a partir da associação entre menor, crime e delinqüência, fala em “ato infracional” em vez de crime, “adolescente” ou “pessoa em desenvolvimento”, em contraposição aos termos “menor” ou “delinqüente juvenil”, “medida socioeducativa” e não “pena”.
Mas se a lei vem se aprimorando ao longo dos anos, o aparato para executá-la não parece acompanhar o mesmo passo. O Estado, de maneira geral, não tem dado conta dos desafios impostos pela violência que vitimiza o país, e se mostra particularmente inábil em relação aos jovens que cumprem medidas socioeducativas. Estes, por sua vez, respondem com doses ainda maiores de violência, estabelecendo um ciclo que precisa ser urgentemente quebrado.
Paula Miraglia é diretora executiva do ILANUD (Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente) e autora da dissertação “Rituais da violência – a Febem como espaço do medo em São Paulo” (USP, 2002).
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
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