domingo, 19 de abril de 2009

Preguiça colonial




Durante muito tempo, o trabalho era restrito aos escravos. Mas a Coroa portuguesa tinha planos para erradicar a ociosidade na Colônia
Maria Helena Ochi Flexor

No fim do século XVIII, Luís dos Santos Vilhena, professor de grego na cidade de Salvador, definia a preguiça como a qualidade daqueles que eram capazes de ação, mas preferiam o descanso, e com muita dificuldade decidiam sair dele. A ociosidade era um atributo das pessoas que trabalhavam, mas pouco. Já a vadiagem era própria daqueles que andavam perambulando pelas vilas, sem trabalho, vivendo de divertimentos e crimes, sem meio de vida conhecido. Vilhena achava que essas atitudes eram vícios e, portanto, contrárias aos bons costumes e merecedoras de reprovação.

Um século antes, o poeta Gregório de Mattos – o “Boca do Inferno”, cuja pena ferina atingiu e incomodou muita gente de seu tempo –, como membro de família abastada, fazia parte da classe social que tinha direito institucional à ociosidade. Talvez por isso, aqueles que, como ele, não eram muito apegados ao trabalho raramente tenham sido alvo de suas críticas mordazes: em toda a sua obra conhecida, só há uma referência a um personagem vadio, um barbeiro.

A diferença entre o modo como Gregório de Mattos e Luís dos Santos Vilhena enxergavam o trabalho e o ócio se deve ao início de uma mudança na mentalidade da sociedade em relação a essas questões. A mesma oposição pode ser encontrada entre Pedro Taques, autor da Nobiliarquia paulistana histórica e genealógica, que enobreceu seus ilustres antepassados paulistas, e o juiz da Alfândega Marcelino Pereira Cleto, que escreveu suas memórias entre 1782 e 1814, e que ressaltava a preguiça provocada pela abundância da pesca no litoral de São Paulo, considerando seus habitantes bem mais vadios que os do planalto.

A nova visão, que exaltava as benesses do trabalho, era influenciada pelo pensamento europeu da época. Provavelmente, a pequena glaciação que atingiu parte do continente entre 1400 e 1700, trazendo invernos mais longos e temperaturas mais baixas, provocou um grande impacto na agricultura, nas florestas, na saúde (associada à peste bubônica), na economia e na sociedade. Nos séculos XV e XVI também haveria uma grande mudança nas artes, no artesanato e na cultura em geral, fenômeno que resultou no que se conhece por Renascimento.


As viagens de descobrimentos representavam também uma forma de atenuar os males causados pelos fenômenos climáticos no Velho Mundo. Traziam-se condimentos do Oriente para conservar alimentos. As trocas de mudas de plantas e animais com outros povos – entre as inúmeras conquistas – visavam multiplicar ou substituir os alimentos desaparecidos de algumas regiões da Europa. O impacto disso, sobretudo na agricultura e no pastoreio, fez com que os europeus iniciassem um processo de revisão de seus conceitos que culminou com a valorização da agricultura e do comércio como atividades dignas. Até então, o trabalho não era visto como uma virtude.

Outras transformações, que culminariam com a Revolução Francesa, seriam gestadas durante boa parte do século XVIII, provocando mudanças que levaram muitos reinos a trocar a monarquia absolutista por governos constitucionais. A valorização do trabalho foi um fator essencial nesse câmbio de mentalidade, que levaria a uma outra revolução – a Industrial.

No Brasil também houve mudanças significativas. O comércio de Portugal com o Oriente começava a declinar em meados do Setecentos. D. José I e seu ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, o conde de Oeiras (mais tarde marquês de Pombal), implementaram um projeto de reformas administrativas, econômicas, sociais, religiosas, educacionais e políticas. Dentro desse projeto, a Coroa se mobilizava para realmente colonizar o Brasil, tomando posse do território e povoando-o, fato decorrente do Tratado de Madri, de 1750, com a Espanha.

A decisão resultou na criação de inúmeras vilas, povoações, freguesias; em sua maioria, antigas aldeias indígenas dos jesuítas, dos franciscanos e dos carmelitas. Para implantar o projeto, foram escolhidos homens de inteira confiança do conde de Oeiras, como seu meio-irmão Francisco Xavier de Mendonça Furtado, enviado para governar o Estado do Grão-Pará e Maranhão. Seriam nomeados ainda juízes de fora, ouvidores e engenheiros das comissões de demarcação de fronteiras. Estes permaneceriam por nove ou dez anos em seus postos, para garantir a execução do que fora planejado.


No Brasil, começou uma intensa luta contra a ociosidade e a preguiça. O trabalho passou a ser valorizado e algumas atividades foram incentivadas, a começar pela agricultura, seguida pelo comércio. As autoridades foram rigorosas, em discursos e ações, no combate ao hábito negativo: eram dadas penas pesadas a quem tivesse em casa homens vadios sem avisar as autoridades.

Os primeiros habitantes das vilas deveriam ser vadios e criminosos de pequenos delitos, e, majoritariamente, índios. Para reforçar o povoamento, foram trazidos colonos dos Açores, da Madeira, do Norte da África e da região do Minho, em Portugal. Dentro dessa política de ocupação do território, foi dada liberdade aos índios, que se tornaram vassalos, procurando europeizá-los, fazê-los falar a língua portuguesa e viver em “sociedade civil”. Isto significava viver em um núcleo urbano, onde poderiam receber os sacramentos, ter moradia unifamiliar, aprender a ler e escrever, ou um ofício mecânico, e a se vestir como os civilizados. Evidentemente, os índios também teriam ocupações regulares, para produzir excedentes e comercializá-los. Desta forma, desenvolveriam a ambição e, conseqüentemente, a noção de lucro, para poderem comprar escravos e aumentar sua produção.

Para fixar os habitantes ao solo, foi proibida a exploração do ouro, sendo confiscados todos os instrumentos dos ourives e proibido o exercício da profissão. Estabeleceu-se que de forma alguma se deveria explorar o ouro, por ser a atividade motivo de muita vadiação e pobreza. Aqueles que não permaneciam nos novos núcleos urbanos eram considerados desertores. Todos precisavam de passaporte para transitar entre as comarcas e capitanias, uma exigência destinada a evitar ficassem vagabundeando de um lugar para outro.

D. Luís Antônio de Souza Botelho Mourão, o Morgado de Mateus, governador de São Paulo, testemunhava que dois vícios dominavam o povo e eram, além de pecados, causa da sua pobreza: a presunção e a preguiça. Dizia não ter palavras para expressar o excesso a que chegaram esses dois vícios. Em seguida, constatava que a grande maioria dos homens e mulheres não fazia nada: ficavam deitados de dia e de noite, balançando-se na rede ou cachimbando, e afirmavam desprezar o trabalho, deixado para os pretos, que lhes proporcionavam o que comer. Aqueles que trabalhavam o faziam às escondidas, porque seriam malvistos. O governador de São Paulo atribuía o atraso da agricultura à vadiagem e à preguiça, às vendas a crédito e à existência de escravos.


Os habitantes da América sabiam que suas terras lhes davam alimentos em abundância onde se semeasse, sem ser necessário plantar em roças de mata virgem. O que impedia o sucesso das atividades agrícolas era a suma preguiça e a negligência, não só dos índios, mas também dos filhos do Reino que, por desprezarem o trabalho, o abandonavam aos escravos. Muitos portugueses não tinham intenção de permanecer no Brasil, daí não se estabelecerem nem buscarem trabalho fixo para ter rendas. Partiam para as colônias espanholas em busca da prata.

Embora os índios fossem considerados os mais preguiçosos, devido à sua visão de mundo peculiar, os portugueses não fugiam a essa pecha. Ainda em 1538, o humanista Clenardo, escrevendo de Lisboa a seu amigo Latônio, afirmara que em Portugal a agricultura era vista com muito desprezo. Para ele, o elemento que formava o “nervo principal de uma nação” ali era de grande debilidade, pois se havia “algum povo dado à preguiça sem ser o português”, então não sabia onde existia.

A maioria dos núcleos urbanos criados no Brasil não progrediu. Podem ser citadas diversas causas: a mentalidade do português que vinha para cá, a subordinação de umas regiões a outras, o número restrito de habitantes e sua dispersão. Relatos da segunda metade do Setecentos acusavam a falta de capitais, a presença da escravatura que causava “mais anemia, a indolência dos habitantes”. Fazia-se referência também a um dos mais graves constrangimentos sociais, a corrupção.

Vários autores, em diversas regiões, condenavam veementemente a vadiagem. O marechal Arouche de Toledo Rendon (1756-1834) chegou a afirmar que “a vadiação só por si é um crime público dos mais prejudiciais ao Estado e, por conseqüência, não há nisto infração dos direitos da liberdade, porque nenhum vassalo pode eximir-se das leis da sociedade e nenhum pode ter o direito de, em boa saúde, sustentar-se à custa dos demais, como sucede com todos os vadios”. As idéias de alguns destes autores buscavam justificar, ainda no fim do Setecentos e mesmo no século XIX, o confinamento e a escravidão indígenas.


Os forros e os mestiços, mesmo depois de livres, nunca deixaram de estar ligados à visão que se tinha da escravidão. Atribuía-se ainda ao índio a culpa por muitos brancos terem sido contagiados pela falta de ambição que negava o trabalho. O índio, confinado pela má compreensão de sua visão de mundo e de seu tipo de vida, não teve muitas chances e, em geral, não conseguiu absorver as noções de ambição, civilidade, trabalho e espaço dos brancos.

Uma das formas de coibir os ociosos e os preguiçosos era recrutá-los, dispensando os trabalhadores. Em algumas capitanias, ficou estabelecido que para todos os serviços, inclusive os reais, deviam ser convocados os vadios e desimpedidos, e, em caso de necessidade, os que trabalhavam na agricultura, mas que fossem escolhidos os que não fizessem falta.

Passou-se a convocar, normalmente, os ociosos para as tropas. Por exemplo, para a conquista de novos lugares, como Ivaí, Rio Pardo, Iguatemi, este chamado de “cemitério dos paulistas”, deviam ser chamados, antes dos próprios militares, os solteiros vadios e os casados que não tivessem domicílio, sob pena de terem que sentar praça forçadamente.

Rendon achava que as milícias deviam ser formadas somente por índios, e que fossem dispensados os que trabalhassem nas paradas e obrigações públicas. Achava que se os capitães- mores corruptos e os vadios sentissem medo do recrutamento, então se dedicariam ao trabalho. Entretanto, até o Império verificou-se que essa estratégia não teve resultados. Rendon se justificava dizendo que o trabalho forçado “ao longo do uso lhe há de formar uma nova natureza”.


No fim do século XVIII, com o aumento da agricultura e do comércio, dizia-se que a inércia e a preguiça estavam contidas. O Brasil finalmente entrava na competição do mercado externo. O otimismo, entretanto, só mostrava uma pequena mudança de mentalidade e certa valorização do trabalho. Os índios continuariam a ter fama de preguiçosos e ariscos ao trabalho e os serviços braçais seguiriam sendo considerados “indignos” e restritos às classes baixas, cujo suor garantiria, ainda por muito tempo, os lucros e o bom descanso das elites.

Maria Helena Ochi Flexor é professora emérita da Universidade Federal da Bahia e professora da Universidade Católica do Salvador (UCSal); é autora do artigo “A ociosidade, a vadiagem e a preguiça: o conceito de trabalho no século XVIII”, Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Salvador, no 95, p. 73-89, 2000.
Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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