Carnaval e manifestações populares na Bahia
Wlamyra R. de Albuquerque
Se o assunto é festa, a Bahia costuma ser referência obrigatória. Há muito tempo o estado é conhecido como território da alegria desmedida, do prazer ruidoso e arrebatador. No século XIX, o francês L.F. Tollenare já se referia às festas baianas como cenas de total desregramento, nas quais as danças mais pareciam a “crua representação do ato de amor carnal”.
Cada vez mais atentos às particularidades históricas, os pesquisadores se distanciam das análises que só procuram ver nas festas públicas o desregramento, a subversão e/ou a reafirmação da ordem social. Estão mais interessados no que é singular nas sociedades que se expõem festivamente. As festas da Bahia se tornam mais interessantes nesta perspectiva. É o que nos sugere, por exemplo, o carnaval de 1897.
Ainda era janeiro e a “Embaixada Africana” já fazia circular um manifesto anunciando a sua participação no carnaval daquele ano. Estes “embaixadores” eram foliões que se diziam emissários do reino da Zuzulândia, e tinham como missão carnavalesca reclamar do governo brasileiro uma indenização pelos africanos que haviam sido injustamente castigados por conta da revolta dos malês (movimento planejado por africanos muçulmanos em 1835). Os festeiros “exigiam” milhares de jardas de algodão riscado.
Para garantir o pagamento devido, o clube pretendia provar, durante o desfile de Momo, que o “papelório não é privilégio desta terra de palmeiras” e apresentar um arquivo africano com todos os documentos relativos à missão que cabia aos “embaixadores” do reino da Zuzulândia. A brincadeira consistia em tornar risível uma revolta que foi trágica – cerca de setenta pessoas morreram no confronto com a polícia e mais de quinhentas foram punidas.
O desfile dos “embaixadores” traria dois feiticeiros à frente. Eles teriam a missão de prevenir os foliões contra o micróbio da febre amarela, sendo seguidos por uma banda de música vestida “à moda abissínia”.
Decorridos sessenta e dois anos, a façanha dos malês, os castigos, a febre amarela e o poder de cura dos feiticeiros demonstraram ser bons motes para contagiar a “gente de cor” – como se dizia na época – que seguiu o clube pela principal avenida da cidade durante todo o cortejo carnavalesco.
Um dos fundadores da Embaixada Africana foi Marcos Carpinteiro, axogum (encarregado do sacrifício dos animais) em um candomblé de Salvador. É interessante considerar que, em 1897, aqueles “embaixadores” estavam construindo e exibindo uma memória acerca do passado escravo, marcado por revolta e repressão. Longe do exotismo que se costuma atribuir à “cultura baiana”, há nas festas um campo fértil de análise de contextos históricos específicos.
Wlamyra R. de Albuquerque é professora da Universidade Estadual de Feira de Santana (BA) e autora juntamente com Walter Fraga Filho de Uma História do Negro no Brasil. Brasília: Fundação Palmares; Salvador: CEAO, 2006.
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