domingo, 19 de abril de 2009

Preguiçoso quem, cara pálida?


Pagãos, indolentes e pouco afeitos ao trabalho: era assim que os colonizadores viam os índios. Séculos depois, alguns preconceitos permanecem
Luís Fernando Pereira

O padre Antônio Vieira (1608-1697) ressaltava nos nativos brasileiros a tendência à ociosidade, não sendo o trabalho cotidiano e voluntário parte das suas vidas. Os colonizadores tentavam compreender o indígena usando como parâmetros a cultura e a visão de mundo difundidas na Europa, como se estas fossem um padrão universal. Ao contrário do que pensavam os europeus, religião, direito, poder, propriedade, cultura e trabalho não são temas universais, encontrados aqui e em outras partes.

A indolência dos indígenas brasileiros se revelou um poderoso estereótipo – ainda hoje muito difundido –, gerado por um absoluto desconhecimento do modo de vida dos nativos. Uma das origens do mito do índio preguiçoso reside na impressão errada que os europeus tinham da vida desses povos no Novo Mundo, associada à imagem do paraíso bíblico perdido. Acreditava-se que, habitando florestas fartas, que lhes ofereciam ao alcance das mãos os mais deliciosos frutos, os índios teriam que fazer muito pouco esforço em seu cotidiano.

No século XVIII, os povos indígenas passaram a ser vistos como representantes de uma era primitiva da humanidade e tornaram-se objeto de estudo para a observação de leis evolucionistas. Na época, o passado era cada vez mais associado a um estado de preguiça intelectual e indefinição entre coisas e homens – entre natureza e cultura. Já o futuro, no mundo ocidental, representaria o desenvolvimento e a evolução do trabalho e das ciências, o que afastaria os homens das antigas superstições. Aprisionados em um tempo longínquo e primitivo, os índios fariam parte desse passado habitado por homens preguiçosos e atrasados.

Este raciocínio persiste ainda hoje na sociedade brasileira, em argumentações que defendem a exploração de recursos em terras indígenas. Um exemplo recente é a contenda envolvendo os índios autodenominados tupiniquins e a fábrica de celulose Aracruz, no Espírito Santo, onde o aparente “imobilismo” de uma minoria indígena vem sendo criticado por se contrapor à necessidade inevitável de progresso da maior parte da sociedade.


De modo geral, as sociedades indígenas se organizam para garantir uma qualidade satisfatória de vida à maior parte do grupo. A relação com parentes e afins é central e está estreitamente vinculada às atividades econômicas e aos grupos de trabalho. Através dessas relações são fixados meios de troca, reciprocidade e obrigações.

Nas sociedades indígenas existem atividades específicas para homens e mulheres, outras feitas pelos casais e outras restritas a determinadas idades. As técnicas para a produção são compartilhadas e os frutos do trabalho são também distribuídos para aqueles que estão dentro dos círculos de relações. Por meio do trabalho, os membros do grupo se juntam e constroem relações. Ao contrário do Ocidente, onde a máxima reza que o trabalho deve ser deixado afastado do mundo familiar, entre os ameríndios o trabalho constitui esta vida familiar.

O choque dos diferentes sistemas de produção – entre brancos e índios – se torna mais evidente nas tentativas de estabelecimento da escravidão indígena no Brasil. Apesar do curto período legal (entre 1500 a 1570), persistiram formas de coerção de trabalho indígena, tanto nos engenhos de açúcar no Nordeste como na Amazônia, onde a escravatura africana não teve penetração. A preocupação de tornar os índios produtivos, de acordo com padrões europeus, sempre conduziu os esforços de contato, tanto na visão da distante metrópole quanto na dos colonos.

O Diretório dos Índios de 1755 (legislação criada pelo rei português D. José I) estipulava o trabalho nos moldes ocidentais, a imposição da língua portuguesa e a indução ao amor pela propriedade como uma forma de tornar os indígenas súditos verdadeiros da Coroa. Mesmo com a Independência (1822) e a República (1889), a mentalidade muda lentamente: a princípio ignorados no Império, os índios brasileiros só começam a receber alguma atenção do Estado depois de 1908, quando o Brasil é denunciado em Viena por massacrar índios, no XVI Congresso dos Americanistas. Isto levou à criação, em 1910, do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais, órgão do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. Os esforços do governo visavam transformá-los em “reais” trabalhadores, por meio de um processo de integração gradativa à sociedade nacional garantido inicialmente pela proteção às terras, como era defendido pelos positivistas desde 1894. O Código Civil de 1916 atestava a “incapacidade relativa” dos “silvícolas”, que estariam na mesma situação legal dos “pródigos” e das crianças.

A necessidade de transfigurar o indígena em branco e forçá-lo a integrar-se à nossa sociedade é hoje um discurso totalmente ultrapassado. Agora se sabe que há no mundo uma imensa diversidade de formas de produção, trabalho, organização social e constituição do saber – todas legítimas. Esta percepção abriu novas perspectivas para as políticas indigenistas. A transfiguração em branco não é destino inescapável.

A adaptação à interação com a sociedade não-indígena deve ser guiada pelas próprias culturas e necessidades dos povos e seus indivíduos. Hoje, várias populações adicionaram ao seu repertório de conhecimentos técnicas e instrumentos, como o uso de filmadoras, automóveis e a própria língua portuguesa, de acordo com padrões próprios. Também passaram a exercer outras atividades, como as de professores, microscopistas e pesquisadores.

O olhar sobre outras maneiras de encarar o mundo nos impele a deixarmos de considerar o Ocidente como padrão e referência para toda a humanidade. E aí reside o desafio: considerar nosso saber como mais um entre outros.


Luís Fernando Pereira é jornalista, historiador e mestrando em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. É membro da Comissão Pró-Yanomami e associado ao Núcleo de História Indígena e do Indigenismo da USP.

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