Em Macunaíma, Mário de Andrade questiona a idéia de preguiça como fraqueza e valoriza o ócio criativo do brasileiro, que considerava libertário
Celio Turino
“Ai! que preguiça!...”. Foram estas as primeiras palavras de Macunaíma, “herói de nossa gente”, imortalizadas por Mário de Andrade. Nesta obra, o autor se assumiu na função de poeta épico e reuniu minuciosamente as fantasias e as histórias que compõem o imaginário do povo brasileiro, assim como Homero percebeu nas batalhas troianas e nas aventuras de Ulisses a alma do povo grego.
Em Macunaíma, obra definida por Mário de Andrade como uma rapsódia brasileira, a identidade dos brasileiros vai se revelando ao compasso da narrativa, na descrição de “causos” e personagens populares, na “desgeografização” de territórios e na “destemporalização” de histórias.
“Macunaíma, herói de nossa gente, era preto retinto e filho do medo da noite”. Nascido tapanhuma, índio das margens do Uraricoera, essa tribo inventada para designar os negros vistos pelos povos da terra. Em tupi, os povos de fora recebiam duas designações: tapuy-una-ô – gente preta – e tapuitinga – gente branca. Macunaíma era um tapuy-una-ô, um tapanhuma, e foi brilhantemente representado no cinema por Grande Otelo.
A história nos apresenta um herói sobre-humano, “nascido no fundo do mato virgem”, que tem na busca da muiraquitã perdida a construção de sua aventura. Entre inúmeros desafios, ele deveria ir a São Paulo para reconquistar seu talismã, que estava com o gigante capitalista Venceslau Pietro Pietra, ou o regatão da Amazônia, aquele que regateia, que transforma em mercadoria cada coisa ou pessoa que enconta, também conhecido como o gigante comedor de gente, o Piaimã da mitologia taulipangue.
A obra foi escrita em seis dias, com o autor deitado em uma rede, trocando idéias com crianças. Foi assim que ele descortinou o caráter de seu povo, pois a luta pela reconquista da muiraquitã revela a personalidade brasileira, o jeito gingado de buscar soluções, enfrentar os problemas, o ócio criativo. Em um prefácio preparado por Mário de Andrade e só recentemente publicado, o autor revela:
“O que me interessou por Macunaíma foi incontestavelmente a preocupação em que vivo de trabalhar e descobrir o mais que possa a entidade nacional dos brasileiros. Ora, depois de pelejar muito verifiquei uma coisa que me parece certa: o brasileiro não tem caráter. Pode ser que alguém já tenha falado isso antes de mim, porém a minha conclusão é uma novidade para mim porque tirada da minha experiência pessoal. E com a palavra caráter não determino apenas uma realidade moral não; em vez entendo a realidade psíquica permanente, se manifestando por tudo, nos costumes, na ação exterior, na língua, na História, na andadura tanto no bem como no mal. O brasileiro não tem caráter porque não possui nem civilização própria nem consciência tradicional.”
A lógica da história de Macunaíma é não ter lógica, uma contradição de si mesma, e a cada página vão sendo reveladas as cores do Brasil, o povo, a alma aventureira (que alguns anos depois foi analisada pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil), cheia de brincadeiras sem culpas (Macunaíma adorava brincar, principalmente com Ci, mãe do mato, mas não só com ela). E essa identidade procurada em Macunaíma nem era exatamente brasileira: “Sou americano, meu lugar é na América. A civilização européia decerto esculhamba a inteireza de nosso caráter”.
Após seis anos sem falar, Macunaíma proferiu sua primeira frase: “Ai! que preguiça!...” Em uma só frase ele uniu duas culturas, dois idiomas, formando uma onomatopéia e um pleonasmo. Ai, em tupi, significa um comportamento e também um animal: o bicho preguiça, o mamífero de movimentos extremamente lentos que tanto surpreendeu os primeiros europeus.
A onomatopéia “Ai!” também lembra o som natural que fazemos ao despertar, estirando músculos e membros de modo preguiçoso, preparando-os para mais um dia. Quando falamos ou lemos “Ai”, pensamos em preguiça; repetindo as mesmas palavras em idiomas distintos, cria-se um pleonasmo que confere mais vigor e clareza à expressão.
Monteiro Lobato também tratou do tema, mas, neste caso, desdenhando Jeca Tatu, o caipira indolente, que “de qualquer jeito se vive”, atormentado por bichos-do-pé, devorado por vermes. Anos depois, o próprio Lobato reviu sua opinião, mas esses registros literários, em forma de sátira ou de condenação, expressam uma opinião corrente, um imaginário social presente até os dias de hoje. De um lado, a preguiça como fraqueza da alma, fonte de males; de outro, a preguiça transformadora, o ócio criativo do brasileiro.
Esse imaginário começou a ser construído através das narrativas do início da dominação portuguesa no Brasil. Segundo alguns relatos, os colonizadores encontraram por aqui uma sociedade de recusa do trabalho, que provocava um misto de admiração e escândalo pela facilidade com que obtinha o seu sustento e a nudez desavergonhada de índios preguiçosos e saudáveis, e robustos, e felizes.... Talvez por isso os colonizadores tenham se dedicado com tanto afinco à evangelização do gentio: caçando-os, escravizando-os, livrando-os do reino do pecado, oferecendo-lhes o mundo do trabalho.
Com o tempo, a imagem negativa da preguiça se transferiu do indígena para o negro, principalmente após a abolição da escravatura. Pouco importava se o trabalho escravo havia sustentado a economia da Colônia e do Império, pois os bandos de negros sem trabalho, expulsos das fazendas de café, vagando pelas estradas, habitando os bairros pobres dos extremos das cidades, vivendo de biscates, inventando a capoeira, e a feijoada, e o samba, provocavam medo; eram associados à vagabundagem e ao perigo.
No início do século XX, São Paulo passou por uma contínua explosão demográfica, tendo aumentado sua população em 270% no curto período de dez anos, entre 1890 (65 mil habitantes) e 1900 (240 mil habitantes). Nos vinte anos seguintes, a população mais que dobrou (580 mil habitantes). Era gente nova chegando todos os dias, principalmente imigrantes, que compunham mais da metade da população de São Paulo e que se somariam à gente do interior, caipiras e ex-escravos. Hoje o paulistano médio associa criminalidade e vagabundagem à onda migratória, aos nordestinos e negros, que vieram de algum lugar, mas, certamente, “de fora” de São Paulo (pelo menos o pensamento médio gostaria que assim fosse).
Tudo em pouco tempo. Cinqüenta anos antes, os proletários brancos nem viviam neste continente. Quando aqui chegaram (depois de uma travessia de mais de um mês no mar, em absoluto desconforto), foram primeiro para as fazendas de café; percebendo, porém, que não valia a pena se esforçar em latifúndios ainda maiores que os da velha Europa, deixaram a vida no interior e ganharam a cidade. A expressão “Hoje é dia de branco!”, que se refere aos dias de trabalho, é resultante da construção desta auto-imagem de trabalhadores dedicados.
Com o tempo, ocorreu uma aproximação entre o negro ex-escravo, os caipiras do interior e o imigrante pobre, aqueles que não conseguiram realizar o seu “dia de branco”. Esta aproximação foi facilitada pelas condições sociais e pela própria configuração geográfica. Da ajuda recíproca na adversidade ao encontro nas festas, essa gente se entrelaçou no samba e no futebol jogado na várzea dos rios (origem de times como Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Portuguesa). Observando esse encontro de “preguiçosos” estava Mário de Andrade, nascido e criado na “barra funda” do Rio Tietê.
A epopéia de Macunaíma se insere num momento em que São Paulo estava construindo a imagem de “locomotiva do Brasil”, cidade que exalta o trabalho em hino (“São Paulo que amanhece trabalhando...”). A narrativa de Mário de Andrade envolve este embate entre preguiça e trabalho, alienação e emancipação, e nela o autor ressalta um ponto de vista diferente da visão criminalizadora da preguiça – que condena o ócio como desvio do espírito e até mesmo o lazer um pouco mais livre, aquele que sai do controle –, que estava inserida no contexto higienista da época.
Para Mário de Andrade/Macunaíma, a preguiça foi o símbolo da mais perfeita consciência de movimento e sabedoria, e por isso o escolheu para petrificar a cidade, transformando São Paulo em totem de um bicho preguiça.
Cabe destacar que a idéia de preguiça em Mário de Andrade é anterior ao livro Macunaíma, e foi sedimentada em um artigo publicado em 3 de setembro de 1918 no jornal A Gazeta. Podemos perceber que vários conceitos já estavam perfeitamente elaborados nesse artigo, intitulado “A Divina Preguiça”.
Ainda jovem, Mário de Andrade percebeu a preguiça em seu outro significado. “A Divina Preguiça” apontou a necessidade de rever conceitos e processos acerca do desencadeamento da civilização diante do impacto da guerra em um processo dantesco de matança e barbárie. Assim como ele, outros autores escreveram a respeito de um novo significado para a preguiça, como o manifesto do genro de Karl Marx, Paul Lafargue, em O Direito à Preguiça, e O Elogio ao Ócio, de Bertrand Russell.
Em “A Divina Preguiça”, Mário de Andrade deixou claro que a humanidade nem sempre teve a mesma opinião sobre o assunto, e demonstrou que o seu significado mudou de acordo com o tempo, as necessidades e os valores decorrentes de cada momento histórico. Neste artigo, vai se consolidando a convicção da importância de travar um embate com essa noção moralizadora e controladora do tempo (que deveria ser) livre das pessoas. O ócio é apresentado em seu contrário, como um elemento libertário e de recusa da dominação em que o riso, a brincadeira e o lazer são entendidos como fundamentais para a emancipação humana. Seu artigo contesta outro, de um famoso articulista e acadêmico brasileiro, Austregésilo de Athaíde, que se refere à preguiça como sendo uma patologia a ser combatida, curada.
Mário de Andrade escreveu Macunaíma dez anos depois, aprofundando conceitos e apresentando a preguiça como uma das matrizes do cárater nacional, uma preguiça criativa, gingada e inovadora.
Como constatou o sociólogo francês Roger Bastide, um dos fundadores da Universidade de São Paulo, “o sociólogo que quiser compreender o Brasil não raro precisa transformar-se em poeta”. Mário de Andrade fez o contrário; foi o poeta que se travestiu de sociólogo. E o fez com a maestria de um artista e mágico que, a partir do lúdico, produz efeitos emocionais e de análise; um mágico da interpretação do Brasil. “Não se pode encontrar um livro mais brasileiro que Macunaíma”, disse Bastide, identificando na obra “uma selvageria lírica atropelando com seu riso uma civilização de importação” e comparando-a a Gargântua, de François Rabelais, na construção de um herói popular com origem no folclore e que dá uma nova dimensão aos costumes, jeitos e falares do povo. E foi assim mesmo que Mário de Andrade procedeu, unindo campos geralmente separados, a magia e a razão.
As histórias que nosso herói Macunaíma descobriu, em sua original falta de índole, foram compondo um novo caráter de brasileiro e, quem sabe, o de sul-americano. Um cadinho de cada lugar, um pouquinho de cada pessoa, de cada tempo. Em sua aventura, o herói conheceu pessoas extraordinárias, mergulhando em um mundo de magia e mistérios. Sendo Macunaíma um herói preguiçoso, no fim do seu tempo de aventuras virou estrela, pois no céu reencontraria a felicidade e uma vida de lazer. E Ci, sua amada.
Com o olhar de poeta, Mário de Andrade nos demonstrou a ganância insaciável de Piaimã e como ele tira o sangue, o lazer e os sonhos de nossa gente. Macunaíma, com a astúcia da preguiça, venceu seus inimigos, enfrentou Piaimã e também o derrotou; uniu-se aos seus irmãos, atravessou o Brasil, lançou mão de armas que aprendera a usar na infância. Brincou e teve coragem. Não se deixou enganar e seguiu em frente até voltar a ser estrela, uma estrela de brilho inútil que nos mostrou que o ócio não é somente não fazer nada; é um meio de emancipação e de livre pensamento.
Macunaíma e seus amigos empregaram o verbo fazer em todos os momentos em que foi necessário tomar uma decisão: “Sim, Curupira fez”; “Sim, cotia fez”; “Essa eu caço! Ele fez”; “Ai! Maanape fez”; “Ui! Que o herói fez”; “Sai azar! O rapaz fez”; “Arre que posso te comer, fez”. São construções freqüentes na rapsódia de Macunaíma, o herói preguiçoso, que não fugiu à luta e fez. Em contrapartida, nós, os práticos e utilitários, vivemos adiando nossa felicidade. Conjugamos o verbo no gerúndio, em um tempo que nunca termina. Vamos “fazendo” e não concluímos. Vamos “transferindo” e não alcançamos. Vamos “governando” e não resolvemos. Mas até os nossos sonhos vão se transformando em coisas, em mercadoria. E o lucro vai crescendo, acumulando-se nas mãos de poucos.
Se não quisermos o destino de ser alimento para o gigante comedor de gente, melhor romper o cerco e conquistar algum tempo para nós mesmos. E começar bem cedo, encontrando tempo para um lazer diferente que nos dê coragem para enfrentar Piaimã. A fenda, a fresta, é bem pequena, e se quisermos aproveitá-la, terá que ser em nosso tempo livre, no tempo que pode sair do controle. Mas antes de começar, melhor estirar os músculos, expandir a mente e, bem devagar, alongar os braços e dizer:
- Ai! Que preguiça!...
Celio Turino é mestre em História pela Unicamp e especialista em administração cultural pela PUC-SP. É secretário de Programas e Projetos do Ministério da Cultura. Autor de Na trilha de Macunaíma – ócio e trabalho na cidade. Ed. Senac.
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
Um comentário:
Que maravilhosa postagem exaltando Mario de Andrade.
Macunaíma é um marco da nossa literatura.
Parabéns, Eduardo!
Grande abraço
Mirse
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