O que está por trás dos conflitos armados entre posseiros e capangas de fazendeiros, que há mais de 30 anos derramam sangue na região do Araguaia?
Regina Beatriz Guimarães Neto
De acordo com as testemunhas que guardam na memória a emboscada, havia no local mais de cem posseiros, provenientes dos assentamentos agrários do município de Confresa, no Araguaia, Mato Grosso – próximo à divisa com o estado do Pará. A armadilha fora planejada numa manhã de agosto – corria, então, o ano de 1989. Um posseiro serviria como “isca”, atraindo os pistoleiros com o barulho de sua motoserra ao pé de uma árvore. Ao avistá-lo, homens fortemente armados, que viajavam dentro de uma caminhonete, aproximaram-se devagar. Antes que pudessem abordar o posseiro, uma chuva de chumbo rasgou o ar. O tiroteio durou mais de dez minutos, causando a morte de dois pistoleiros.
A emboscada, assim como diversas outras ações de tocaia e confrontos armados, tinha o objetivo de eliminar os pistoleiros que, por vários anos, mataram, torturaram e expulsaram famílias da região. O feito seria contado pelos quatro cantos do Araguaia. Apesar do grande número de pessoas envolvidas, não foram encontrados culpados: durante as investigações policiais, reinaria a lei do silêncio. Ninguém soube dizer o nome dos que participaram, ninguém esteve presente nos locais dos crimes.
Acostumados a viver no silêncio da mata, os posseiros costumavam caminhar e atuar em grupo, procurando não se deixar surpreender pelos seus inimigos, pegando-os desprevenidos. “Ajuntava a parceria de uma área com a outra área e, se caso o conflito era aqui, no PA – projeto de assentamento – Canta Galo, às vezes vinha a turma do PA Jacaré Valente, lá também estava em conflito, e outras áreas também vinham para ajudar”, relata um senhor, alheio a lei do silêncio, que admite ter presenciado os confrontos.
Os acontecimentos e os nomes das pessoas que estiveram envolvidas diretamente nas emboscadas são, ainda hoje, motivo de muito sigilo e segredos. Bem guardada, a história dos confrontos faz parte da memória coletiva das vilas de São José do Fontoura, Três Flechas, Pé de Caju, Jacaré Valente, Novo Planalto, Canta Galo, Belo Horizonte, Lumiar, e outras. São as vilas dos assentamentos “arrancados na boca da carabina”, como diz um lavrador. O grande número de conflitos com assassinatos levou o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) a concluir, em seus relatórios sobre os assentamentos do município de Confresa, que essas áreas merecem ter prioridade no processo de desapropriação e regularização fundiária, no intuito de se evitarem novos banhos de sangue.
Confresa é um dos municípios brasileiros que possui, hoje, uma das mais altas concentrações de comunidades oriundas de projetos de assentamentos de reforma agrária regularizados pelo INCRA, de acordo com o plano nacional de Reforma Agrária (PNRA), que orientou o Plano Regional de Reforma Agrária (PRRA/Mato Grosso), em meados da década de 1980.
As histórias dos confrontos que liberaram terras para “os mais pobres”, como defendem grupos e pessoas comprometidas com a questão política da luta pela terra, circularam por todo o país. Homens e mulheres do Brasil inteiro foram para esta parte do Araguaia. Por isso, Confresa, sede do município, foi apontada no último censo nacional como uma das cidades que mais cresceu.
Ela nasceu como resultado de inúmeras ocupações. Interessados nas terras devolutas do Mato Grosso, nos territórios indígenas e nas áreas ocupadas por posseiros – aqueles que não tinham documentos escritos das terras em que viviam há anos – fazendeiros e empresários se apropriavam cada vez mais de grandes extensões de terra neste estado e na Amazônia, nas décadas de 1970, 1980 e 1990. Dividiam e retalhavam povoados, ranchos e plantações, impondo-se pela força das armas e adquirindo terras por meios, geralmente, fraudulentos.
Em geral, colocavam ali algum gado, apossavam-se da terra, mantendo-a como reserva de valor, e recebiam dinheiro do governo, sobretudo utilizando os incentivos repassados pela SUDAM (Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia). Tudo isto teve um grande custo social para as camadas pobres, que ficaram sem terra, sem lei e sem reforma agrária. Para garantir o controle das áreas, os donos das grandes fazendas armaram-se com pistoleiros, tendo como aliados a força policial das pequenas cidades.
Naqueles anos sangrentos – e ainda hoje - reinava um clima de medo no interior do país. Muitos posseiros, além de diversos outros tipos de trabalhadores, que migraram em busca do sonho da terra, foram expulsos, torturados ou assassinados. Um posseiro entrevistado relata como era feita a justiça dos matadores: “Os pistoleiros não podiam ver um homem na mata com as changa – o saco/mochila – nas costas, que passavam bala. Morria ali mesmo e ali ficava.” Foram denunciadas ainda práticas cruéis, como cortar as orelhas dos posseiros e entregá-las, mediante uma recompensa, aos patrões.
Diante de tais ameaças, posseiros da região do Araguaia, no Mato Grosso, e trabalhadores sem terra de todo o Brasil resolveram se unir para enfrentar os inimigos. Exigiriam, custe o que custasse, o direito a terra, pois já não tinham para onde ir – retornar era impossível. Os posseiros montaram redes de informações, se armaram e elaboraram inúmeras estratégias, desenvolvendo armadilhas e táticas. Para surpreender os inimigos, os homens se esconderiam na mata, deixando mulheres e crianças nos ranchos, a espera dos pistoleiros ou da polícia.
O caso de Confresa e das áreas de assentamento em seu entorno, surgidas durante as décadas de 1980, 1990 e primeiros anos do século XXI, é exemplar. O núcleo urbano do município é fruto de um projeto de colonização, aprovado pelo Incra, em 1978, situado ao longo da rodovia BR-158, área gerida pelo governo federal, de acordo com o PIN (Plano Integração Nacional, decreto-lei de 1970), criado no governo do General Emílio Garrastazu Médici. Segundo as determinações do PIN, ampliadas pelo decreto-lei de 1971, as áreas situadas às margens das rodovias federais, na Amazônia Legal, numa extensão de 100 km de cada lado do seu eixo, passavam a ser consideradas “indispensáveis à segurança e ao desenvolvimento nacional”. Competia, portanto, ao governo federal – por intermédio do INCRA – decidir o destino das terras da região. A federalização dessas áreas abriu espaço para grandes investimentos do capital nacional e estrangeiro na Amazônia, fato que determinou que os interesses do governo federal prevalecessem sobre os locais.
Passando para as mãos da iniciativa privada grandes áreas de terra, o governo interferia direta e indiretamente nos movimentos sociais no campo. Essa foi a tônica dos projetos de colonização implantados após a década de 1970, estabelecidos ao longo das rodovias federais, que se tornaram uma estratégia importante dos governos militares na administração da “questão agrária” no Brasil. Houve um enorme estímulo à criação de empresas de colonização, que não apenas se beneficiaram da aquisição de vastas áreas (aproximadamente 200.000 ha.), mas também dos incentivos fiscais, entre outros privilégios.
Os projetos de colonização que eram enviados para serem aprovados deveriam apresentar a planta da área planejada como núcleo urbano, dotado de uma infra-estrutura básica, com a divisão dos lotes e ruas, prevendo especialmente a abertura de estradas, a construção de armazéns, escolas e postos de saúde. Em praticamente todos os projetos implantados na região amazônica, porém, a infra-estrutura básica pouco saiu do papel, a não ser pela abertura de algumas estradas de acesso e a demarcação dos lotes, colocados à venda.
A cidade de Confresa tem seu nome retirado da sigla da empresa colonizadora CONFRESA, com base nas grandes fazendas agropecuárias Frenova e Sapeva. O espaço demarcado pela empresa para servir de base ao projeto de colonização possuía uma grande diversidade étnica e cultural (a aldeia do povo indígena Tapirapé encontra-se a poucos quilômetros da cidade). Fazia parte de uma grande área de posseiros ali já estabelecidos, desde as primeiras décadas do século XX. A empresa, que, até hoje, cobra dos órgãos públicos, na justiça, o valor dos lotes ocupados pelos moradores da cidade, viu as terras, de que afirmava ser proprietária, acabarem conquistadas e apropriadas por todos aqueles que se denominaram posseiros. Os ocupantes eram trabalhadores pobres sem terra e suas extensas famílias, que chegavam a todo o momento naquela parte de Mato Grosso.
O movimento migratório ocorrido no final dos anos 70 e por toda a década de 80, avançando pelos anos 90 e primeiros anos do século XXI, foi intenso em Mato Grosso. Do sul do Brasil, pequenos agricultores seguiam para as áreas de colonização, mas diversas outras categorias de trabalhadores, não só do campo, também vinham de estados vizinhos, como Pará, Tocantins, Goiás e dos estados do Nordeste, seguindo os caminhos abertos pelas rodovias federais, especialmente a BR 158, que corta todo o vale do Araguaia, e mesmo a Belém-Brasília. Deve-se considerar, no entanto, para compreender a persistência da ocupação empreendida pelos posseiros, as iniciativas de luta e combate dos trabalhadores que não possuem terra (para não confundir com o movimento organizado dos “sem terra”) no território do Araguaia, assim como outros confrontos ocorridos em diversas áreas vizinhas.
Visitar a história dos movimentos de migração nos povoados e cidades do Araguaia nos possibilita compreender um pouco mais a respeito de como se deu, e se dá, a luta pela terra no Brasil, onde quase a metade do território encontra-se nas mãos de pouco mais de um por cento de proprietários. Os conflitos, infelizmente, não estão perto de um fim, e a história contemporânea do Brasil se faz nesse movimento.
Regina Beatriz Guimarães Neto é professora de história da Universidade Federal de Mato Grosso e autora do livro A lenda do ouro verde. Política de Colonização no Brasil contemporâneo. Cuiabá: Ed. UNICEN, 2002.
Pistolas e pesquisas, ou dos perigos de fazer história.
Medos, silêncios, ameaças: nas pesquisas de campo sobre as novas cidades amazônicas, com suas áreas de conflitos e as condições de trabalho análogo ao de escravo, apresentam-se frequentemente situações de risco. Os testemunhos ou relatos de memória, por exemplo, são em muitos casos marcados pelas interdições. Teme-se falar sobre os conflitos armados que redundaram em mortes ou torturas, testemunhados ou relatados por familiares e conhecidos.
As nossas próprias experiências de pesquisadores, em contato com lavradores, trabalhadores diversos e lideranças sindicais, são às vezes dramáticas. Uma dessas situações me ocorreu quando acertava uma entrevista com a presidente do sindicato dos trabalhadores rurais de Confresa, Aparecida Barbosa da Silva, ameaçada de morte após denunciar a existência de trabalho escravo, praticado por proprietários rurais e agro-industriais. Enquanto conversávamos, chegaram quatro homens armados (estávamos apenas nós duas na sorveteria de seu filho, por volta das 21:00 horas) e ali permaneceram por quase uma hora, nos intimidando de maneira velada. Felizmente, chegaram outras pessoas e foi possível então chamar a polícia. Mas os quatro já haviam desaparecido.
O arquivo de quem não tem voz
O arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia guarda documentos preciosos sobre a luta pela terra na região e a atuação do bispo católico Pedro Casaldáliga e de outros (as) religiosos (as) na defesa dos direitos dos posseiros e de diversos trabalhadores que não possuíam terra, e na denúncia da exploração do trabalho em regime análogo à escravidão. O jornal Alvorada, criado desde o início da década de 1970, é o periódico da Prelazia (www.prelaziasaofelixdoaraguaia.org.br).
Saiba Mais - Bibliografia:
Alvorada, periódico da Prelazia de São Félix do Araguaia (www. prelaziasaofelixdoaraguaia.org.br).
CANUTO, Antônio. Escravos do progresso. In: Conflitos no campo Brasil. Publicação da CPT (Comissão Pastoral da Terra). Vol. 2006, p. 136-142.
ESTERCI, Neide. O conflito no Araguaia. Peões e posseiros contra a grande empresa. Petrópolis, Vozes, 1987.
FERREIRA Eudson de Castro, FERNÁNDEZ, Antônio João Castrilon; SILVA, Evande Praxedes da. A reconstrução dos assentamentos rurais em Mato Grosso. In: MEDEIROS, Leonilde Servolo de e LEITE, Sérgio (Orgs). A formação dos assentamentos rurais no Brasil: processos sociais e políticas públicas. Porto Alegre/Rio de Janeiro: UFRGS/CPDA, 1999, p.197-231.
FRANÇA, Marcos Ramos. Reconstrução da história da ocupação do PA Canta Galo (1987-1991). UNEMAT- Projeto Parceladas - História, Núcleo Pedagógico de Confresa, 2007.
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
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