domingo, 19 de abril de 2009

Ciganos - Meirinhos aristocráticos


Foi como oficiais de justiça que os ciganos calom eliminaram o preconceito contra o grupo e garantiram seu lugar na sociedade carioca
Mirian Alves de Souza

Durante praticamente todo o século XIX e parte do XX, ciganos calom do bairro do Catumbi ocuparam posições bem definidas no Judiciário da cidade do Rio de Janeiro. Observando as árvores genealógicas do grupo, surpreende o fato de quase todos os seus membros ocuparem a função de oficial de justiça, desde a época em que ele era conhecido como meirinho. Pode-se dizer que, entre os calom, o ofício se transformou mesmo em objeto de transmissão hereditária: podem ser identificadas linhas de descendência nas quais toda uma geração de filhos e netos trabalha no métier.

Os calom do Catumbi traçam sua descendência a partir das famílias que chegaram ao Brasil deportadas de Portugal, no fim do século XVIII, e, em menor número, daquelas que vieram acompanhando a comitiva de D. João VI, em 1808. Foi estabelecido um arranjo familiar marcado por intensas relações de proximidade e circunscrito ao bairro do Catumbi, onde estão desde a primeira metade do século XIX.

Sua participação institucional no Judiciário costuma ser assinalada como um importante referencial de sedentarização, pois foi em razão das atividades exercidas na Justiça carioca que o grupo se torna, por assim dizer, parte fixa da sociedade majoritária. Mas atividades exercidas no mercado de escravos africanos também contribuíram para que o grupo fosse gradativamente abandonando o nomadismo, consagrado como referência para a identidade do grupo. De fato, muitos ciganos tiveram êxito nesse ramo, a ponto de ocuparem mais do que posições intermediárias na hierarquia traficante. Membros de famílias incluídas em decretos de banimento conseguiram até mesmo figurar nas listagens das fortunas cariocas e de agraciados com condecorações. José Rabello e José Luiz da Mota tiveram seus nomes registrados na relação dos mais prósperos traficantes de escravos que atuaram entre 1811 e 1830. Enriqueceram e chegaram a despontar com uma visibilidade considerável na vida urbana carioca. A ponto de alguns membros desse grupo bem- sucedido participarem de festividades reais, como o aniversário do príncipe regente D. João, em 1810, e o casamento da filha mais velha de D. João VI.

Gradativamente, a tradicional imagem de paria passava por mudanças substantivas no Rio de Janeiro. Mas a inserção social e econômica dos ciganos na cidade não dissolveu o estigma que os acompanha. Ainda eram conhecidos como ladrões e sedutores de escravos, por exemplo.


A trajetória dos calom do Catumbi se entrelaça a ofícios que, apesar de quase inteiramente desprezados, são fundamentais para a engrenagem de uma cidade escravocrata e indispensáveis ao funcionamento da Justiça. Durante gerações, os ciganos foram quase todos oficiais de justiça, aparecendo vinculados ao Judiciário desde a criação do Desembargo do Paço no Rio de Janeiro. Mas, diferentemente do que aconteceu no mercado de cativos, onde alguns enriqueceram e galgaram posições, no Judiciário os calom estão diretamente relacionados a determinados ofícios: meirinhos, porteiros de auditório, taquígrafos, auxiliares-datilógrafos, oficiais de justiça, comissários de menores, comissários de vigilância. Outros são ainda escreventes, datilógrafos, ficharistas. Mas são, sobretudo, oficiais de justiça. Este ofício parece ter sido um verdadeiro negócio de ocasião, e a ocasião – a oportunidade para ocupá-lo – foi a transferência da metrópole para a Colônia, entre outras coisas.

Ao que parece, os calom souberam aproveitar a oportunidade de trabalho surgida, a despeito de toda a rejeição que lhes era dirigida. Entre os grupos definidos como culturalmente estrangeiros, e em relação aos quais são impostas várias restrições à interação social, é comum o desprezo pelos estereótipos imputados a certos ofícios, pois o mais importante é encontrar e ocupar uma posição na sociedade em que estão.

Quando informantes ou a literatura consultada descrevem o meirinho do tempo do rei ou o oficial de justiça da década de 1940, é comum realçarem signos exteriores de uma identidade profissional compartilhada. De maneira geral, aqueles que ocupavam posições no Judiciário não dispensavam certos apetrechos de distinção. Os meirinhos usavam casaca, chapéu armado e bengala (e até um aristocrático espadim). Avançando no tempo, os oficiais de justiça já não mais se vestiam como à época dos meirinhos. Os ciganos, no entanto, continuaram cultivando certas formas de distinção. Os calom incorporaram a casaca e a bengala ao seu traje profissional, de modo que pareciam formar uma curiosa confraria dentro de seu grupo profissional.

A descrição que nos é oferecida por antigos oficiais de justiça e outros membros do Judiciário está em consonância com o registro da crônica e do romance urbanos, como em Memórias de um Sargento de Milícias, que caracteriza os meirinhos e oficiais de justiça não só por seu vestuário, mas também por uma forma bastante específica de atuação:


Os meirinhos desse belo tempo (...) não se confundiam com ninguém; eram originais, eram tipos: nos seus semblantes transluzia um certo ar de majestade forense, seus olhares calculados e sagazes significavam chicana. Trajavam sisuda casaca preta, calção e meias da mesma cor, sapato afivelado, ao lado esquerdo aristocrático espadim, e na ilharga direita penduravam um círculo branco, cuja significação ignoramos, e coroavam tudo isto por um grave chapéu armado. Colocado sob a importância vantajosa destas condições, o meirinho usava e abusava de sua posição.

Pode-se dizer que, por meio de sinais indicativos de valor e formas de ação, identificam-se aqueles que exercem o métier. De todo modo, quando se sugere uma correspondência entre o relato de membros do Judiciário e a crônica, deve-se destacar que certo traje e rito podiam até caracterizar aqueles que ocupavam o ofício, mas foram os ciganos que os conservaram até quase a segunda metade do século XX.

A década de 1950 corresponde a um período no qual os calom já estão devidamente, e de forma expressiva, vinculados à atividade cujo recrutamento, até certa época, nos remete à tradição dos antigos ofícios artesanais. A imagem de uma corporação parece adequada para se pensar a forma de ingresso na carreira de oficial de justiça, porque, no interior de tal estrutura, era comum o pai assumir o papel de mestre e ensinar ao filho as artes do ofício. Assim se realizava a inserção profissional de ciganos no Judiciário: desde pequenos eram preparados para o ofício, a exemplo de Rafael Barroso da Costa Verani, que começou a trabalhar “extra-oficialmente” na condição de auxiliar de seu pai, o oficial de justiça Rafael Barroso da Costa Verani.

De modo geral, os depoimentos reunidos costumam apresentar os ciganos como oficiais de justiça bastante eficientes, pois “faziam o que tinha que ser feito, mesmo que a tarefa fosse antipática". Pode-se supor que realmente exerciam o oficio com exação; afinal, seu ingresso dependia da nomeação (ad hoc) dos juízes, aos quais estão diretamente subordinados. Quanto à boa aceitação do grupo na Justiça, costuma-se explicá-la pelo fato de os ciganos serem, por assim dizer, talhados para o ofício, ou seja, bem preparados para o exercício da função. Afinal, por volta dos catorze anos, o cigano era iniciado no oficio na condição de ajudante de seu pai, tio ou avô – acompanhava as diligências, ajudava na rotina dos cartórios.... Daí, quando adulto, tornava-se um candidato preferencial aos olhos do juiz, que vislumbrava nele a continuidade dos bons serviços prestados pelo pai.


Quando se instituem formas diferenciadas de ingresso, nas quais o poder de decisão dos juízes era menor, os ciganos criam mecanismos para continuarem a ser admitidos na função. Um bom exemplo disso são os cursos preparatórios oferecidos por Rafael Barroso da Costa Verani em sua casa. Ele preparava os calom para a prova de habilitação e, em razão disso, era conhecido como “professor”. Desde o começo do século XIX, a família Verani é bastante conhecida entre os oficiais de justiça. Em 1809, encontramos José Manoel Verani como porteiro do Fórum e Antonio Maria Verani como oficial praticante, mas também servindo de porteiro. Paulo Barroso da Costa Verani, cuja competência lingüística e o refinamento intelectual são sempre destacados por aqueles que o conheceram, foi escolhido para ser o primeiro orador da Associação dos Oficiais de Justiça do Estado da Guanabara (hoje AOJA), a entidade de classe mais antiga do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, fundada em 1956. A propósito, a Associação se constitui em resposta à declaração de um corregedor, que classifica os oficiais de justiça como “a praga do Tribunal de Justiça”, alegando que, na época, a classe era “dominada por ciganos”. Esta declaração resultou na mobilização da categoria em uma Associação, que tem na relação dos oficiais instituidores, como era de se esperar, muitos ciganos.

Apesar de declarações como essas, e que reforçam a posição do oficial de justiça na cadeia judiciária, evocar o reconhecimento de sua participação no quadro do Judiciário parece muito importante para os calom, possivelmente por ser essa uma maneira de destacar sua contribuição positiva para a história social da cidade, dissociando-se do conjunto de estigmas que lhes é tradicionalmente imputado ou, pelo menos, referindo-se positivamente a suas propriedades e capacidades concretas.

Evocar sua participação no Judiciário é uma forma de operar o que se pode chamar de “inversão do estigma”. De fato, a posição que os ciganos ocuparam historicamente os colocava ao lado dos mantenedores da ordem pública. Os calom se dedicaram, durante sucessivas gerações, a um ofício que tem fé pública, ou seja, que torna a sua palavra presumidamente verdadeira. Pode-se, sem muito esforço, imaginar a repercussão disso para um grupo constantemente posto sob suspeição.

Contudo, a vinculação dos ciganos ao Judiciário, motivo de surpresa e inquietação, merece que venhamos a observar-lhe o caráter de “trabalho de ocasião”, de uma posição cuja representação, do ponto de vista da hierarquia do Judiciário, é menor e bastante estigmatizada por seus magistrados e serventuários. Isto, no entanto, em nada diminui sua importância para os calom, já que, pelos ofícios que ocuparam, conseguiram conservar seu estilo de vida e garantir a seus membros uma posição bem definida na sociedade carioca.

Mirian Alves de Souza é mestre em Antropologia pela UFF e professora da SUESC e UCAM. Marco Antonio da Silva Mello é Doutor em Antropologia pela USP, professor da UFF e UFRJ e coordenador do LeMetro/UFRJ.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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