Em 1879, um chefe de polícia instituiu experiência inédita no Paraná: uma escola primária para os presos de Curitiba. A intenção era cuidar de sua “higiene moral”
Valter Martins
Imigrantes vindos de todo lado e o aumento da exploração da erva-mate provocaram muitas mudanças na Província do Paraná no final do século XIX. Sua capital, Curitiba, se modernizava: surgiam o hospital, um museu, a biblioteca pública, associações literárias, dois jornais, e começava a construção da ferrovia que ligaria a cidade ao porto de Paranaguá. Outras novidades eram o telefone, o telégrafo, bondes, iluminação a gás, o Passeio Público. A população crescia e também o número dos errantes e dos sem trabalho: tudo isso, associado ao hábito de muitos de circular armados, aumentava a insegurança dos habitantes.
Entre os largos da Matriz e do Mercado ficava a cadeia de Curitiba. Seu edifício tinha capacidade para 60 presos. Nas vizinhanças, o Beco do Inferno e a Rua Alegre davam o tom da vida mundana, em contraste com os atos piedosos na Igreja de Nossa Senhora da Luz.
Ao assumir a chefia de polícia da província em abril de 1879, o juiz de direito Luiz Barreto Correa de Menezes encontrou o que chamou de “péssimo regime”. Loucos, criminosos e presos por pequenos delitos dividiam as mesmas celas. Para ele, o sistema das prisões paranaenses era anacrônico, já condenado nos países civilizados: daquela forma, a cadeia era uma escola do crime. Ordenou, então, a separação dos presos. Em dezembro de 1880, após reformas no prédio, a cela no1 abrigava os processados e pronunciados; a no 2, os detidos e escravos; a no 3, os condenados às galés (presos agrilhoados condenados a trabalhos forçados) ; a no 4, os condenados à prisão simples ou com trabalho. Na cela 5 funcionava a escola de ensino primário; a no 6 era a prisão feminina; na cela 7 ficavam os militares infratores e a cela 8 era a solitária.
O chefe de polícia afirmava que cabia ao poder constituído lutar para regenerar os encarcerados. Um caminho era o trabalho, que chamou de “higiene moral do preso”. Desejava instalar na cadeia uma oficina para evitar a ociosidade e inspirar o amor ao trabalho. Outro caminho era a educação, para que os presos não vivessem na ignorância e tivessem chances de se reintegrar à sociedade.
A idéia de Menezes de criar na cadeia de Curitiba uma escola primária – inédita no Paraná, mas já realidade em outras províncias – foi adiante, e uma cela foi adaptada para sala de aula. O presidente da província na época definia como lamentável a situação da instrução pública, e afirmava que ela deveria ser difundida em todas as classes sociais. O analfabetismo era visto como causa de atraso moral e intelectual, sendo associado à criminalidade. Mesmo assim, não se cogitou estender às mulheres presas os benefícios da escola de primeiras letras.
Na cerimônia de inauguração (era o emblemático 7 de setembro de 1879), o delegado Euclides Francisco de Moura declarou que naquele dia rasgavam-se muitas páginas do medonho livro do crime. Que os alunos aproveitassem a oportunidade de esclarecer a razão porque a educação era o pão do espírito. Lembrou que abrir escolas era fechar cadeias, e entregou para uso didático exemplares da Gramática Portuguesa, da Lei de Deus e do Novo Testamento.
Instalada a escola, as aulas começaram: todos os dias, do meio-dia às 3 da tarde, menos domingos e dias santos. Após a entrada dos alunos, a porta da sala era fechada pelo carcereiro, e aberta somente no fim das lições. Estudava-se leitura, escrita e gramática por duas horas, e no restante do tempo, aritmética e doutrina cristã.
O primeiro professor, Pedro Antonio da Silva, cumpria pena por homicídio desde 1854. Sem preparo, fez o que pôde enquanto um professor habilitado não era nomeado. Dos 19 alunos, o mais jovem tinha 19 anos e o mais velho, 62, e vinham de diferentes lugares: oito paranaenses, um português, um alemão, um fluminense, três paulistas, dois gaúchos, um mineiro, um amazonense e um baiano. As penas deles eram pesadas, como a de Manoel Marques dos Santos, 25 anos, condenado à prisão perpétua por homicídio. A maioria dos presos estava atrás das grades por homicídio, mas havia também escravos fujões, praças do Exército ou pessoas detidas por bebedeira, desordem, gatunagem, defloramento, estupro, poligamia, demência.
Mesmo sendo veterano na cadeia, Pedro Antonio enfrentava problemas com seus alunos e pares. Às vezes, por uma ou outra razão, alguns presos davam um jeito de não assistir à aula. Houve também evasão escolar. Na madrugada de 25 de setembro de 1886, o aluno Horácio Cardoso fugiu, mas sabendo ler e escrever.
Foi na escola da cadeia que muitos homens tiveram contato com livros, penas e lápis. Para alguns deles, abria-se o mundo da leitura e da escrita, que podia aliviar o tédio da prisão e ser útil um dia, na liberdade. Com o mínimo necessário ao seu funcionamento (quadro-negro, giz, esponja, régua, ponteiro para o quadro, mesa com gaveta e cadeira para o professor, campainha e verbas irrisórias), a escola da cadeia de Curitiba sobreviveu até 1888. A escola podia ter muitos limites, mas certamente contribuiu para tornar alguns homens melhores e capazes de se reintegrar à sociedade.
Valter Martins é professor de História na Universidade Estadual do Centro- Oeste (UNICENTRO), Campus de Irati/PR.
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
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