quarta-feira, 29 de abril de 2009

Axé carioca


Misto de conquistador, curandeiro e pai-de-santo, o líder negro Juca Rosa criou em um ritual próprio, atraindo uma legião de seguidores no Rio de Janeiro do século XIX
Gabriela dos Reis Sampaio

José Sebastião da Rosa, mais conhecido como Juca Rosa, foi um dos mais importantes e afamados líderes religiosos negros que o Rio de Janeiro conheceu. Nascido em 1833, filho de mãe africana, trabalhou como alfaiate e cocheiro antes de se tornar o grande Pai Quibombo, como também era chamado. Na década de 1860, vivendo no centro da Corte, na rua Senhor dos Passos, quase esquina com a rua do Núncio, Rosa liderava uma misteriosa seita, que agregava diversos adeptos. Além dos negros, dos trabalhadores escravos, livres e libertos e dos capoeiras, figuravam também, entre seus seguidores, políticos, ricos comerciantes, membros das elites econômicas brancas e letradas. Graças ao prestígio que adquiriu, Rosa estabeleceu relações com pessoas importantes da sociedade e suas cerimônias reuniam membros das mais diferentes origens sociais, que se deslocavam até sua casa em busca de seus preciosos – e caros – conselhos e prodigiosas curas. Por caminhos muito particulares, Juca Rosa tornou-se figura notória na sociedade carioca do período.

Não se tratava de um mero feiticeiro ou rezador, apenas mais um entre tantos e tão variados praticantes de diferentes religiões e artes de cura que habitavam a Corte, concorrendo com os médicos científicos na disputa por pacientes. Afinal, no Rio de Janeiro do final do século XIX, assim como em todo o país, as mais diversas artes de cura conviviam lado a lado com a medicina oficial do Império. Embora proibidas por lei e arduamente combatidas por grupos de médicos e por setores da imprensa, as práticas ilegais de medicina estavam presentes com bastante força no cotidiano dos mais distintos setores sociais. Mas Juca Rosa, que concentrava as atividades de líder religioso e curandeiro, era um caso especial: seu nome tornou-se sinônimo de líder religioso afro-brasileiro, ou “feiticeiro negro”, como diziam as publicações da época, e associado a práticas supersticiosas de pessoas ignorantes.

Entretanto, uma denúncia anônima que o acusava de envolvimento sexual com várias mulheres, dirigida ao segundo delegado de polícia da Corte, interrompeu suas atividades, levando-o à prisão. Quando o julgamento de Rosa foi iniciado, em 5 de julho de 1871, ele já estava preso havia quase oito meses, sendo processado pelo crime de estelionato. Em seguida, passou a figurar nos periódicos tradicionais e nos pequenos jornais humorísticos, em publicações avulsas, e até mesmo em uma peça de teatro; virou notícia até em jornais de outras capitais, como Belém e Salvador. Todos eles enfatizavam o escândalo de seu envolvimento não apenas com prostitutas, costureiras, mulheres pobres e negras, mas também com senhoras brancas e casadas, provenientes de famílias influentes na vida política da Corte – uma de suas amantes seria, segundo especulações da imprensa, a esposa de um importante político, possivelmente o autor da denúncia. Tudo isso contribuía para a caracterização de Rosa como um monstro imoral e cruel. No entanto, as senhoras, que eram a maioria de seus seguidores, reconheciam o líder como um “homem de atrativos”, sempre bem vestido, usando correntes, anéis e outras jóias.


Os jornais estampavam notícias dizendo que Rosa cometia “práticas sacrílegas”, apelando ora para a religião, ora para “ridículas e estúpidas feitiçarias”; que teria “uma posição importante em um círculo de mulheres”, pobres vítimas, que o buscavam para “conservar fiel algum amante ou o próprio marido, ou fazê-los voltar a antigos sentimentos amorosos”, ou mesmo quando desejavam “fortuna para qualquer empresa ou fim, ou mal de um inimigo”. Eram poucos os noticiários da época que defendiam o líder negro. Mas o periódico ilustrado O Lobisomem, com humor peculiar, imaginou uma conversa entre mãe e filha:

— Mamãe, que história é esta que se vende a dois vinténs? Dizem que é lição aos pais do mau exemplo das mães!

— São cães que ladram à lua, são invejosos, que queres! Já chamam malvado a um homem que era amigo das mulheres.


Várias das filiadas, ou “filhas” de Juca Rosa compareceram para prestar depoimentos durante o processo, e forneceram diversas informações sobre a associação religiosa do Pai Quibombo. De acordo com os depoimentos, as “filhas” o procuravam por livre e espontânea vontade, na maioria das vezes para resolverem problemas amorosos. Várias testemunhas confirmaram sua crença no poderio de Rosa, acreditando que ele conseguiria da sorte tudo o que desejasse. As seguidoras se filiavam à sua associação ou “mesa” por meio de um cerimonial que envolvia diversos rituais, música e dança, e um juramento de fidelidade ao “chefe das macumbas” do Rio de Janeiro. A macumba em questão não era mais que um instrumento musical de pau riscado (algo semelhante ao reco-reco), tocado nas noites de festa comandadas por Juca. As filiadas também reconheciam que, após o juramento, Rosa passava a ser o senhor de suas almas e corpos. Além de curas e conselhos, era capaz de conseguir para elas amantes ricos, assim como poderia também castigar os homens que as tratassem mal – muitos dos quais também participavam dos rituais conduzidos pelo Pai. Estes castigos viriam em diferentes formas: desde “bolos na cabeça” (um murro com os dedos em nó), ruína financeira ou perda da virilidade, fazendo com que “não prestassem para mulher alguma”, até a morte.


Pai Quibombo foi julgado por estelionato, e não por exercer a feitiçaria, já que no Código Criminal do Império não havia nenhuma lei proibindo essa atividade. As depoentes do processo confirmaram que pagavam uma mensalidade a Juca Rosa. Além disso, para trabalhos ou serviços extras, Rosa cobrava à parte. Uma consulta podia custar até de 60 mil réis na década de 1860, preço bastante elevado para a época – equivalente a uma consulta a um médico de renome. Várias das filiadas, em sua maioria pobres, residindo em áreas de prostituição, enfrentavam dificuldades para sobreviver e se sacrificavam para manter em dia as contas com o Pai: faziam dívidas, vendiam objetos que não lhes pertenciam e vários outros malabarismos para dar dinheiro a Rosa.

Emília Carolina Mascarenhas, por exemplo, costureira de 28 anos, disse que procurou Rosa pela primeira vez porque queria conservar a estima de um homem com quem então vivia; e ouvira dizer “que Rosa tinha tanto poder como Deus”. Pagou 50 mil réis para que ele iniciasse o “trabalho necessário para o fim que ela tinha em vista”. Já Leopoldina Fernandes Cabral, 23 anos, declarou que foi em busca de Juca para “conservar a estima de um moço” por quem tinha “profunda afeição”, pois soube que Rosa “tinha meios e poder para conseguir tudo que a ele se pedia”. Acabou se filiando à associação, pagando uma mensalidade de 60 mil réis e aceitando Rosa como “senhor de seu corpo e espírito”.

Denunciava-se também a proteção que Rosa auferia de poderosos figurões da sociedade, os quais teriam ligações com o misterioso Pai Quibombo. Em uma sociedade organizada com base na escravidão e na inviolabilidade da vontade dos senhores brancos, o debate surgido em torno do julgamento de um líder religioso afro-descendente, que adquiriu fama e prestígio em plena capital do Império, tomou grandes dimensões por ter ocorrido em um momento político decisivo: os anos 1870 e 1871, em que fervilhavam as discussões em torno da futura Lei do Ventre Livre, e os destinos que se daria ao país após o fim do trabalho escravo. Esses debates deixavam evidente o que se pensava em relação aos negros nos meios intelectualizados do Brasil. A raça negra era, nesse contexto, considerada inferior, ignorante e supersticiosa, embrutecida e muitas vezes perigosa; discutia-se muito o perigo moral que os negros representariam junto a famílias brancas, como também os danos que a herança africana causaria na formação da nação.


Para muitos, Juca Rosa fazia parte dessa “escória”. Para outros, era considerado feiticeiro poderoso, podendo curar males do espírito e do corpo. Fabricava e vendia breves, um tipo de bolsa de mandinga ou patuá feito para evitar feitiços ou proteger contra malefícios, usado junto ao corpo, num colar ao pescoço. Serviam para proteção contra “qualquer outro feiticeiro que lhe fizesse qualquer mal”, e também para “dar felicidade”, “dar fortuna” e “livrar de quebranto”, como afirmou um seguidor seu.

Mas grande parte da clientela de Pai Quibombo o procurava em busca de curas. Juca afirmou em seu depoimento que embora “não fosse deus”, tinha respostas para males físicos, como dores e ossos quebrados. A forma como tratava as moléstias unia procedimentos rituais, manipulação de forças sobrenaturais e também remédios feitos de ervas e líquidos, juntamente com rezas e acendimento de velas para “Senhora Santa Ana” e “Senhor do Bonfim”, santos que cultuava. Quanto à acusação de receber dinheiro de diversas mulheres, Rosa declarou que elas o faziam por serem extremamente generosas. Reconheceu que teve muitas vezes relações com as diversas filiadas, negando apenas que as tivesse deflorado. Quando perguntado sobre os objetos encontrados em sua casa, como vidros de medicamento, raízes, pandeiros e até tranças de cabelos, explicou: “num caso de enfermidade ou de dificuldade no decorrer da vida sobre eles derrama o sangue de um galo; esse ato, na sua crença, agradava aos espíritos ou às almas e era praticado por ele em auxílio a qualquer de seus amigos que por enfermo infeliz a ele recorriam”.

Sem dúvida, as atividades de Juca Rosa se assemelhavam a várias práticas religiosas afro-brasileiras. Mas não é possível explicar tais rituais como mera continuidade de atividades religiosas de regiões da África, nem do candomblé que florescia na Bahia, na mesma época, e para onde Juca Rosa fazia várias viagens com o objetivo de “se limpar”. Certamente, em terras baianas, Rosa consultava mestres e pais-de-santo, com o intuito de aprender a realizar algumas de suas práticas.


Da mesma maneira, a associação de Rosa também não pode ser classificada como algo idêntico ao Candomblé ou a Umbanda que se conhece hoje, ainda que se possa identificar algumas íntimas semelhanças, como o sacrifício de animais ou cerimônias envolvendo canto, dança e transe espiritual. Estavam ali, na associação de Juca Rosa, alguns dos primórdios do que seria o candomblé carioca. Porém, a maioria de suas atividades era peculiaridades suas, especialmente seu relacionamento com diversas mulheres.

Os rituais de Rosa e seus seguidores devem ser encarados, assim, como próprios do Rio de Janeiro nas últimas décadas da escravidão. Uma religião que tinha elementos católicos e elementos de diferentes culturas africanas, sem ser nem católica nem africana: era carioca, marcadamente negra, embora cultuada também por brancos, pobres e ricos. Relacionava-se a objetivos imediatos, de sobrevivência em um ambiente racista e hostil. No entanto, esse não era seu único propósito, pois as pessoas também freqüentavam a casa de Rosa em busca de mulheres bonitas, homens gentis e cheios de contos de réis, de preferência; de companheiros e amigos entre pares; de curas para doenças ou infortúnios, ou simplesmente por fé encarnada na figura carismática de José Sebastião da Rosa.

Juca Rosa foi condenado a seis anos de prisão, apesar de ter contratado um famoso advogado para defendê-lo, que fez diversas apelações, até mesmo ao imperador d. Pedro II. Ficou na casa de correção da Corte até 1877. Quando saiu, teria se tornado “guarda da municipalidade”, segundo relatos de memorialistas. Seu nome continuou aparecendo na imprensa e em diversas publicações por muitos anos, ora como memória de grandes personagens da história do Rio, ora como sinônimo de feiticeiro negro e grande conquistador, cada vez que um “novo Juca Rosa” aparecia e sacudia a cidade.

GABRIELA DOS REIS SAMPAIO É PROFESSORA DO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA (UFBA), DOUTORA EM HISTÓRA SOCIAL PELA UNICAMP, COM A TESE “A HISTÓRIA DO FEITICEIRO JUCA ROSA: CULTURA E RELAÇÕES SOCIAIS NO RIO DE JANEIRO IMPERIAL” (PRÊMIO CARIOCA DE MONOGRAFIA –
SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA E PRÊMIO SÍLVIO ROMERO – MUSEU
NACIONAL DO FOLCLORE/FUNARTE, AMBOS EM 2000). É AUTORA TAMBÉM DE NAS TRINCHEIRAS DA CURA: AS DIFERENTES MEDICINAS NO RIO DE JANEIRO IMPERIAL. (UNICAMP, 2001)

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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