Judias imigrantes da Europa Oriental, as polacas tornaram-se prostitutas no Brasil. Marginalizadas, buscaram no auxílio mútuo uma forma de viver com dignidade.
Beatriz Kushnir
Os dez dias entre o Rosh Hashaná (Ano Novo) e o Yom Kipur (Dia do Perdão) correspondem ao período em que, para os judeus, o livro da vida é reescrito e os “erros” podem ser anistiados. Nessa época, cemitérios judaicos em todo o mundo ficam lotados de famílias reverenciando seus mortos.
Um desses cemitérios fica no subúrbio carioca de Inhaúma, mais precisamente ao pé do morro da Favela do Rato Molhado, situado em um terreno comprado em fevereiro de 1912 e inaugurado em agosto de 1916. Lá estão enterrados 797 corpos, entre homens, mulheres e crianças. O que diferencia este cemitério da maioria é o fato de que, mais que em outros campos-santos judeus, uma “regra moral” impunha àquele local silêncio e isolamento. Simplesmente porque é lá que estão enterradas as “polacas”. Mas quem eram essas mulheres? Até a década de 1980, fazer esta pergunta no seio da comunidade judaica era garantia de obter respostas vagas, caras feias e de ouvir um “melhor deixar isso para lá”.
“Polaca” foi a designação dada às mulheres judias vindas da Europa Oriental em meados do século XIX, e que nas zonas pobres de prostituição – o chamado baixo meretrício – exerciam a “má vida”. O vínculo entre homens e mulheres deste grupo étnico desempenhando atividades de prostituição e cafetinagem já ocorria na Europa Oriental, onde a maioria dos bordéis era controlada por eles. O censo de 1889 listou no Império russo 289 licenças para prostíbulos – destes, 203, ou 70%, pertenciam a judeus. No mesmo ano, das 36 autorizações para o exercício do tráfico de escravas para prostituição na cidade de Kherson, um porto do Mar Negro, 30 pertenciam a caftinas judias.
A transferência desta atividade para as Américas acompanha a crise econômica no velho continente e o grande fluxo migratório decorrente. Cidades que contavam com maior número de homens que de mulheres entre seus habitantes tornavam-se campos férteis para a prostituição.
A miséria e as perseguições aos judeus também obrigaram este grupo a migrar. Desta forma, aportavam na América o imigrante trabalhador urbano e também todas as pessoas deste grupo étnico que já não tinham esperanças de trabalho e de uma vida melhor na Europa Oriental.
As “polacas” eram moças pobres, vindas de uma comunidade na qual não se podia negligenciar o peso do dote no ato do casamento, o que excluía qualquer mulher desprovida de dote da possibilidade de ascensão econômica pela via do matrimônio. A importância das núpcias entre os membros da religião judaica criou a figura do agenciador de casamentos. Podiam ser homens ou mulheres, que faziam contato com os rapazes judeus solteiros nas Américas, mandando-lhes fotos das pretendentes e fechando o “negócio” – ou seja, acertando o casamento. Muitas vezes, o “tráfico de escravas brancas” aparece associado a esta corretagem. A pobreza das famílias impedia que a sina de seus membros fosse acompanhada de perto, e por isso não havia controle sobre os agenciamentos. Algumas vezes, ao chegarem a seus destinos, as jovens enfrentavam a dura realidade de terem sido enganadas. A partir daí, a falta de instrução e o despreparo para o mundo fabril as obrigavam a participar do mundo de trabalho possível.
Demônios, fantasmas, sigilos e segredos rondavam as tentativas de investigação do tema. A existência de “polacas” no Brasil era um tabu dentro da comunidade judaica. Contrastando com este silêncio, alguns romances e memórias abordaram o tema pela via da ficção. No Brasil, a primeira novela escrita por um autor brasileiro de origem judaica foi publicada nos anos 1970. O ciclo das águas, de Moacyr Scliar, é considerado pelo autor como sua primeira obra ficcional. Ao tornar-se pioneiro na abordagem desta temática dentro da comunidade judaica no país, Scliar rompeu o tabu, e o romance ganha importância não pelo misto de ficção e realidade contido na história. Violar o interdito inscrito ao “tráfico de escravas brancas” equivale à difícil tarefa de exorcizar demônios: “mas deve ser feito, e o primeiro passo é, como o sabiam os exorcizadores, chamar os demônios pelo nome”.
As rugas que a menção a estas mulheres produziam nos rostos daqueles interpelados a seu respeito transformaram-nas, ao mesmo tempo, em mulheres poderosas e vítimas que o tempo deveria calar. O escritor Isaac Bashevis Singer, prêmio Nobel de Literatura – que revelou ao mundo o cotidiano dos judeus da Europa Oriental –, só se debruçou sobre a questão em seu último livro, Escória, e não deixou de punir seu personagem. Ao narrar sua trajetória e identificá-lo como um cáften, condena-o à prisão. Algo que não era nem a regra nem a exceção..
O mercado da prostituição deslocava mulheres – enganadas ou não – de cidades como Odessa, Lodz e Varsóvia para Xangai, Nova York, Buenos Aires, Montevidéu, Córdoba, Santiago, Rio de Janeiro, Santos ou São Paulo por uma rota tortuosa. Essas mulheres acabam no baixo meretrício, sendo instaladas no Mangue e na Lapa, no Rio de Janeiro; no Bom Retiro, em São Paulo, em La Boca, em Buenos Aires.
O “tráfico de brancas” oriundas da Europa Oriental foi motivo de preocupação de governos e de entidades filantrópicas, que instituem congressos internacionais de repressão ao tráfico, atuação em portos para alertar as moças sobre os perigos que corriam, a atuação dos delegados de polícia combatendo o cafetismo – cuja condenação, para os estrangeiros, significava a expulsão do país. É interessante notar que a palavra cáften tem uma de suas origens possíveis nas caftas – longos casacos pretos – usadas pelos judeus na Europa Oriental.
Há diversas narrativas de tentativas salvacionistas, nas quais membros da comunidade judaica se colocavam nos portos para advertir as moças de que tais promessas de casamento poderiam ser falsas e que seus destinos seriam, possivelmente, os prostíbulos. Havia a crença de que elas nunca sabiam seu verdadeiro destino. A vida difícil dos dois lados da comunidade judaica e a ausência de mecanismos desta parcela oficial para oferecer uma alternativa melhor não parecem ter conseguido frear o fluxo de mulheres judias que se dirigiram para a prostituição. Alertar não era suficiente para acabar com o problema.
Marginalizado em sua dupla condição de imigrante e fora-da-lei – já que o cafetismo é crime e a prostituição é coibida –, como um determinado grupo viabilizaria mecanismos de autoproteção? A resposta está na fundação de associações de ajuda mútua – identificadas por muitos como verdadeiras redes mafiosas – em todas as cidades para onde emigraram. Essas associações mantinham cemitérios e sinagogas próprios, permitindo romper a exclusão religiosa, já que não podiam freqüentar os espaços da comunidade judaica nas cidades onde conviviam. Segundo os preceitos judaicos, suicidas e prostitutas devem ser enterrados junto aos muros dos cemitérios – reforçando a exclusão que lhes era imposta. Por isso, a criação e a manutenção de locais para os mortos parecem ter sido uma questão importante. Essas sociedades de auxílio eram instituídas exatamente para retirá-los – homens e mulheres – deste lugar de “parias”. Sempre percebidos como transgressores sem caráter, esta separação demarcava polaridades – positiva e negativa – dentro do grupo judeu nas cidades. Essa divisão é compreensível, vindo de imigrantes que fugiam de perseguições religiosas e queriam a todo custo construir uma imagem positiva na nova pátria. Mas em um ponto estes dois lados da comunidade judaica se encontravam: a dura condição de estrangeiro lhes era comum. Eram vítimas sociais da miséria e dos processos migratórios que procuravam criar mecanismos de sobrevivência e de construção de uma identidade social positiva.
Nem sempre a descrição de médicos, delegados e juristas é capaz de mostrar esse lado positivo. Mas ele aparece claramente no Diário Oficial de 13 de novembro de 1906, que traz a reprodução da Assembléia ocorrida dez dias antes e que divulgava a existência da “Associação Beneficente Funerária e Religiosa Israelita (...), com sua sede à rua Luiz de Camões n° 68, sobrado”, cujos fins eram: “(...) fundar uma sinagoga nesta Capital e nela praticar e observar todas as prescrições, cerimônias e atos da religião israelita; manter uma escola primária, gratuita, para educação e o ensino moral e intelectual de crianças de ambos os sexos desprotegidas e da religião israelita; socorrer as suas associadas, quando enfermas; (...) fazerem às suas associadas que vierem a falecer nesta Capital os seus funerais, (...) segundo determina a religião israelita (...)”.
Este é um registro da trajetória deste grupo duplamente marginalizado. Algo intrincado e raro, pois é comum que sua condição faça com que seu passado seja “alterado” nas narrativas de descendentes, pouco à vontade com suas origens ou mesmo sem possibilidades de preservar seus trajetos. Por isso a tarefa de compreender a história de excluídos centrando-a nos traços deixados pelos próprios grupos (e não pelo discurso de terceiros) é árdua. Por isso o trecho acima é tão emblemático, trazendo as diretrizes que regeram por mais de seis décadas uma peculiar sociedade civil com sede na cidade do Rio de Janeiro.
A Associação Beneficente Funerária e Religiosa Israelita (ABFRI) foi instituída em 10 de outubro de 1906 e registrada por sua primeira secretária, Mathilde Huberger, junto ao 1º Registro Especial de Títulos e Documentos. Era uma ação filantrópica, socializadora e autoprotetora entre mulheres – e também entre homens, como se notará mais tarde – que participaram do comércio e da prática da prostituição estrangeira no baixo meretrício desta cidade, e que tinham um elo absolutamente essencial para eles: o fato de serem todos judeus.
São conhecidas quatro sociedades de ajuda mútua fundadas por homens e mulheres judeus envolvidos com a prostituição, além da ABFRI: a Sociedade Feminina Religiosa e Beneficente Israelita (SFRBI), fundada em São Paulo em 1924; a Sociedade Beneficente e Religiosa Israelita de Santos, fundada em 1930 naquela cidade; a Sociedade de Ajuda Mútua Zwi Migdal, fundada em Buenos Aires em 1906; e a The New York Independent Benevolent Association, fundada em 1896 na ilha de Manhattan.
A análise dos 62 anos de existência da sociedade carioca e dos 44 anos da entidade paulistana dá a chance de se compreender os diferentes caminhos que trouxeram homens e mulheres judeus em seus processos migratórios. Semelhantes a quaisquer outros grupos imigrantes, as “polacas” e seus amigos e/ou maridos também constroem uma vida comunitária. Não se pode ficar restrito à idéia de uma rede de tráfico e de homens que roubam mulheres e as enganam. É necessária a incorporação do conjunto de relações que cada grupo estabeleceu entre si visando construir uma rede de associações com base na solidariedade entre os que têm uma condição social marginalizada.
A trajetória da ABFRI foi longa. Foi fundada em 1906, mas é preciso ressaltar que este ano não pode ser considerado o da chegada de “polacas” ao Rio ou mesmo ao Brasil. O ano de 1867 é a data citada mais freqüentemente para os primeiros registros destas mulheres no país. Embora a cidade do Rio, devido ao porto, fosse um ponto de desembarque, nem todas ficavam por aqui. Levando-se em conta esta datação, quando a ABFRI foi instituída, esta comunidade organizada de maneira informal já habitava a cidade por quase quatro décadas.
Para ser membro da ABFRI requeria-se professar a religião judaica, a apresentação feita por um sócio antigo e em pleno gozo de seus direitos, ou seja, quite com suas mensalidades, não ser inválido e estar em perfeita saúde, já que o caráter assistencialista da entidade necessitava primeiro do auxílio dos sócios, antes que estes precisassem do socorro da entidade. Caso contrário, a acumulação de recursos seria impossível.
Os sócios eram majoritariamente femininos e a ABFRI foi dirigida exclusivamente por mulheres até dezembro de 1914, quando a entidade foi reorganizada e definiu-se um novo estatuto. Apesar de as alterações da sociedade serem contemporâneas à legislação que orientou a existência de sociedades civis no país, não há indícios que liguem as modificações executadas pela ABFRI à nova lei. Mas esta certamente obrigou a uma reestruturação das entidades de mesmo fim de um modo geral. Entre as mudanças, houve a divisão da entidade em duas alas: uma administrativa e outra assistencialista. A primeira pertencia à parte masculina e a segunda era dirigida pelas mulheres e seria composta por “(...) uma Presidente, uma Vice-Presidente e uma Secretária da extinta sociedade além de 8 superioras de atos fúnebres”. As funções femininas nesse momento se resumiam à realização de enterros e ao socorro hospitalar às sócias, pois “(...) serão concedidos os mesmos favores aos sócios do sexo masculino, caso este [seja] resolvido pela diretoria da Associação sem a intervenção das diretoras dos auxílios do sexo feminino”.
A partir deste novo quadro da associação, coloca-se uma questão intrigante: seriam os homens participantes da sociedade os cáftens das associadas e se reproduziria no interior da ABFRI a violenta relação que regula as atitudes entre as prostitutas e seus exploradores? Jamais se saberá ao certo. A ABFRI deve ser encarada como uma entidade composta de homens e mulheres casados entre si e que reproduzem no seu interior as regras vigentes, segundo as quais o homem era o “cabeça” do casal. O próprio Registro de Óbitos da ABFRI comprova a existência de muitos casais no corpo social da entidade, como também ocorreu na sociedade paulista.
Dos 1030 nomes encontrados tanto no Livro de Registro das mensalidades como no Livro de Registro dos Óbitos ocorridos nos mais de 60 anos da ABFRI, apenas 19% eram do sexo masculino. De fato, a chegada de mulheres sempre foi maior que a de homens, e muitas vinham casadas ou se casavam aqui com judeus ou não, ou estabeleciam relações informais.
A atuação dessas sociedades de ajuda mútua era diversificada: compravam terrenos para a construção de cemitérios, mantinham serviços religiosos em dias sagrados e auxiliavam os membros doentes e idosos. Há duas diferenças entre a de São Paulo e a do Rio. Primeiro, a maneira particular que cada grupo encontrou para se adaptar a suas especificidades internas nas cidades onde existiram. A entidade paulista foi, desde a sua criação, uma sociedade feminina marcada pela competição, disputa por liderança e fôlego para construir e vivenciar uma vida comunitária. A carioca, dirigida ora por homens, ora por mulheres, pode ser percebida como uma irmandade centralizada em poucas figuras que tentou sempre superar crises, dando a impressão de um eterno recomeço para levar a cabo os seus objetivos.
A idéia de “irmandade” neste grupo aparece primeiro quando as mulheres que cuidavam da assistência social se auto-intitulam as irmãs do “Chesed shell emes” – ou da “Caridade de Verdade”, aquela que não busca recompensa. Depois, quando a primeira irmã superiora falece, em 1932, esta noção de “irmandade” está na lápide de Fanny Zusman, no primeiro cemitério judeu da cidade, fundado pela entidade carioca no bairro de Inhaúma. No verso da lápide há a denominação da irmandade e a apresentação de toda a relação de cargos e nomes de sua gestão. As quatro irmãs superioras foram Fanny Zusman, Amália Schkolnik, Angelina Schaffran e Rebecca Freedman.
Mas se existiu este movimento de dentro do grupo para fora, existiu também a ação que a sociedade maior, o espaço da cidade, exerceu para dentro do grupo. Um exemplo está nos processos de adaptação das associações quando a “tolerância” à prostituição diminui, causando a migração de “polacas” paulistas para o Rio nos anos 1950. A perseguição policial, que desarticulou totalmente a sociedade existente em Buenos Aires na década de 1930, com a expulsão e a emigração de seus membros, foi tentada, sem êxito, no Rio e em São Paulo. No Brasil, o início do fim destas sociedades ocorreu durante a Segunda Guerra Mundial, quando, em vez de imigrantes, passamos a ter refugiados de guerra. Sem novas “polacas”, o grupo existirá até a morte da última, provavelmente Rebecca Freedman, aos 103 anos, em 1986.
Neste diálogo entre o grupo e o mundo exterior, outro aspecto importante a se destacar inclui o papel e a estrutura da comunidade judaica em cada cidade onde coexistiu com as “polacas”. Em São Paulo, a comunidade permitiu, por um lado, que as “polacas” fossem amparadas no lar dos velhos, e não permitiu, por outro, a manutenção de suas identidades quando do translado dos corpos do Cemitério Israelita de Santana/Chora Menino para o Cemitério Israelita do Butantã. No início da década de 1970, após a desestruturação física da entidade paulista por causa da velhice de seus membros, o cemitério da sociedade, em Santana, foi desapropriado pela prefeitura devido ao seu estado de abandono. Os corpos não reclamados por parentes foram removidos para o cemitério israelita da cidade, e encontravam-se em um local separado em quatro fileiras de lápides de cimento sem identificação. Só em 27 de fevereiro de 2000, a Sociedade Cemitério Israelita Chevra Kadisha de São Paulo recolocou os nomes nas lápides vindas de Santana/Chora Menino, numa cerimônia que contou com a presença e a reza do rabino Sobel. No Rio, a comunidade auxiliou uma pequena quantidade de sócias e sócios da ABFRI em seu hospital. Cuidou e ainda cuida também, de maneira muito discreta, do Cemitério Israelita de Inhaúma.
Outro exemplo da atuação destas entidades aparece no caso de quatro “polacas” cariocas que faleceram no Hospital Colônia Juliano Moreira, centro psiquiátrico mantido pelo Ministério da Saúde no Rio. Três estavam ali por depressão e uma por reincidência de sífilis (que tem como uma das conseqüências possíveis o ataque ao sistema nervoso central). Todas elas tinham passado antes pela Colônia Gustavo Riedel – atualmente, Hospital Psiquiátrico Pedro II –, e foram encaminhadas para a Juliano Moreira por suas condições de indigência. O boletim de internação de uma delas relata as constantes visitas de suas amigas, como também as imagens que cercam o mundo da prostituição. A enfermeira responsável pelo boletim anotou que “esta doente tem amigas Polacas que já têm envidado esforços para retirá-la, com o fim de, segundo informes, cafetinizá-la. O médico psiquiatra e o Diretor da Colônia opuseram-se firmemente a tal retirada”.
Enfrentando a distância entre a fantasia e a realidade, quando mortas, e sem que houvesse qualquer observação sobre a existência de parentes em suas fichas, estas quatro mulheres foram sepultadas no cemitério de sua associação. Duas delas, que faleceram depois de 1954, possuíam registro de matrícula na ABFRI e, de alguma forma, tiveram sua contribuição mensal paga à entidade até as vésperas de seus óbitos. É a prova de que conseguiram, deste modo, romper com a condição de estrangeiras e de indigentes, estabelecendo laços duradouros através do tempo.
Desde os anos 1920, a associação ocupava a parte superior de um sobrado na Praça da República nº 54, onde também se localiza a sinagoga. Três irmãs, Zelda, Celina e Etel, casaram-se lá um ano depois que sua mãe, uma sócia da ABFRI, mandou trazê-las de Odessa. Todas se casaram com filhos de sócios ou sócias da entidade. Celina lembrou que o local “(...) era um sobrado e tinha dois salões. Tinha Torá [livro de rezas], tinha tudo. Estava lindo”. Já Zelda comentou que eles tinham um rabino, “(...) tinham música. É uma pena que naquele tempo a gente não tivesse filmes e coisas para tirar [retrato]. Era tão bonito aqueles tapetes vermelhos com aquelas rosas enfeitadas em volta”.
Em 1939, o endereço da ABFRI era na Rua General Câmara n° 337/sobrado. Com a reforma da Avenida Presidente Vargas, que demoliu vários prédios, entre eles os da Rua General Câmara, a associação se desloca, em 1942, para a sede própria, na Rua Afonso Cavalcanti n° 171, no tênue limite que separava a Praça Onze – concentração da comunidade judaica na cidade – da zona do Mangue – o baixo meretrício. A sinagoga era uma sala com capacidade para cerca de 120 pessoas, com cadeiras de jacarandá e todo o conforto para seus sócios, além de toda a indumentária necessária para a realização dos ritos judaicos.
Após 62 anos de existência, a ABFRI se exaure. As rendas já não cobrem as despesas e as mensalidades já não conseguem ser pagas pelos associados. Profundamente preocupado com a ritualização, seu contador conta que “Não é nem dizer que [a sociedade] morreu. (...). Porque sempre há o momento de [se dizer]: ‘Ah, então acabou. Vamos embora, entrega, paga a quem está devendo’. Não teve nada disso. Ela foi perdendo condição (...) A última arrecadação foi de Cr$ 12,00. Então não havia sentido de fazer [mais] aquela reunião. (...) Não teve última reunião. (...). Quando tiver dinheiro, faz-se outra reunião. (...) Não houve um agrupamento para dizer [que] encerrou. Não houve nada disso”.
A reelaboração do passado coletivo, por meio da recuperação e manutenção de costumes e tradições, possibilitou aos sócios uma existência fora dos limites da condição marginal. Reelaboraram suas histórias, construindo-as e reconstruindo-as segundo as necessidades do seu presente, e desta forma engajaram-se em uma herança comum. Compreendendo que fé não tem dono, exerceram no cotidiano a união entre idéia e ação. Na maioria dos casos, morreram muito pobres, mas deram às suas vidas o sentido positivo presente na busca constante de dignidade.
Beatriz Kushnir é Doutora em História Social do Trabalho pela UNICAMP. Atualmente dirige o Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro [Prefeitura do Rio/Secretaria Municipal das Culturas]. É autora, entre outras obras, de Baile de máscaras: mulheres judias e prostituição. As polacas e suas associações de ajuda mútua (Rio de Janeiro,Imago, 1996).
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
Um comentário:
Esta é uma realidade que não há como fugir. Assim como toda a história do povo judeu.
Por acaso tenho em casa alguns livros narrando a trajetória difícil das "polacas".
Sempre me interessei, ao contrário dos que me cercam, pelo povo que historicamente, digamos assim tenha sido o povo "escolhido". Pelo menos é assim que consta na Bíblia.
Nunca entendi nem entendo o porque de tanta perseguição. Quando visitei a casa, o cubículo de Ann Frank, fiquei impressionadíssima.
Há uma lacuna na História Do Mundo, que não explica isso. Antes e pós Hitller. Mas no que consta, as mulheres sofreram mais, até mesmo pelo modo exacerbadamente patriarcal do povo judeu.
Parabéns Eduardo!
Seus temas, sempre interessantes, me deixam ligadas aqui.
Um forte abraço
Mirse
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