Dos elegantes salões de chá às concorridas sessões de cinema, a grã-fina São Paulo do início do século XX era uma festa. Mas o forró estava chegando...
Laura de Mello e Souza
As formas permanentes de lazer da população paulistana entre as décadas de 1920 e 1940 eram verdadeiras instituições: a conversa na porta, o cinema dominical, o footing [passeio a pé], o chá das cinco na cidade – este, somente para as camadas mais ricas. Os bailes públicos, com seus salões abertos o ano todo, também constituíam uma forma permanente de lazer.
Numa sociedade extremamente provinciana, imersa no paternalismo, a segregação da mulher era inevitável: presa em casa, tricotando meias e costurando lenços para os soldados da Revolução Constitucionalista de 1932, tocando piano e rezando, a moça dificilmente saía desacompanhada; mas se havia a “moça séria”, a “moça para casar”, havia também a “comida”, a moça do cabaré, a prostituta de alto bordo, a barregã modesta da “zona”: o amor ilícito, confinado aos bordéis, assumiu nessa sociedade um papel importantíssimo de entretenimento permanente – talvez, ao lado do cinema, o mais permanente de todos.
O cinema surgiu em São Paulo no início do século, e desde então constituiu uma das mais importantes formas de lazer e entretenimento da população; talvez tenha sido a mais generalizada de todas, pois às salas de exibição afluía gente de todas as condições sociais. Isto não quer dizer que a composição do público fosse heterogênea, democrática: o lazer era regido pela hierarquização da sociedade, e havia cinema de rico e cinema de pobre, cinema de centro e cinema de bairro, salas luxuosas e pulgueiros.
Os parques e os jardins eram locais de passeio para a família toda. Talvez os mais antigos tenham sido o Parque Antártica e o Jardim da Luz, freqüentadíssimos aos domingos desde o início do século. No Parque Antártica havia parquinho de diversões: roda-gigante, gôndolas, cavalinhos de pau. No Jardim da Luz, os adultos se sentavam para tomar cerveja ou refresco enquanto ouviam as retretas do maestro Antão Fernandes, da Força Pública; havia lambe-lambes para a clássica fotografia da família a passeio.
Os piqueniques eram muito freqüentes desde o começo do século. Na segunda-feira de Páscoa, os italianos afluíam ao Parque Antártica ou ao Bosque da Saúde em bondes abarrotados: eram os piqueniques da Pascoela. Aliás, tudo indica que os italianos e seus descendentes tenham sido grandes entusiastas deste tipo de diversão – mais do que os operários e os pequenos artífices nacionais. O piquenique era uma atividade basicamente popular, o que não impedia que alguns círculos da classe média dela participassem. Os locais mais concorridos eram o Jabaquara – onde havia um grande bosque –, a Cantareira e a Vila Galvão, onde havia um lago, e que se tornou o local mais típico dos piqueniques das classes populares. As famílias iam com as crianças, jogava-se futebol, a meninada corria e pulava corda.
O Museu do Ipiranga era um local de lazer: passeava-se no jardim e visitava-se o museu; as classes populares iam com muita freqüência. Na década de 1930, quando alguém perguntava “Onde vamos?”, o outro, para brincar, dizia: “Vamos ao museu”. A represa velha de Santo Amaro também era freqüentada, sobretudo devido às cantinas e pizzarias que se abriram em suas imediações. Entretanto, o acesso era mais difícil, sendo necessário tomar um bonde de percurso longo, como quando se ia ver as cobras do Butantã.
O ritual de ir à cidade fazer compras, olhar vitrines e passear também era uma forma de lazer. As tias velhas levavam as crianças e compravam para elas uma bola ou um pião. As moças de família não faziam footing porque não era “bem”, mas sorrateiramente passavam pela Rua Direita com ar de quem não quer, e se deixavam ver pelos rapazes, que, indo e vindo, faziam um footing mais real. No Bexiga havia um footing bastante animado nas ruas Conselheiro Ramalho e Rui Barbosa, com cadeiras nas portas e muita conversa. Mas o grande footing popular era no Brás, uma ótima ocasião para se descobrir uma namorada; nos anos 1940, ocupava os primeiros quarteirões da Celso Garcia, durava até nove e meia da noite e era intenso, sobretudo aos sábados.
Como hoje, o grande esporte popular era o futebol: os jogos dos clubes profissionais, as peladas de várzea e de rua. Na década de 1920, o futebol já era profissional, contando com um grande astro: Friedenreich. Entretanto, era a pelada de bairro a forma mais importante de lazer assumida pelo futebol. Nos bairros mais populares, e mesmo em bairros típicos de classe média, a molecada se entretinha o ano inteiro, promovia jogos de bairro contra bairro, assistidos muitas vezes pelos moradores adultos.
A natação também era muito praticada; não que abundassem as piscinas públicas: havia uma ou outra, e os meninos costumavam nadar no Tietê e no Tamanduateí – que não eram tão poluídos como hoje –, apesar da proibição e dos cavalarianos que, espada em punho, os obrigavam a sair nus do rio, levando-lhes a roupa. As provas de natação eram feitas no Tietê, mesmo porque os clubes não tinham piscinas próprias, mas cochos de madeira suspensos, dentro do rio, por tambores vazios de gasolina. O rio proporcionava outra diversão importantíssima: o remo. Os clubes situados ao longo do Tietê tinham suas regatas – donde o nome de muitos deles. Mas, independentemente delas, remar era uma forma de lazer. Esta prática durou até meados dos anos 1940.
O chá na cidade era um programa importantíssimo para a classe média e as camadas dominantes, um verdadeiro ritual que fazia do salão de chá um elo fictício entre os grã-finos e os outros. No chá do Mappin, com o preço fixo de dois mil-réis e uma quantidade enorme de quitutes, os rapazes e as moças de classe média se sentiam próximos dos endinheirados, recompensados, promovidos por essa pseudoconvivência momentânea. A Casa Alemã, na Rua Direita, também tinha o seu salão, menos chique e mais vazio que o do Mappin. Ambas fechavam por volta das seis horas, mas do outro lado do viaduto, num território menos seguro que o da antiga cidade, havia a Seleta e a Vienense, abertas até tarde da noite e locais elegantes para um chá após os espetáculos teatrais. Todas tinham música ao vivo, com trios ou quartetos.
As casas de chope também foram muito freqüentadas: a Heidelberg, na Xavier de Toledo, toda de madeira, tinha um trio excelente, e mudou de nome durante a guerra, quando passou a chamar-se Harmonia. A Cidade de München e a Franciscano, ambas na Rua Líbero Badaró, foram choperias famosas, sendo a última particularmente célebre por ter abrigado durante anos Mário de Andrade e sua roda.
Alguns círculos da classe média – sobretudo intelectuais e artistas – já eram, na década de 1930, assíduos freqüentadores de restaurantes e cantinas. As grandes famílias parecem não ter sido muito dadas a esse tipo de divertimento, pois tinham seus jantares próprios, bastante luxuosos: os Prado, por exemplo, tinham cozinheiro francês, e as refeições na alta roda já eram, naquela época, requintadíssimas.
O divertimento estava indissoluvelmente ligado à idéia de comunicação humana e sociabilidade; tinha um papel fundamental na vida das pessoas; a diversão era feita em comum, compartilhada com o companheiro. A conversa nas portas das casas era uma instituição de lazer da maior importância, sobretudo em bairros populares e de classe média mais modesta. Se o tempo estivesse bom, juntavam-se cadeiras diante das portas e puxava-se assunto com os vizinhos: sobre o crime do jornal, sobre política, sobre o tempo, sobre a família, sobre futebol. Isto podia durar horas, e reforçava os laços de vizinhança comunitária. A informação estava na rua: ela só passou para dentro de casa com o rádio e a televisão.
Era comum fazerem-se visitas após o jantar, os homens mais do que as mulheres: iam ver um amigo, o irmão, o compadre. Cada casa tinha seus habitués, que muitas vezes chegavam quando a família ainda estava em volta da mesa do jantar; era só puxar uma cadeira e juntar-se à conversa, enfronhar-se nas novidades. Na cidade, nas ruas, havia algumas rodas de conversa, que os freqüentadores mais assíduos do Centro identificavam de longe: rodas de médicos, de estudantes, de amigos que se encontravam para um drinque antes do jantar.
O cabaré teve sua época áurea nos anos 1920, com as mulheres cheias de jóias, grandes orquestras e cabaretiers argentinos. Era uma mistura de bar e restaurante noturno onde a atividade principal era a dança, mas havia também alguns números. Os homens iam sozinhos; moças de família nunca freqüentaram cabarés. A dama do cabaré era uma mulher semiprostituída, cuja principal função era forçar o consumo e fazer companhia – sobretudo servindo de par – aos cavalheiros. Eventualmente, poderia fazer um programa mais tarde, mas não era esta a sua função primordial.
O bordel era um verdadeiro colégio interno de mulheres da vida: elas ficavam ali o dia inteiro, sob o olhar vigilante da caftina e o controle dos rufiões. Havia bordéis de todos os preços, e a partir de uma certa categoria eram conhecidos pelo nome de sua dona: a Dadá, a Carmem.
Durante o ano todo, havia uma quantidade de salões para se dançar, alugados até pelos clubes chiques, quando estes ainda não tinham sede social. Mme. Poças Leitão deu muitos bailes no salão do Trianon, mas a partir dos anos 1930 isso foi se tornando cada vez mais raro, e esses salões passaram a ser freqüentados pela classe média e pelos grupos mais populares. Os cinemas de bairro, os clubes, as sedes dos times de futebol de várzea também ofereciam bailes. Mas foram as gafieiras, a partir dos anos 1940 – e mesmo um pouco antes –, que acolheram os integrantes das classes populares que desejavam dançar. As orquestras eram boas, dançava-se muito samba figurado – hoje substituído pelo xaxado e pelo forró.
A grande transformação na vida da cidade ocorreu nos anos 1950, sobretudo a partir do governo Juscelino. A cidade desembestou, o processo de urbanização andando mais rápido do que a industrialização – o que, aliás, é uma característica da América Latina. Os migrantes começaram a chegar em número superior à capacidade que a economia urbana tinha de criar empregos estáveis, invadindo o velho Centro das elites, deformando-o, descaracterizando-o. Tornou-se impossível evitar o confronto com os elementos populares que entravam nos cinemas, se acotovelavam nas ruas, dormiam embaixo do Viaduto do Chá, lotavam os forrós, fazendo o seu falar agreste se sobrepor ao cantado dos imigrantes italianos. São Paulo, provinciana, segura, feiosa mas agradável, defrontara-se afinal com a verdade: como acontece na Lei de Newton, esta despencou sobre a sua cabeça, vinda do Norte, do Nordeste, do Leste...
Laura de Mello e Souza é professora titular de História da Universidade de São Paulo.
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
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