Com a missão de patrulhar submarinos alemães, esquadra brasileira foi devastada por outro inimigo: a gripe espanhola
Francisco Eduardo Alves de Almeida
"Os doentes caíam ardendo em febre, cobertos de suor emplastado com moinho de carvão, sem ter nem sequer quem os auxiliasse a tomar banho e mudar de roupa, pois os poucos válidos que lhes poderiam assistir nisso diminuíam de hora em hora, de minuto a minuto... Foi então um gemer, um delírio, um pedir de água, um esperar por socorro, verdadeiramente consternador”.
As dramáticas palavras do capitão-tenente Orlando Marcondes Machado retratam a sofrida saga vivida pelos tripulantes de uma pequena divisão de navios brasileiros durante a Primeira Guerra Mundial. Já de saída comprometida por inúmeras precariedades técnicas, a jornada transformou-se em pesadelo sob uma devastadora epidemia de gripe espanhola.
Quando o país declarou-se em estado de guerra contra o Império Alemão, em outubro de 1917, o ministro da Marinha, almirante Alexandrino de Alencar (1848-1926), decidiu criar uma nova divisão – subordinada operacionalmente à Inglaterra, ela teria a missão de patrulhar submarinos germânicos na costa ocidental africana. A Divisão Naval em Operações de Guerra (Dnog) foi formada com dois cruzadores e quatro contratorpedeiros. A eles somaram-se um navio-tênder, para apoio e abastecimento, e um rebocador. Todos já estavam obsoletos: haviam sido comprados na Inglaterra em 1906 como parte de um programa para modernizar a esquadra nacional – onze anos depois, seus equipamentos estavam antiquados e ineficientes, e suas caldeiras a carvão causavam sucessivos problemas.
Para o comando da missão foi escolhido o contra-almirante Pedro Max Fernando de Frontin (1867-1939). Em maio de 1918, partiram os primeiros navios do Rio de Janeiro com destino a Salvador. Essa primeira travessia já demonstrou a fragilidade da esquadra – pouco antes da chegada à capital baiana, o contratorpedeiro Rio Grande do Norte ficou sem seus motores de propulsão, tendo que ser rebocado por seu congênere Piauhy. Reunidas em Fernando de Noronha, as belonaves deixaram o território brasileiro no dia 1° de agosto rumo a Freetown, em Serra Leoa. Oito dias depois, a Dnog se colocava às ordens do almirante Sheppard, comandante da Divisão Naval Britânica – não sem antes dedicar quatorze dias aos reparos das máquinas avariadas.
Quando enfim rumava para Dakar, onde daria início às patrulhas, a divisão foi atacada por um submarino no dia 25 de agosto, por volta das 20h15. Por sorte, o torpedo passou a cerca de vinte metros da popa do tênder brasileiro. Imediatamente os demais navios realizaram ataques em direção ao inimigo, mas não houve certeza da destruição do submarino alemão. No dia seguinte, a Dnog fundeava em Dakar. Começariam então os seus piores tormentos. A intenção era permanecer ali o menor tempo possível, somente para reparos e reabastecimento, mas em 6 de setembro a gripe espanhola irrompeu entre a tripulação com toda a sua virulência. Já nesse dia, a colocação de carvão a bordo do cruzador Bahia teve que ser suspensa pelo excesso de doentes: de uma só tacada haviam sido atingidos cerca de 200 tripulantes, do total de 1.500 de toda a divisão.
Os sintomas eram uma sonolência inicial seguida de febre alta, dor de cabeça, tosse, falta de ar, algumas vezes hemorragia nasal e bucal, alucinações e morte, isso tudo em curto espaço de tempo: de 24 a 72 horas. Os doentes não tinham forças nem para se levantar, situação agravada pelo intenso calor. No fim de dois dias, as tripulações de todos os navios haviam sido contagiadas, e com tal força que cerca de 95% dos seus efetivos encontravam-se em completo estado de prostração. Um dos muitos casos tenebrosos foi o de um jovem praça internado em um hospital de Dakar. Aparentemente acometido de delírio, ele se levantou durante a noite, como se nada lhe tivesse acontecido, vestiu-se, imobilizou o sentinela do hospital e dirigiu-se à primeira espelunca que encontrou. Lá se entregou aos maiores excessos. Em seguida, regressou ao seu navio, onde foi recolhido à enfermaria em estado de grande excitação. Duas horas depois, começou a ter convulsões e febre alta, vindo a falecer após seis horas de completa agonia.
As mortes se multiplicavam. Os corpos eram colocados em caixões e entregues às lanchas francesas (guarnecidas por senegaleses), que os levavam para serem enterrados na cidade. Depois de alguns dias, por causa da demanda excessiva, os caixões foram substituídos por tábuas simples, amarradas por cabos e envoltas em lona. Nofim de dois meses tinham morrido 109 militares, e 140 doentes foram repatriados, alguns falecendo no Rio de Janeiro. Ao todo, 249 militares se afastaram da Dnog, sendo substituídos por novos contingentes vindos do Brasil.
A gripe amainou aos poucos, e foi considerada extinta por Frontin no fim de outubro. O almirante teve que fazer várias alterações nos comandos e recompor as guarnições, uma vez que a guerra ainda não terminara. O destino seguinte seria Gibraltar. Além dos problemas de pessoal, a esquadra estava gravemente desfalcada de navios. O cruzador Rio Grande do Sul e o contratorpedeiro Rio Grande do Norte tiveram que permanecer em Dakar devido a problemas mecânicos, o tênder Belmonte foi convocado a transportar trigo para o governo francês e o rebocador Laurindo Pitta regressou ao Brasil. Restaram apenas um cruzador e três contratorpedeiros para continuar a missão.
Na travessia até Gibraltar, um atraso impediu o encontro previsto com o encouraçado inglês Britannia na entrada do Mediterrâneo. Foi um raro momento de sorte da missão brasileira, pois naquele ponto estava à espreita um submarino alemão, que pôs a pique o navio de guerra britânico. A divisão chegou a Gibraltar em 10 de novembro, e no dia seguinte foi assinado o armistício que pôs fim à guerra. Isso não significou o regresso imediato dos navios. A convite, visitaram Inglaterra, França, Portugal, Itália e as ilhas de Cabo Verde. Foram mais sete meses de navegação e de incontáveis reparos antes da chegada ao Rio, em junho de 1919.
O que poderia ter sido uma experiência edificante transformou-se numa desventura inócua. Em vez de aprender com o traumático episódio, a Marinha acomodou-se. Em 1942, quando o país se envolveu em nova guerra mundial, os tenentes da Dnog eram almirantes. Mas seu sofrimento passado na África foi em vão: nossa Marinha continuava despreparada.
FRANCISCO EDUARDO ALVES DE ALMEIDA é HISTORIADOR E INSTRUTOR DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL.
Saiba Mais - Bibliografia:
GAMA, Arthur Oscar Saldanha da. A Marinha do Brasil na Primeira Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Capemi,1982.
MAIA, Prado. DNOG. Uma página esquecida da história da Marinha Brasileira. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1961.
MARTINS, Helio Leôncio. “A Participação da Marinha Brasileira na Primeira Grande Guerra”. In: História Naval Brasileira, v.5, t.ib. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação da Marinha, 1997.
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
Francisco Eduardo Alves de Almeida
"Os doentes caíam ardendo em febre, cobertos de suor emplastado com moinho de carvão, sem ter nem sequer quem os auxiliasse a tomar banho e mudar de roupa, pois os poucos válidos que lhes poderiam assistir nisso diminuíam de hora em hora, de minuto a minuto... Foi então um gemer, um delírio, um pedir de água, um esperar por socorro, verdadeiramente consternador”.
As dramáticas palavras do capitão-tenente Orlando Marcondes Machado retratam a sofrida saga vivida pelos tripulantes de uma pequena divisão de navios brasileiros durante a Primeira Guerra Mundial. Já de saída comprometida por inúmeras precariedades técnicas, a jornada transformou-se em pesadelo sob uma devastadora epidemia de gripe espanhola.
Quando o país declarou-se em estado de guerra contra o Império Alemão, em outubro de 1917, o ministro da Marinha, almirante Alexandrino de Alencar (1848-1926), decidiu criar uma nova divisão – subordinada operacionalmente à Inglaterra, ela teria a missão de patrulhar submarinos germânicos na costa ocidental africana. A Divisão Naval em Operações de Guerra (Dnog) foi formada com dois cruzadores e quatro contratorpedeiros. A eles somaram-se um navio-tênder, para apoio e abastecimento, e um rebocador. Todos já estavam obsoletos: haviam sido comprados na Inglaterra em 1906 como parte de um programa para modernizar a esquadra nacional – onze anos depois, seus equipamentos estavam antiquados e ineficientes, e suas caldeiras a carvão causavam sucessivos problemas.
Para o comando da missão foi escolhido o contra-almirante Pedro Max Fernando de Frontin (1867-1939). Em maio de 1918, partiram os primeiros navios do Rio de Janeiro com destino a Salvador. Essa primeira travessia já demonstrou a fragilidade da esquadra – pouco antes da chegada à capital baiana, o contratorpedeiro Rio Grande do Norte ficou sem seus motores de propulsão, tendo que ser rebocado por seu congênere Piauhy. Reunidas em Fernando de Noronha, as belonaves deixaram o território brasileiro no dia 1° de agosto rumo a Freetown, em Serra Leoa. Oito dias depois, a Dnog se colocava às ordens do almirante Sheppard, comandante da Divisão Naval Britânica – não sem antes dedicar quatorze dias aos reparos das máquinas avariadas.
Quando enfim rumava para Dakar, onde daria início às patrulhas, a divisão foi atacada por um submarino no dia 25 de agosto, por volta das 20h15. Por sorte, o torpedo passou a cerca de vinte metros da popa do tênder brasileiro. Imediatamente os demais navios realizaram ataques em direção ao inimigo, mas não houve certeza da destruição do submarino alemão. No dia seguinte, a Dnog fundeava em Dakar. Começariam então os seus piores tormentos. A intenção era permanecer ali o menor tempo possível, somente para reparos e reabastecimento, mas em 6 de setembro a gripe espanhola irrompeu entre a tripulação com toda a sua virulência. Já nesse dia, a colocação de carvão a bordo do cruzador Bahia teve que ser suspensa pelo excesso de doentes: de uma só tacada haviam sido atingidos cerca de 200 tripulantes, do total de 1.500 de toda a divisão.
Os sintomas eram uma sonolência inicial seguida de febre alta, dor de cabeça, tosse, falta de ar, algumas vezes hemorragia nasal e bucal, alucinações e morte, isso tudo em curto espaço de tempo: de 24 a 72 horas. Os doentes não tinham forças nem para se levantar, situação agravada pelo intenso calor. No fim de dois dias, as tripulações de todos os navios haviam sido contagiadas, e com tal força que cerca de 95% dos seus efetivos encontravam-se em completo estado de prostração. Um dos muitos casos tenebrosos foi o de um jovem praça internado em um hospital de Dakar. Aparentemente acometido de delírio, ele se levantou durante a noite, como se nada lhe tivesse acontecido, vestiu-se, imobilizou o sentinela do hospital e dirigiu-se à primeira espelunca que encontrou. Lá se entregou aos maiores excessos. Em seguida, regressou ao seu navio, onde foi recolhido à enfermaria em estado de grande excitação. Duas horas depois, começou a ter convulsões e febre alta, vindo a falecer após seis horas de completa agonia.
As mortes se multiplicavam. Os corpos eram colocados em caixões e entregues às lanchas francesas (guarnecidas por senegaleses), que os levavam para serem enterrados na cidade. Depois de alguns dias, por causa da demanda excessiva, os caixões foram substituídos por tábuas simples, amarradas por cabos e envoltas em lona. Nofim de dois meses tinham morrido 109 militares, e 140 doentes foram repatriados, alguns falecendo no Rio de Janeiro. Ao todo, 249 militares se afastaram da Dnog, sendo substituídos por novos contingentes vindos do Brasil.
A gripe amainou aos poucos, e foi considerada extinta por Frontin no fim de outubro. O almirante teve que fazer várias alterações nos comandos e recompor as guarnições, uma vez que a guerra ainda não terminara. O destino seguinte seria Gibraltar. Além dos problemas de pessoal, a esquadra estava gravemente desfalcada de navios. O cruzador Rio Grande do Sul e o contratorpedeiro Rio Grande do Norte tiveram que permanecer em Dakar devido a problemas mecânicos, o tênder Belmonte foi convocado a transportar trigo para o governo francês e o rebocador Laurindo Pitta regressou ao Brasil. Restaram apenas um cruzador e três contratorpedeiros para continuar a missão.
Na travessia até Gibraltar, um atraso impediu o encontro previsto com o encouraçado inglês Britannia na entrada do Mediterrâneo. Foi um raro momento de sorte da missão brasileira, pois naquele ponto estava à espreita um submarino alemão, que pôs a pique o navio de guerra britânico. A divisão chegou a Gibraltar em 10 de novembro, e no dia seguinte foi assinado o armistício que pôs fim à guerra. Isso não significou o regresso imediato dos navios. A convite, visitaram Inglaterra, França, Portugal, Itália e as ilhas de Cabo Verde. Foram mais sete meses de navegação e de incontáveis reparos antes da chegada ao Rio, em junho de 1919.
O que poderia ter sido uma experiência edificante transformou-se numa desventura inócua. Em vez de aprender com o traumático episódio, a Marinha acomodou-se. Em 1942, quando o país se envolveu em nova guerra mundial, os tenentes da Dnog eram almirantes. Mas seu sofrimento passado na África foi em vão: nossa Marinha continuava despreparada.
FRANCISCO EDUARDO ALVES DE ALMEIDA é HISTORIADOR E INSTRUTOR DA ESCOLA DE GUERRA NAVAL.
Saiba Mais - Bibliografia:
GAMA, Arthur Oscar Saldanha da. A Marinha do Brasil na Primeira Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Capemi,1982.
MAIA, Prado. DNOG. Uma página esquecida da história da Marinha Brasileira. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1961.
MARTINS, Helio Leôncio. “A Participação da Marinha Brasileira na Primeira Grande Guerra”. In: História Naval Brasileira, v.5, t.ib. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação da Marinha, 1997.
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
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