Rainha das noites de Copacabana, Dolores Duran criou uma nova forma de interpretar o samba e compôs pérolas da nossa música
Maria Izilda Santos de Matos
Negra, de rosto arredondado, os olhos sempre envoltos numa alegre melancolia, dentes da frente ligeiramente separados, corpo miúdo e um pouco gorducho, raciocínio rápido, vivaz, com um jeito meigo e triste, assim era Dolores Duran. Carregava consigo a melancolia guardada daqueles que vivem pela noite, em palcos enfumaçados, até de manhã. Para os amigos, entre eles os cronistas Sérgio Porto e Antônio Maria, ela era “uma falsa mulher alegre”. Para o público que apreciou as interpretações e composições de Dolores, ela foi uma estrela de brilho intenso e fugaz, que iluminou a música brasileira e se apagou subitamente, aos 29 anos.
Nos anos 1940 e 1950, Copacabana tornou-se o pólo efervescente da cidade. Duas décadas antes, o bairro não passava de um areal freqüentado apenas por aqueles que acreditavam nos milagres curativos do banho de mar. A ocupação urbana transformou a região, atraindo novos e abastados moradores. Mais tarde, com a oferta de imóveis mais acessíveis, chegaram ali pessoas de menor poder aquisitivo. Copacabana florescia: ir à praia deixava de ser uma extravagância para se tornar um programa tipicamente carioca, e a emergente vida noturna do bairro atraía cada vez mais gente à procura de boa música e um pouco de diversão.
Nessa época, os bairros da Lapa e do Estácio sofriam com fortes intervenções policiais. Prostíbulos e comércios locais eram fechados, gigolôs e malandros eram presos, e muitos intelectuais que agitavam esses tradicionais cenários da boêmia carioca transferiram-se para Copacabana. Neste novo reduto, que reunia bares, restaurantes, cassinos e, principalmente, boates, pares enamorados espalhavam-se pelas mesas, envoltos pela atmosfera de uma melodia tocada ao piano ou de um cantar sussurrado, que evocava o amor magoado e a dor-de-cotovelo.
Copacabana foi o palco da trajetória de Dolores Duran, para quem a noite começava obrigatoriamente na boate Cangaceiro, onde, quando estava especialmente feliz, bebia um coquetel de frutas. Porém, se um triste pressentimento lhe vinha – “a solidão vai acabar comigo”, como diz o verso de “Solidão”, uma de suas composições mais famosas –, uísque puro era a pedida. Batia um papo, soltava algumas piadas e depois ia cantar no Little Club. Dificilmente dormia antes do início da manhã; cantava até tarde nas boates, esticava o programa por aí, e chegava a ir assistir à primeira missa do dia no Mosteiro de São Bento, com o fundo musical dos cantos gregorianos.
Estrela em Copacabana, Dolores nasceu em 1930 no bairro da Saúde, centro do Rio de Janeiro, com o nome de Adiléia Silva da Rocha. Filha de um sargento da Marinha, passou a infância nos bairros de Irajá e Pilares, onde conheceu as agruras da vida suburbana carioca. A menina humilde não conseguiu concluir o curso primário; trabalhou como modista e balconista e, apesar da pouca instrução, tornou-se uma das mais intuitivas poetisas da música popular brasileira.
Com apenas seis anos, iniciou sua carreira artística cantando em diversos concursos e festas. Como era comum nos anos 1930 e 40, participou com sucesso de vários programas de calouros no rádio. Depois de causar uma boa impressão no concurso “À procura de uma cantora de boleros”, foi convidada para fazer um teste na boate Vogue, uma das mais sofisticadas do Rio. Aprovada, obteve um contrato de crooner, cantora de baile que interpreta sucessos de outros artistas. Tinha só 16 anos, e por isso foi obrigada a falsificar a idade em seu documento para poder trabalhar na noite. Para brilhar nos palcos cariocas escolheu o pseudônimo de Dolores Duran, nome que misturava a influência dos ritmos latinos com a cultura cinematográfica norte-americana.
A exigência de ter de embalar a platéia em diversos estilos musicais lhe daria grande versatilidade. Sua sensibilidade e sua afinação impressionariam o público. Interpretando de forma singular, exibia um belo domínio vocal e era capaz de fazer sofisticadas improvisações jazzísticas. Mesmo sendo considerada a rainha do samba-canção, Dolores também foi apontada como uma precursora da Bossa Nova, por seu estilo inovador de cantar. Era ainda uma grande imitadora de cantores nacionais e internacionais, reproduzindo com perfeição os timbres de voz, inclusive dos homens.
Com o sucesso na noite, sua carreira deslancharia: em 1955, a crônica especializada elegeu Dolores como a melhor crooner do Rio. Sua voz podia ser ouvida nas boates mais conhecidas – como Vogue, Beguine, Cangaceiro, Little Club, Baccará – e também em São Paulo, no Esplanada. Lançou o primeiro disco em 1952, quando gravou dois sambas de carnaval: “Que bom será” (de Ailce Chaves, Salvador Miceli e Paulo Marquez) e “Já não interessa” (Domício Costa e Roberto Faissal). Os primeiros sucessos viriam somente dois anos depois, com o lançamento de “Canção da volta” (Antônio Maria e Ismael Neto) e “Bom querer bem” (Fernando Lobo). Mas foi em 1956 que Dolores obteve um dos seus maiores sucessos: “Filha de Chico Brito” (Chico Anísio). No mesmo ano ingressou na caravana circense do ator Paulo Gracindo (1911-1995), com a qual percorreu os subúrbios cariocas, alternando suas apresentações em boates de luxo e no picadeiro. Depois de conquistar o circuito das boates, começou a sonhar mais alto, almejando o sucesso no rádio. A oportunidade apareceu quando César de Alencar (1920-1990) a levou para a Rádio Nacional.
Os anos 1940 e 50 ficaram conhecidos como a “época de ouro do rádio”. De todas as estações, a Rádio Nacional, sem dúvida, era a que mais se destacava. Com a difusão dos aparelhos, que se tornaram cada vez mais acessíveis ao público, o rádio passou a ocupar um espaço cada vez maior na vida dos brasileiros. O samba que era tocado nos programas radiofônicos começava, neste momento, a se diferenciar rítmica e poeticamente do formato tradicional do gênero. A cadência dos sambas mais antigos foi sendo substituída pela do samba-canção, mais lento, abolerado e centrado na temática da dor-de-cotovelo. Cantado em ambientes pequenos, à meia-luz, esse estilo dançante dominou a noite e encontrou nas casas noturnas e boates o clima ideal. O diversificado público passou a se identificar com o intimismo das letras dos sambas-canções e os versos singelos e sensíveis.
Alguns compositores se queixavam de que a interpretação que Dolores fazia de suas canções, mais do que uma nova versão, uma verdadeira releitura. Ela chegava, inclusive, a fazer pequenas mudanças nas letras. Com o tempo, revelou-se também uma compositora de mão cheia. Suas canções abriram espaço para novas compositoras e imprimiram uma linguagem poética centrada nos sentimentos femininos.
Conta-se que quando Dolores ouviu Tom Jobim (com quem comporia ainda “Se é por falta de adeus” e “Estrada do sol”) dedilhar a melodia de “Por causa de você”, logo se prontificou a fazer a letra. Encabulado, o maestro esclareceu que Vinicius de Moraes já havia escrito os versos. Dolores não se conformou; telefonou para Vinicius, e o poeta acabou reconhecendo que a letra dela era melhor.
Ah, você está vendo só do jeito que eu fiquei
E que tudo ficou
Uma tristeza tão grande nas coisas mais simples
Que você tocou
Algumas vezes, a inspiração surgia num trajeto noturno, como no caso de “Solidão” (1959), composta no caminho entre o Alto da Boa Vista e o Beco das Garrafas. Dolores parava o carro sob os postes de iluminação aqui e ali para compor versos como “Eu quero qualquer coisa verdadeira/ Um amor, uma saudade, uma lágrima, um amigo”. Conta-se que escrevia compulsivamente, mas grande parte deste material não foi preservada e, infelizmente, se perdeu.
A cantora também musicava suas próprias letras. Escreveu sozinha as composições que melhor caracterizam a singularidade de seu estilo, caso de “Castigo” (1958), “Noite do meu bem” (1959), “Fim de caso” (1959) e “Solidão”. Guardava a melodia na memória e depois cantarolava para alguém que a transcrevia na pauta. Os versos que compôs possuem a singeleza de uma conversa íntima. Falava de sentimentos muito conhecidos pelas mulheres da época: medo da solidão, a dor calada e aceita como castigo, carregada de culpa, marcada pela espera, amor sincero, fiel e carinhoso. Sem recorrer à pieguice, comum no samba-canção, suas composições alimentavam corações solitários e desiludidos, mostrando um amor exacerbado, com fortes imagens românticas: as rosas, a solidão da noite, a espera, a culpa e a procura.
Havia dias em que a inspiração lhe chegava de repente. Colega nos palcos das boates cariocas, a cantora Marisa Gata Mansa revela detalhes interessantes sobre como foi feita uma das mais famosas músicas de Dolores: “‘Fim de caso’ foi no Little Club, no Beco das Garrafas. Não tinha mais ninguém, quase 4 horas da manhã. Dolores estava sentada, violão no colo e uma folha de papel à frente. Como sempre, escrevendo com o lápis de sobrancelha. Perguntei o que ela estava fazendo e ela só me respondeu: ‘Pera aí, que eu estou terminando um negócio aqui’. E nasceu ‘Fim de caso’”.
Eu desconfio que o nosso caso
está na hora de acabar
Há um adeus em cada gesto,
em cada olhar.
Dolores procurava se manter sempre por dentro de novas tendências artísticas. Freqüentadora da noite, ouvia outros músicos e compartilhava impressões com Vinicius e Tom. As primeiras manifestações do que viria a ser conhecido como Bossa Nova desabrochariam no final dos anos 1950, nas mesmas noites de Copacabana. Como o céu que clareia de manhã, suas canções se transformavam, abandonando os desencontros amorosos, deixando o peso da noite para cantar a beleza do dia e a praia.
Apesar das recomendações médicas sobre suas fragilidades cardíacas, Dolores não refreou os excessos da vida boêmia. Na manhã de 24 de outubro de 1959, chegou em casa nas primeiras horas do dia, depois de se apresentar no Little Club e, como de costume, esticar a noite por aí. Antes de se deitar, disse à empregada: “Não me acorde. Estou muito cansada. Vou dormir até morrer”. Só à noite é que foi encontrada, vítima de um colapso cardíaco. A morte precoce, aos 29 anos, não a excluiu do quadro das grandes intérpretes e compositoras nacionais, deixando seu nome gravado para sempre na música popular brasileira. Toda a angústia do seu tempo, caracterizada pela dor de amor, a procura do amor idílico, as paixões interditas ou impossíveis, era traduzida nos versos que compunha.
Maria Izilda Santos de Matos é professora titular da PUC-SP e autora do livro Dolores Duran: Experiências Boêmias em Copacabana nos anos 50. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
Nenhum comentário:
Postar um comentário